quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

INSÓLITO, PORÉM REAL: Percepções de Sérgio Bianchi sobre os desdobramentos da História recente do Brasil

Por Vivian Vigar
 
NA INTRODUÇÃO DO LIVRO ALEGORIAS DO SUBDESENVOLVIMENTO, ISMAIL XAVIER REFERE-SE A SÉRGIO BIANCHI (ENTRE OUTROS DA MESMA GERAÇÃO) COMO CINEASTA CUJA OBRA "SE PROPÕE COMO UM DESAFIO E PASSEIA POR UMA POÉTICA DO INSÓLITO DE MODO INCISIVO" (2012, P. 8). ENTENDENDO O TERMO "INSÓLITO" COMO ALGO EXTRAORDINÁRIO, FORA DO COMUM, QUE FOGE À REGRA, ESTE ARTIGO ANALISARÁ COMO O FILME JOGO DAS DECAPITAÇÕES REPRESENTA O BRASIL TANTO NA ÉPOCA DA REDEMOCRATIZAÇÃO E SEUS DESDOBRAMENTOS PRESENCIADOS HOJE, TOCANDO O QUE SE REFERE AO CONCEITO DE ALEGORIAS - OU SEJA, REPRESENTAÇÕES DAS "RELAÇÕES ENTRE OBRA E CONTEXTO SOCIAL" (XAVIER, 2012, P. 445) - E AO DE MONUMENTALIDADE - OU SEJA, O "ESFORÇO DAS SOCIEDADES HISTÓRICAS PARA IMPOR AO FUTURO, VOLUNTÁRIA OU INVOLUNTARIAMENTE, DETERMINADA IMAGEM DE SI PRÓPRIAS" (LE GOFF, 1985, P. 548), TENDO EM VISTA QUE O FILME INCIDE NA QUESTÃO DA PESQUISA HISTÓRICA, DE DADOS FACTUAIS E DA PRODUÇÃO ARTÍSTICA COMO EXPRESSÃO POLÍTICO-CULTURAL - NO CASO DE JOGOS DAS DECAPITAÇÕES, O CINEMA (EXPERIÊNCIA ARTÍSTICA DOCUMENTADA), TENDO COMO PANO DE FUNDO O REGIME POLÍTICO MILITAR E AS POLÍTICAS CULTURAIS.

a) Bianchi, o insólito e o Real
            Tendo construído sua obra cinematográfica nos últimos 35 anos, Sérgio Bianchi parece conservar, ainda, em Jogo das decapitações (2013), uma característica incômoda: a de evidenciar as deficiências da sociedade brasileira através do comportamento humano errante. Raramente seus personagens passam ilesos pelo crivo da moral e da ética. Apelando para a ironia e cinismo, ele faz parte de um grupo de cineastas que constrói uma narrativa estranha à conduta politicamente correta que o cinema brasileiro e, principalmente, as grandes produtoras, vêm adotando para o circuito comercial. Talvez seja esta a prática destacada por Ismail Xavier ao colocar Bianchi no hall dos cineastas que "se propõe como um desafio e passeiam pela poética do insólito" (2012, p. 8).
            Uma proposta insólita, porém real. Real[1] no sentido lacaniano, ou seja, como explica o Dicionário de Psicanálise, o real que "passou a ser empregado pelos filósofos como sinônimo de um absoluto ontológico, um ser-em-si que escaparia à percepção" (1998, p. 645). Em outras palavras, "a realidade psíquica, isto é, o desejo inconsciente e as fantasias que lhe estão ligadas, bem como um "resto": uma realidade desejante, inacessível a qualquer pensamento subjetivo"; ou ainda, "a dúvida fundadora necessária à ciência [... onde] não existe um sujeito" (ibidem). Talvez "escapar à percepção" seja enfático demais para este caso, mas é inquestionável a presença de uma "dúvida fundadora" nos filmes de Bianchi. Empregadas domésticas, assistentes sociais voluntários, intelectuais, donas de casa, bandidos, comerciantes, crianças, pessoas de todas as classes; cedo ou tarde esses personagens perdem a coerência com o discurso que defendem, transparecendo a inconsistência de seus caráteres. Vacilam, assim, em suas manifestações do registro Simbólico, aprendidas culturalmente, entrando no Real; este registro psíquico desvencilhado de acordos sociais.
            A impressão saliente da obra de Bianchi é que as boas ações dos indivíduos não passam de desculpas para colocar em prática as verdadeiras intenções egoístas, muitas vezes, ocultas para o próprio personagem. Assim como "tudo vira indústria" - e é o que diz Bianchi - consequentemente, tudo é motivo para se tirar vantagem, na mais crua tradução do capitalismo: o "toma-lá-dá-cá" de sujeitos dispostos a falsificarem boas causas para sobreviverem em um sistema que perdura pela fachada. O que Bianchi pretende mostrar, enfim, não é o novo, mas, sim, o nu, tentando penetrar o véu ideológico da velha dicotomia mocinho x bandido, trazendo à tona a dúvida que antecede o sujeito; a percepção de uma verdade social obscurecida pelas ferramentas ideológicas; assim como o desejo do Real é obscurecido pelas restrições impostas pela linguagem, ou em termos lacanianos, restrições do registro Simbólico.
            Insólito, porém real, também no sentido mais pragmático, de apresentar outro viés da história brasileira, diferente da história que, nas palavras de George Orwell, é "escrita pelos vencedores"; de apresentar uma perspectiva alheia aos protagonistas da História oficial. Como Slavoj Zizek poderia dizer, a respeito de uma narrativa insólita, uma narrativa "em paralaxe", ou ainda, segundo Walter Benjamin, em defesa do materialismo histórico, "escovar a História a contrapelo" (2012, p. 13).

