quarta-feira, 8 de agosto de 2018

PSICANÁLISE, TRIAGEM, REDE DE ATENDIMENTO, PRIMEIRAS ENTREVISTAS E ACTING-OUT


Trabalho apresentado para o 
Simpósio da Rede de Atendimento do CEP (Centro de Estudos Psicanalíticos)
Agosto/2018

A triagem é um dispositivo clínico cujo uma das finalidades é organizar o pedido, que chega a partir da proposta social do CEP, de atender a comunidade da região metropolitana de São Paulo interessada (direta ou indiretamente) em iniciar um tratamento de escuta terapêutica, acolhendo também as dificuldades financeiras e geográficas, num contexto onde confronta-se  o signo do elitismo, historicamente, designado à psicanálise.

Este trabalho pretende refletir sobre os impasses que norteiam algumas decisões em triagem de barrar o encaminhamento de um paciente para a Rede de Atendimento do CEP, levando em consideração a implicação do sujeito, que supomos necessária no tratamento psicanalítico, em uma intervenção que se pretende rápida e eficaz - na contramão do que normalmente presenciamos na clínica -,  apoiada pelas reuniões de triadores, com o mesmo cuidado que escutamos o desejo do sujeito já em análise.

Ao refletir sobre este tipo de intervenção, suscitamos três questões: Qual a origem da triagem na clínica? Como diferenciar triagem e primeiras entrevistas? E finalmente, quais signos devemos procurar que podem enunciar a implicação e o desejo para análise?

A palavra triagem vem do francês triage (verbo trier), que significa escolher, selecionar, separar. Deriva do latim tardio trītāre, (moer), cujo radical é trītum (esmagar, trilhar, pisar, debulhar), que por sua vez é cognato de tritĭcum (trigo). (HOUAISS, 2018)
De acordo com o artigo "Triagem na Medicina" (ISERSON e MOSKOP, 2007), hoje o termo triagem "é, normalmente, usado para referir a distribuição de recursos médicos para pacientes" e nasceu durante as guerras do século 18, afim de sistematizar o cuidado a soldados doentes e feridos. Antes disso, os soldados recebiam pouca ou nenhuma assistência médica no campo de batalha, dependendo do socorro dos colegas caso sofressem um ferimento.

Ao longo do tempo, as triagens ganharam um caráter administrativo, uma forma de otimizar os recursos hospitalares, classificando os casos de acordo com especialidades médicas, urgência e pré-avaliando o paciente (medir a pressão, peso, temperatura e outros procedimentos básicos) para que o médico foque o seu tempo em diagnósticos e intervenções.

A triagem também faz parte dos procedimentos de primeiros socorros em casos de grandes desastres, onde as vítimas são classificadas e atendidas de acordo com a gravidade de suas lesões. Por exemplo, (1) Aqueles a quem não há auxílio possível; (2) Os feridos que necessitem de transporte imediato; (3) Os feridos cujo transporte possa ser adiado; (4) Aqueles com ferimentos leves, que não necessitem de cuidados urgentes.

Fora do âmbito médico, encontramos o termo triagem, sendo usado para separar e eliminar documentos de arquivos antigos ou sobrecarregados, ou até mesmo para seleção de atletas para uma equipe.

Na psicologia, o processo de triagem é bastante comum nas clínicas-escola, e "tem os objetivos de coletar dados, levantar hipóteses diagnósticas e verificar qual tipo de atendimento a pessoa necessita, a fim de encaminhá-la ao tratamento adequado possível" (HERZBERG e CHAMMAS, 2009). Este momento também é destinado para expor a proposta da instituição que oferece o atendimento, assim como esclarecer dúvidas objetivas a cerca do tratamento e, no caso do CEP, nunca é feita pelo analista que direcionará o tratamento.

Este viés burocrático/gerencial da triagem é o que, principalmente, a diferencia das entrevistas preliminares, quando o encontro já se caminha para uma relação transferencial e construção de demanda. Lembrando que o termo "entrevistas preliminares" (1955-1956) foi usado por Lacan, enquanto Freud descreveu este momento, em seu texto "Sobre o Início de Tratamento" (1913), como um "início", "experiência" e "sondagem". Nele, Freud pontua algumas justificativas para este tipo de precaução prévia ao tratamento como, por exemplo, poupar "ao paciente a impressão aflitiva de uma tentativa de cura que falhou" (p.164), estabelecer limites em relação ao tempo das sessões, fixar os honorários do analista, instituir regras sobre faltas e escutar o tipo de afecção do paciente para decidir se o caso é elegível para análise. Vale ressaltar o caráter de "recomendação"  proposto por Freud:
Penso estar sendo prudente, contudo, em chamar estas regras de ‘recomendações’ e não reivindicar qualquer aceitação incondicional para elas. A extraordinária diversidade das constelações psíquicas envolvidas, a plasticidade de todos os processos mentais e a riqueza dos fatores determinantes opõem-se a qualquer mecanização da técnica; e ocasionam que um curso de ação que, via de regra, é justificado possa, às vezes, mostrar-se ineficaz, enquanto outro que habitualmente é errôneo possa, de vez em quando, conduzir ao fim desejado. Estas circunstâncias, contudo, não nos impedem de estabelecer para o médico um procedimento que, em média, é eficaz. (ibid)

