segunda-feira, 6 de junho de 2022

A RELAÇÃO DE OBJETO NA CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E O LUGAR DO ANALISTA NA INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA

AULA DE ABERTURA 
SEMINÁRIO TEÓRICO PSICANÁLISE E PSICOSES

06/06/2022



A vida se inicia antes mesmo do nascimento: é a partir do desejo e da possibilidade da parentalidade do ser humano que a vida tem o seu ponto de partida. Antes dos próprios pais nascerem, os avós já podem sonhar, desejar o nascimento dos netos. Porém, do outro lado, mesmo um nascimento que não tenha sido planejado, em algum momento, o bebê é pensado e nomeado por alguém. Aí começa a vida.

 

O que quero dizer é que a vida não se inicia com o nascimento, assim como não termina com a morte. Há um lastro de existência para aquém do nascimento e para além da morte. Há algo do ser que se antecipa à experiência do corpo orgânico e persiste após ela. Antes de nascermos já há algum saber sobre nós, e depois que morremos algo de nós continua vivo. Afinal, aquele que morre organicamente, deixa vestígios que se prolongam em quem fica. Ou seja, herdamos e realizamos os atos das referências que marcaram nossa memória, com conselhos, reprovações e projetos, seja do nosso convívio direto, nossos familiares e amigos, ou de contatos indiretos, como as nossas referências de vida na cultura.

 

Mas quero aqui, nos ater a um momento breve dessa existência cujo começo e o fim não é possível determinar com precisão. Quero destacar deste tempo o momento em que o ser entra no universo da linguagem. Quando este ser– desejado ou não, planejado ou não – passa a representar um significante para outro significante. Ou seja, quando o sujeito advém.

 

O significante é um elemento da linguística que Lacan usou para a psicanalise designar as representações que emergem do universo da linguagem, e cuja função, que só opera no encadeamento com outro significante, é significar a falta da completude entre o ser e o mundo. Assim, o significante na psicanálise não se limita a palavra como na linguística, mas uma marca que apenas quando em relação a outro significante produz efeito de significado.

 

O sujeito, por sua vez, é o efeito do atravessamento do significante no ser, estabelecendo, como castração, como índice de incompletude, o inconsciente e a mola do desejo deste ser.

 

Ao nascer o bebê não sabe que é. Ele apenas é, e dependente para sobreviver, disso que chamamos de função materna. Será tarefa desta pessoa, além de alimentar e limpar, dar contorno a este outro corpo para que ele possa advir como sujeito.

 

Este contorno é dado a partir de gestos e palavras – significantes - que nomeiam as necessidades ou, dito de outro modo, as demandas do bebê; organizando, a cima de tudo, as pulsões deste corpo. Podemos dizer, junto a Lacan, que a demanda é a posição subjetiva original, comandada pelas pulsões cuja fonte é o corpo, e cuja meta é se satisfazer. E, neste primeiro momento, a satisfação acontece por meio dos objetos oferecidos por aquele que cuida.

 

Disso, destaco a importância da relação de objeto na constituição do sujeito e do desejo abordando o conceito de objeto a para pensar a posição do analista em um momento ainda preliminar da constituição do sujeito: a infância e a adolescência.


O primeiro objeto de amor do bebê é a mãe (ou aquele que faz a função materna), ou melhor dizendo as partes da mãe que executam essa função, podendo haver um superinvestimento da meta em determinado objeto. É o que Freud chamou de objeto parcial; polo da pulsão sexual.

 

Este objeto faz marca, e as pulsões, que são a ponte entre o corpo e a mente, passam procurar por este objeto que será o ponto de organização do sujeito; o objeto é o meio de proporcionar satisfação a pulsão. Esta marca não se trata, ainda, de recalque, mas das organizações pré-genitais. 

 

É com a chegada do significante, responsável pela castração, ponto de virada da alienação e separação e ponto de partida da constituição do eu, que o objeto passa a não ser mais apenas correlato da pulsão, destinado a ser consumido. É neste momento que o objeto passa a ser considerado na sua diversidade e riqueza de qualidades, na sua independência, na medida em que é progressivamente integrado e transformado em objeto de amor, determinando o que será a fantasia fundamental responsável por gerenciar a relação do sujeito com o mundo, lugar privilegiado da constituição do sujeito. Lacan descreve a fantasia fundamental com a fórmula S barrado punção de a, para demonstrar a condição de tensionamento entre o sujeito e o objeto. As vezes com mais intensidade, as vezes com menos intensidade.