b) O filme, a alegoria e a crítica à História oficial.
            Lá pelas tantas de Jogo das decapitações (2013), Marília, mãe do protagonista e ex-militante de esquerda, e seus colegas, também ex-militantes de esquerda, comemoram o recebimento de um cheque referente à indenização de presos políticos do regime militar (1964 - 1984). Para registrar o acontecimento, ela posa para uma foto, ao  lado de outros ex-presos políticos e os advogados que trabalham nos processos indenizatórios. Todos estão sorrindo aparentando satisfação. Ela pede, então, uma segunda fotografia: desta vez, acompanhada apenas dos "anistiados", os sorrisos ensaiados são abruptamente censurados pela indenizada propondo que todos mostrem seriedade, em respeito ao que passaram. Se muitas vezes nos deparamos com sorrisos forjados em fotografias, desta vez a simulada é a sisudez. Filmado em 2012, o filme parece pressagiar a situação patética na qual cinco atrizes da TV Globo protagonizaram, em setembro de 2013, ao protestar contra o novo julgamento do Mensalão, com uma foto "séria" nas redes sociais. Uma delas escreveu no Twitter: "Estou passada com a decisão do STF! Ministro Joaquim Barbosa, o senhor não está só. Estamos com você!", completando a mensagem com coraçõezinhos.
            As fotos são - e devem ser, de acordo com o texto "Documentos/Monumentos", de Jacques Le Goff (1985) - registros utilizados em muitos casos de análises históricas. Contudo, podem também funcionar como alegorias de determinadas situações. No caso do filme de Bianchi, a fotografia do grupo de companheiros de guerrilha é uma interpretação do diretor - que teve como ponto de partida, para o argumento do filme, a "raiva" que sente da sua própria geração por estar hoje envolvida "no jogo da direita e da esquerda (política) da briga pelo poder" (BIANCHI, 2013a) - a respeito do possível oportunismo dos antigos militantes diante da História. Como dito antes, para Bianchi, "tudo vira indústria", apontando para uma "alta classe falida paulista enlouquecida para ganhar dinheiro e lutando por indenização", completando que: "Tem professor marxista que não consegue ver a realidade. Funcionário do governo fabricante de dossiês". Para conseguirem suas indenizações, os antigos militantes se mostram como vítimas de uma guerra que, na verdade, ganharam. Como pergunta o protagonista do filme, Leandro, em provocação à sua mãe, Marília: “Por que vocês continuam o discurso de vítima mesmo quando vocês conseguem o que querem?”, referindo-se ao fato de que hoje a "esquerda" está no poder do Brasil.
            Já a foto-protesto citada acima, publicada pelas atrizes, em setembro - na onda das manifestações, diga-se de passagem - feitas para registrar a indignação delas, acabou por conotar uma ação política tão superficial quanto os papéis que elas interpretam nas novelas. Foi uma piada pronta; alegoria acidental do mau gosto e da relação efêmera que o brasileiro médio tem com suas opiniões políticas e com a História.
            Voltando ao filme Jogo das decapitações (2013), para agora entender sua crítica à História oficial, o enredo trata de um homem de 30 anos, Leandro, que, ainda morando na casa da mãe, Marília, não consegue se fixar em um emprego, enquanto, sem muita motivação, prossegue com sua pesquisa sobre a ditadura dos anos 1960/70 para o mestrado, na USP. Como o tema da pesquisa é, por razões óbvias, de grande interesse para sua mãe, ela o ajuda a reconstruir a complexa história da ditadura brasileira. Certa ocasião, ao pesquisar as fichas do DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social), Leandro se depara com a pasta de documentos a respeito de seu pai, Jairo, com quem ele nunca manteve contato: um artista performático típico daqueles que encarnavam o "desbunde" dos anos 1960 e 1970. Irônico e cínico, Jairo - a esta altura está preso sob a acusação de ter assassinado a esposa - ficou na memória dos colegas (inclusive, Marília) como "infantil", "cretino" e "canalha", que para "fazer o tipo maldito" dizia que "ser de esquerda era o esporte da burguesia". Não obstante, Leandro se interessa em ir atrás do pai, porém, neste momento, Jairo morre durante uma rebelião na penitenciária, fato que chega ao filho através do telejornal. Leandro, então, assiste a uma entrevista concedida por Jairo alguns anos antes, quando foi preso, se defendo da acusação de matar a esposa como infundada. Na entrevista, Jairo alega que o poder quer mantê-lo preso por ser uma pessoa incômoda, e como, após a redemocratização do País, não podem prendê-lo por subversão, estão o acusando de assassinato. O poder democrático ao qual Jairo se refere, é o atual, que está na mão de seus velhos conhecidos e companheiros de guerrilha da mãe de seu filho, Leandro: as mesmas pessoas que o qualificaram como "infantil", "cretino" e "canalha". Assim, Leandro, influenciado também pelo discurso cético de seu amigo, Silvio, aos poucos perde o foco de sua pesquisa acadêmica para procurar um filme dirigido por seu pai, no fim da década de 1970, intitulado "Jogo das decapitações" - que como elemento dinâmico da narrativa, dá título ao próprio filme de Bianchi aqui analisado. Portanto, temos o "Jogo das decapitações" de Jairo, como elemento, de Jogo das decapitações (2013), de Bianchi.
            Assim, Leandro abandona os registros oficiais dos anos de chumbo para tomar conhecimento da História (tanto a sua pessoal como a social) através da obra artística legada por seu difamado pai, remetendo-nos ao teor testemunhal que uma obra com pretensões artísticas pode ter.
A memória da ditadura militar brasileira se impõe como um problema fundamental para a crítica literária. Em um país em que as heranças conservadoras são monumentais, e as dificuldades para esclarecer o passado são consolidadas e reforçadas, o papel de escritores, cineastas, músicos, artistas plásticos, atores e dançarinos pode corresponder a uma necessidade histórica. Enquanto instituições e arquivos ainda encerram mistérios fundamentais sobre o passado recente, o pensamento criativo pode procurar modos de mediar o contato da sociedade consigo mesma, trazendo consciência responsável a respeito do que ocorreu (GINZBURG, 2007, p. 43-44).