No caso da Rede de Atendimento do CEP, o triador procura garantir que o candidato ao tratamento saiba que deve estar disposto a investir com algum valor, de acordo com sua possibilidade, e dispor de alguma flexibilização na sua rotina para comparecer às sessões. Porém não cabe a ele estabelecer ou indicar a quantia do tempo e dinheiro. Essas são condições objetivas de encaminhamento e, algumas vezes, não são acatadas por candidatos que procuram atendimento gratuito ou com horários muito específicos.
Os dois anos como triadora do CEP me permitiram a oportunidade de escutar uma variedade próxima de 500 sujeitos, em sua grande maioria encaminhados para os analistas. No entanto, o triador depara-se, frequentemente, com casos que nos parecem pedidos de outra ordem, não de análise. Para essas pessoas a terapia é condição para outro fim, que não a retificação subjetiva. Nesses casos usamos a expressão "análise por decreto", pois não escutamos o desejo de análise do candidato, mas um decreto proveniente de outros lugares. Algumas dessas situações são apresentadas repetidamente nas construções de caso das reuniões de triadores e podem ser, por exemplo, aqueles que nos procuram pois foram encaminhados por outros dispositivos de saúde para complementar um tratamento psiquiátrico;  psicólogos e estudantes de psicologia que procuram a terapia "porque é importante" nas suas práticas profissionais; pessoas cujos laços familiares estão ameaçados caso não "se tratem"; etc. São casos que, muitas vezes, resistem a entrar em contato com o seu sofrimento ou não estão implicados nele.

Um caso:
Uma senhora de 60 anos agenda sua triagem. No caminho entre o metrô e o CEP ela cai e machuca o joelho. Chega atrasada e sangrando. O porteiro do CEP a socorre com antisséptico e atadura, enquanto eu, tomada pelo ato, decido atende-la no andar térreo para poupa-la da escada. "Pisei em falso várias vezes", ela diz, e apesar da dificuldade de locomoção se esforçou para chegar.

Encaminhada pelo neurologista que trata o Parkinson que a comete ainda levemente as mãos, já está em tratamento com fisioterapeuta, fonoaudiólogo e psicólogo, mas acredita que as conversas com o psicólogo a levam a nada e agora procura alguém que a ajude sem toda aquela conversa, uma terapia comportamental. "Não quero nada que tenha a ver com Freud", diz. Explico, então, do se trata o CEP e os analistas da rede. Ela surpreende-se e diz que talvez tenha "algo a resolver com Freud".

Além do Parkinson, sofre também de diabetes e artrite reumatoide, doenças estas que, conforme ela me contou,  de acordo com um famoso médium do rádio, estão relacionadas a rigidez nas relações e falta de doçura na vida, respectivamente. "Fui muito dura comigo e com os outros, por isso o endurecimento das juntas". Sua mãe morreu de câncer no pulmão, o que, de acordo com o médium é reflexo de tristeza. Na infância foi espancada pela mãe, depois abusada pelo ex-marido alcoólatra e os filhos só dão desgosto. Mas ela perdoa a todos (apesar de manter uma distância segura) e agradece várias vezes a minha compreensão do seu atraso, repetindo "Deus a abençoe, minha filha". Digo a ela que converse com seu psicólogo sobre sua vontade de iniciar outro tratamento e marque um retorno para decidirmos sobre seu encaminhamento. Ela não retornou.

O motivo pelo qual eu escolhi por não encaminha-la, pelo menos naquele dia, residia no percebi como um acting-out, velando por demais minha possibilidade de escuta-la: a mobilização causada na sala de espera do CEP, o encaminhamento do médico, a repulsa a Freud e subsequente identificação, o sofrimento tão concretamente somatizado, a resiliência ao divino e a sobreposição de terapias. Será que ela estava sendo levada pela impulsividade? Seria prudente provocar uma pausa, um obstáculo, entre sua chegada ao CEP e o seu encaminhamento ao analista?

Segundo Lacan, o ato é sempre um ato significante, que permite ao sujeito transformar-se a posteriori. O acting-out, ao contrário, não é um ato, mas uma demanda de simbolização que se dirige a um outro. É um disparate destinado a evitar a angústia. (RODINESCO e PLON, 1998, p.6)

Talvez pareça simples, porém muitas vezes o candidato tem dificuldade tanto em nomear o sofrimento, como atravessar a resistência para investir. Nesses momentos o triador pode ser capturado a acreditar que não há desejo de análise, porém perguntamos ao candidato: "Conte-me sua história. O que te trouxe aqui?", "Quais são suas expectativas com análise?" É possível que estes depoimentos tragam uma pista para um conflito neurótico e, então, fazemos nosso "apontamento", uma espécie de tradução, ou se preferirmos, uma nomeação do sentido do sofrimento. "O que você pretende fazer com isso?"  Seria muita pretensão do analista querer que o candidato tenha essa resposta, afinal é a impotência, o não saber, que muitas vezes o leva ao pedido de socorro, porém tentamos (e essa é uma das funções da triagem) escutar e apostar se o sujeito está disposto a renunciar ao seu gozo  afim de ter outros ganhos menos penosos para sua subjetividade.

Bibliografia

FREUD, S. "Sobre o início do tratamento" (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise I) (1913). In: O caso Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos (1911-1913). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996.


HERZBERG, E., & CHAMMAS D. "Triagem estendida: serviço oferecido por uma clínica-escola de Psicologia" In: Revista Paidéia, vol.19, n.42, pp.107-114.  Ribeirão Preto, 2009. 

HOUAISS, A. "Triagem". Dicionario Online Houaiss. Disponível em: <https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-3/html/index.php#2>. Acesso: 02 ago, 2018.

ISERSON, KV, MOSKOP, JC. "Triage in medicine: Concept, history, and types". In: Annals of  Emergency Medicine. vol. 49, p. 275281. The American College of Emergency Physicians, 2007.

LACAN, J. "De uma questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses" (1955-1956). In: Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

ROUDINESCO E. & PLON M. "Acting-Out". Dicionário de Pisicanálise. Trad. Vera Ribeiro, Lucy Magalhães; supervisão da edição brasileira Marco Antônio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.