A partir da entrada do significante que instaura a lei desde a função paterna, fazendo barreira ao objeto de amor – estamos falando da castração – constitui-se assim, a partir da falta, o desejo; e o objeto se transmuta em algo não especular, sem imagem, a fim de buscar representações que tamponem a falta por meio da fantasia. A introjeção é o mecanismo pelo qual o objeto parcial se transforma em objeto em si. Introjetar é ser e vir a ser desejo. Ao ser introjetado pelo eu, podemos dizer que o objeto passa a ter a função de antecipar o desejo, na medida em que a falta é da ordem do insuportável. Este objeto, Lacan conceituou como objeto a: objeto perdido causa do desejo. Ou seja, o objeto a não é a castração, o objeto a é efeito da castração, cuja função é substituir a falta deixada pelos objetos parciais, pelo objeto de amor, quando o significante da lei faz a sua função de barrar o livre acesso ao objeto.

 

Assim, a fantasia fundamental, aquela articulada como sujeito barrado punção de “a”, tentará garantir uma estrutura mínima para o suporte de desejo, criando, sugerindo com metáforas, outros objetos para tamponar a falta. 

 

Na infância, vemos que esse objeto tem um caráter mais opaco e concreto. As crianças procuram sempre mais ou menos os mesmos objetos para se acalmarem. Está aí o cerne da noção de objeto transicional proposta por Winnicott, o que pode ser observado na capacidade das crianças assistirem o mesmo filme todos os dias, ou se agarrarem ao mesmo brinquedo por um longo período.

 

Na adolescência, este objeto pode tomar a forma de ídolos, substituindo os pais ideias. Freud diz que é na puberdade que a vida sexual se configura de acordo com a escolha objetal. O problema é que na puberdade o cérebro ainda está em vias de desenvolvimento e, precário para algumas tomadas de decisão. De escolhas.

 

A diferença que me parece mais fundamental na observação da criança e do adolescente, é que para a criança, ainda que o objeto seja mais opaco e concreto, como eu disse antes, ela tem mais facilidade de transitar pelos objetos, na medida em que se oferecem outros que também possam constituir um meio de satisfazer as pulsões, pois as crianças não estão ainda tão fixadas ao objeto. Por exemplo, não é tão difícil fazer a criança trocar a mamadeira por um copo decorado com um personagem que ela goste. Ou a chupeta por um brinquedo novo, trazido, por exemplo, pelo papai noel. 

 

O adolescente também troca facilmente de objetos, porém aí eu queria trazer um dado de fora do campo da psicanálise para pensar a adolescência. O cérebro adolescente ainda está em formação, e nele, a região chamada de córtex frontal, responsável pela avaliação racional dos atos, ainda não está plenamente desenvolvida e, por isso, os adolescentes tomam decisões com as amigdalas cerebrais, localizadas no lobo temporal do cérebro, que é a região responsável pelo processamento das emoções. Assim os adolescentes recorrem a escolhas que privilegiam o prazer e a recompensa imediata, o que os leva a, muitas vezes, optarem por objetos que podem coloca-los em risco. Por isso, ao meu ver, o atendimento de adolescentes exige um cuidado do psicanalista, pois não se trata mais tanto de oferecer recursos simbólicos, repertório cultural, pois isso eles têm de monte. Mas de acompanha-los com conversas sobre as consequências de suas atitudes, que ampliando o tempo de sustentar as frustrações por outras recompensas menos imediata.

 

A metáfora do psicanalista enquanto uma tela branca onde seus pacientes projetam suas emoções estabelece, no tratamento psicanalítico, o espaço de elaboração e sustentação do desejo, ainda que este espaço seja “preenchido” com falta e, consequentemente, angústia. O psicanalista não ocupa o lugar de objeto enquanto correspondente a demanda, mas sustenta o lugar do objeto a, enquanto lugar de falta, propiciando a busca por objetos e a produção de novos significantes. 

 

A fantasia tem, portanto, dois aspectos: um salutar, agradável, de tamponar a falta e satisfazer a pulsão, mas outro patogênico, pois podemos ficar tão fascinados pelo objeto colocado no lugar da falta, que nos agarramos a ele e não queremos mais soltar. A fixação em objetos pode produzir sofrimento e sintomas, porque esse apego restringe, afunila o mundo do sujeito. Impede que o sujeito veja mais amplamente o que o cerca.

 

O Marco Antônio Coutinho, psicanalista carioca, faz uma interessante metáfora da fantasia fundamental. Quando estamos rigidamente fixados a um objeto é como estarmos em prisão domiciliar. Temos tudo o que precisamos, mas não podemos sair daquele pequeno espaço. Com análise nós podemos progredir para um regime semi-aberto, na medida em que trabalhamos o desapego do objeto, ainda que temporariamente, pois a fantasia fundamental, constituída pelos primeiros investimentos libidinais, ela é insubstituível. 

 

Podemos, ainda, rapidamente citar o caráter de fetiche que o objeto adquire nas perversões, quando o sujeito recusa a castração. Ou o efeito de alienação quando o significante, que agora posso dizer, o significante do nome do pai instituído pela função paterna, é foracluído do inconsciente. Ou seja, quando a lei não incide como organizadora da estruturação simbólica do sujeito. Deixo essas perguntas para uma próxima oportunidade.

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