            Podemos perceber, em Jogo das decapitações (2013), uma vontade de abandonar a História, que além de conservadora é, de acordo com Bianchi, mal contata, como dito pelo diretor: "eu vivi a agitação de 1964 e 1968 e sei que o discurso que se faz hoje sobre aquele período não se encaixa com o que eu vi na época" (BIANCHI, 2013b). Se partirmos da premissa de que Bianchi é uma testemunha histórica a ser considerada, podemos, então, levar em conta a sugestão de Le Goff sobre a análise histórica relevando o documento como um "produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder" (1985, p. 545). Estes documentos (produtos) são deixados para as próximas gerações como monumentos, em um "esforço das sociedades históricas para impor ao futuro, voluntária ou involuntariamente, determinada imagem de si próprias" (ibidem, p. 548). É, então, que Le Goff propõe seu método de questionar o documento/monumento, analisando as "perspectivas econômica, social, política, cultural, espiritual" para, enfim, enxergar que "ele [documento/monumento] é o testemunho de um poder polivalente e, ao mesmo tempo, cria-o":
Um monumento é, em primeiro lugar, uma roupagem, uma aparência enganadora, uma montagem. É preciso começar por desmontar, demolir esta montagem, desestruturar esta construção e analisar as condições de produção dos documentos-monumentos (1985, p. 548)

            Acrescentamos, então, que não apenas da produção do documento/monumento o historiador deva se ocupar. Mas, também, de seu armazenamento e manutenção. Leandro – como dito anteriormente, vai à procura dos rolos de filme deixados por Jairo -, descobre que dentre as duas cópias (rolos) existentes na videoteca da universidade; uma está em decomposição e não pode ser emprestada, e a outra foi retirada do lugar pelo produtor do filme. A pergunta que podemos fazer é: Por que um artista que tem sua morte anunciada na televisão, não tem a sua obra conservada? A "espetacularidade" de sua lenda passa a ser mais importante do que a crítica que ele fez sobre a sociedade, valendo apenas para ser lembrado como um "cretino", e, agora, assassino; afinal ele não aderiu ao movimento que, posteriormente, ascendeu ao poder.
            Jairo, como um artista sem identificação com os guerrilheiros de esquerda, teve sua participação histórica ofuscada pela sociedade e esquecido, ou quase esquecido, pela história, remetendo-nos, mais uma vez, a Benjamin. Na sua tese XII do ensaio "Sobre o conceito da história" (2012), podemos verificar uma reincidência de personagens históricos que foram esquecidos, como no caso de Jairo. E, neste caso, a frase "foram esquecidos" deve ser lida como uma ação de ser colocado no esquecimento:

"O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe lutadora e oprimida. Em Marx, ela surge como a última classe subjugada, a classe vingadora que levará às últimas consequências a obra de libertação em nome das gerações de vencidos. Essa consciência, que se manifestou por pouco tempo ainda no Movimento Espartaquista, foi sempre suspeita para a social-democracia. Em três décadas, ela conseguiu praticamente apagar o nome de Blanqui" (BENJAMIN, 2012, p. 16)

            Louis-Auguste Blanqui, apesar de ter sido ativista a favor da igualdade dos direitos humanos, na França do século XIX, não desligou-se de seus ideais republicanos, perdendo com isso sua identificação com a classe trabalhadora, a quem era atribuído o papel de "salvadora das gerações futuras" (ibidem, p. 17).
             Outro assunto enfatizado pelo filme é a manutenção do poder político através da violência contra as classes oprimidas. Bianchi denuncia o Brasil como um país que desde a colonização tem em sua base dinâmica a prática da tortura, no entanto, apenas aquelas pessoas torturadas durantes os 20 anos de ditadura têm direito à indenização, pessoas essas da classe média. Por que os escravos ou os presidiários não têm direito à indenização? Esta pergunta ganha a voz em Silvio, que na ocasião de uma vernissagem de arte organizada por Marília, lembrando a tortura dos militares, diz: “Um preso comum é torturado sistematicamente por qualquer contravenção, desde sempre! Desde quando eles eram escravos legítimos... será que ele não deveria estar aqui com a gente - tirando fotos, tomando esse whiskyinho e comendo canapés?”.

c) Metafilme: A "escrita fílmica" como monumentalidade e alegoria
            Para atender a demanda conceitual da "'escrita fílmica' como monumentalidade e alegoria", podemos explorar uma curiosidade, que apesar de ter sido pouco citada pela crítica especializada, parece importante para a narrativa de Jogo das decapitações (2013). Jairo tem um perfil semelhante ao de Bianchi; tão semelhante que Bianchi "empresta" a ele o seu primeiro longa-metragem, Maldita Coincidência (1979), para "interpretar" o filme "Jogo das decapitações", de Jairo, que, por sua vez, dá o nome ao filme de Bianchi, de 2013 - inclusive a imagem do cartaz de divulgação de Jogo das decapitações (2013) mostra a mesma imagem da capa do DVD de Maldita Coincidência (1979). 



            Porém, mais do que simplesmente um metafilme, Jogo das decapitações (2013) parece reafirmar o posicionamento político de Maldita Coincidência (1979), trazendo à superfície sujeitos que ficaram submersos no mar de glórias da esquerda. Por exemplo, ambos os filmes compartilham um discurso, através de textos similares. Em Jogo das Decapitações (2013) ouvimos: "No futuro direita e esquerda jogarão o mesmo jogo, legitimadas por este tempo horrível que agora vivemos. Mudam as moscas, mas a merda continua a mesma." (voz de Jairo quando jovem); e em Maldita Coincidência (1979), aparece uma legenda onde se lê: "Prazer de dizer: que o poder no Brasil é formado por emigrantes, não importa que sejam de direita ou de esquerda, vendem o país, ..." Incorporando Maldita Coincidência como um elemento documental que "interpreta" uma ficção ("Jogo das decapitações", de Jairo) dentro da ficção (Jogo das decapitações (2013)), é possível resgatar e mostrar quem, de fato, eram esses sujeitos reais, dos anos 1970, que não tomavam partido nem da direita e nem da esquerda. Como diz Bianchi: "Meu novo filme trata da guerra velada que rachou minha geração. De um lado, havia os revolucionários que se dividiam em mais de 30 facções. Do outro, havia aqueles chamados de desbundados, que lutavam pela arte." (BIANCHI, 2013b). Essas 30 facções são citadas na segunda cena do filme, quando Marília explica ao filho um diagrama que interliga os diferentes grupos de esquerda, demonstrando a complexidade da luta e excluindo os artistas marginais, cujas opiniões políticas apartidárias deveriam ser lembradas, mesmo, porque, na atual conjuntura política, o termo "apartidário" ganhou grande relevância, não só no Brasil, como em grande parte do mundo.
            Assim, Jogo das decapitações (2013) pode ser visto como alegoria da possível monumentalidade da escrita fílmica; transformando Maldita Coincidência - que a princípio foi produzido como uma ficção alegórica do momento em que surgiu - em um documento histórico, pois itera Bianchi como cineasta "marginal", "maldito", do "desbunde" que, por sua vez, se identifica diretamente com a atividade do personagem Jairo, retificando-o historicamente, mesmo que através da ficção.
            Deve-se lembrar que é recorrente, na obra de Bianchi (assim como em outros cineastas), a inserção de trechos de filmes factuais em suas narrativas ficcionais, porém, é um tanto inusitado recorrer à trama de transformar uma obra de ficção em uma espécie de documento ficcional, para entendermos o passado. Ainda vale citar que em seu novo filme são retomados (recauchutados?), também, alguns elementos de seu mais famoso filme, Cronicamente Inviável (1999).
            Jogos das decapitação (2013) inicia-se com a primeira cena de Maldita Coincidência: um homem, dançando vestido com panos de cor roxa, um traje feminino, dirige-se ao público para apresentar a encenação prestes a começar. A segunda cena está descrita acima (Marília explicando a rede de grupos de esquerda), e a terceira, novamente, extraída de Maldita Coincidência: um homem que, com sarcasmo, mostra a receita de Coquetel Molotov - cena esta que, em 1980, foi cortada pela censura -, e a partir daí começa o novo filme de Bianchi, como se estivesse continuando o trabalho vetado mais de 30 anos antes. Trabalho este que, mesmo com o fim da censura política ideológica, continua sendo difícil de ser realizado.
            Apesar de todos os seus filmes discutirem política, em entrevistas, Bianchi não costuma defender lados, a não ser quando se trata de políticas culturais brasileiras. Esse assunto é motivo de ira para Bianchi. E nisso, Jairo parece o representar alegoricamente: o artista que está preso, cujo filme não chega até o público, pode ser análogo, na realidade de Bianchi, a dificuldade de produzir filmes no Brasil, fazendo com que a expressão artística fique aprisionada pelas políticas culturais.

Faço filmes para refletir o país onde vivo, mas eles sofrem, sim, uma censura. É a censura da burocracia, pois se criou uma indústria virtual no Brasil. De um lado, há uma briga pelo poder entre os que não têm tela, divididos entre associações. Do outro, existem pessoas que encontraram um caminho de sobreviver fazendo comedinhas. Mas a questão é: o cinema brasileiro só vai ser uma indústria, de verdade, quando os administradores públicos, leia-se Ancine e secretarias de Cultura, perceberem que 90% do circuito exibidor estão nas mãos dos americanos. (BIANCHI, 2013b)

d) Conclusão
            Além da teoria da História, de Benjamin e Le Goff, e a teoria do cinema, de Xavier, o artigo trouxe à discussão um pouco da teoria psicanalítica[2] lacaniana para abordar o teor "insólito", que podemos chamar aqui de um estilo de linguagem, muito recorrente na obra de Bianchi. Este teor ou estilo de linguagem, abordado através da psicanálise, é aqui entendido, como uma ferramenta para transmitir as contradições do comportamento humano com o discurso vigente do politicamente correto. A certa altura, o filme faz referência, quase direta, às concepções de pulsão de morte e sentimento de culpa, como descritas no clássico de Freud, Mal-estar na civilização, remetendo-nos à incoerência que pode ser observada nas pessoas que "se policiam para não serem violentos e não terem pensamentos violentos, mas que, no fundo, estão apenas esperando um líder que legitime a caça ou o extermínio do diferente. Que reestabeleça a ordem. Uma energia antiga do ser humano." (Silvio)   
            Os pontos mostrados neste artigo tiveram a intenção de refletir sobre o cinema como uma forma de documentação histórica, tendo se preocupado mais com o conteúdo do que com a forma, mirando, principalmente, em sua relação com o primeiro filme de Bianchi, Maldita Coincidência (1979), e com o personagem Jairo - interpretado por Paulo César Pereio - que este artigo entende como o personagem com maior identificação com o diretor do filme. No entanto, como diz Bianchi em entrevista, cada personagem criado para o filme "representa uma forma de pensar. Cada um é um carteiro, que dá uma mensagem. Silvio vive o mais inflamado. Mas não sou eu. Eu virei um conservador." (BIANCHI, 2013b)
            Há ainda outras crítica e outros personagens que não apareceram neste artigo. Podemos destacar, por exemplo, a jornalista que, ao fazer uma reportagem sobre pessoas que fumam crack nas ruas de São Paulo, demostra compaixão especial por uma moça, dentre os consumidores da droga, branca com a aparência de ser da classe média. Ou seja, Bianchi tenta mostrar como a sociedade tende a ficar mais chocada e tocada ao ver uma pessoa, que "teria" um futuro promissor, usando droga, do que quando se depara com o simples e conhecido mendigo, pobre e de descendência negra (afrobrasileiros, para ser mais correto), na mesma situação. Quanto aos outros personagens, pode ser útil destacar, também, que alguns dos atores que trabalham em Jogo das decapitações (2013) atuaram também em Maldita Coincidência (1979), podendo funcionar tanto como outro exercício de autorreferência, como para enxergarmos os desdobramentos da história. Assim como é dito que o personagem Vincent Vega, vivido por John Travolta, em Pulp Fiction (Quentim Tarantino, 1994), é Tony Manero, muitos anos depois, também vivido por John Travolta, em Embalos de Sábado á Noite, podemos pensar que o personagem que aparece em Maldita Coincidência (1979), instruindo-nos a preparar o Coquetel Molotov, pode ser hoje o senador Siqueira, de Jogo das decapitações (2013), ambos interpretados por Sérgio Mamberti, exatamente como vemos hoje no Brasil: os "terroristas" de ontem são os políticos de hoje.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. "Sobre o conceito da História". In: BARRENTO, João (Org. e Trad.). O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

BIANCHI, Sérgio. "'Jogo de decapitações’, de Sérgio Bianchi, faz sua estreia na Première Brasil em meio a protestos na Cinelândia". Depoimento [1 de outubro, 2013a]. Rio de Janeiro: Jornal O Globo. Entrevista concedida a Carlos Heli de Almeida.

__________. "Entre a revolta e o escárnio". Depoimento [15 de julho, 2013b]. Rio de Janeiro: Jornal O Globo. Entrevista concedida a Rodrigo Fonseca.

__________ Jogo das decapitações. [DVD-filme]. Fornecido por Sérgio Bianchi: 2013. Drama, 2013, cor, Brasil, 94 min.

__________ Maldita Coincidência. [DVD-filme] Versátil Home Video:2010. Drama, 1979, cor, Brasil, 82 min.

GINZBURG, Jaime. Memória da ditadura em Caio Fernando Abreu e Luís Fernando Veríssimo. O eixo e a roda, Belo Horizonte, v. 15, p. 43-54, 2007.

LE GOFF, Jacques. "Documento/Monumento". Tradução Suzana Ferreira Borges. In: História e Memória. Campinas: Editora Unicamp, 1985.

ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michael. Dicionário de Psicanálise. Tradução Vera Ribeiro, Lucy Magalhães; supervisão da edição brasileira Marco Antônio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

XAVIER. Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: Cosac Naify, 2012.


[1]  O artigo opta por usar Real com letra maiúscula quando trata do Real lacaniano. Jacques Lacan criou o hábito de grafar com letra maiúscula os três registros psíquicos desenvolvidos por ele: Real, Simbólico e Imaginário.
[2] A psicanálise é também explorada em Jogo das decapitações (2013), através dos sonhos de Leandro.