quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

INSÓLITO, PORÉM REAL: Percepções de Sérgio Bianchi sobre os desdobramentos da História recente do Brasil

Por Vivian Vigar
 
NA INTRODUÇÃO DO LIVRO ALEGORIAS DO SUBDESENVOLVIMENTO, ISMAIL XAVIER REFERE-SE A SÉRGIO BIANCHI (ENTRE OUTROS DA MESMA GERAÇÃO) COMO CINEASTA CUJA OBRA "SE PROPÕE COMO UM DESAFIO E PASSEIA POR UMA POÉTICA DO INSÓLITO DE MODO INCISIVO" (2012, P. 8). ENTENDENDO O TERMO "INSÓLITO" COMO ALGO EXTRAORDINÁRIO, FORA DO COMUM, QUE FOGE À REGRA, ESTE ARTIGO ANALISARÁ COMO O FILME JOGO DAS DECAPITAÇÕES REPRESENTA O BRASIL TANTO NA ÉPOCA DA REDEMOCRATIZAÇÃO E SEUS DESDOBRAMENTOS PRESENCIADOS HOJE, TOCANDO O QUE SE REFERE AO CONCEITO DE ALEGORIAS - OU SEJA, REPRESENTAÇÕES DAS "RELAÇÕES ENTRE OBRA E CONTEXTO SOCIAL" (XAVIER, 2012, P. 445) - E AO DE MONUMENTALIDADE - OU SEJA, O "ESFORÇO DAS SOCIEDADES HISTÓRICAS PARA IMPOR AO FUTURO, VOLUNTÁRIA OU INVOLUNTARIAMENTE, DETERMINADA IMAGEM DE SI PRÓPRIAS" (LE GOFF, 1985, P. 548), TENDO EM VISTA QUE O FILME INCIDE NA QUESTÃO DA PESQUISA HISTÓRICA, DE DADOS FACTUAIS E DA PRODUÇÃO ARTÍSTICA COMO EXPRESSÃO POLÍTICO-CULTURAL - NO CASO DE JOGOS DAS DECAPITAÇÕES, O CINEMA (EXPERIÊNCIA ARTÍSTICA DOCUMENTADA), TENDO COMO PANO DE FUNDO O REGIME POLÍTICO MILITAR E AS POLÍTICAS CULTURAIS.

a) Bianchi, o insólito e o Real
            Tendo construído sua obra cinematográfica nos últimos 35 anos, Sérgio Bianchi parece conservar, ainda, em Jogo das decapitações (2013), uma característica incômoda: a de evidenciar as deficiências da sociedade brasileira através do comportamento humano errante. Raramente seus personagens passam ilesos pelo crivo da moral e da ética. Apelando para a ironia e cinismo, ele faz parte de um grupo de cineastas que constrói uma narrativa estranha à conduta politicamente correta que o cinema brasileiro e, principalmente, as grandes produtoras, vêm adotando para o circuito comercial. Talvez seja esta a prática destacada por Ismail Xavier ao colocar Bianchi no hall dos cineastas que "se propõe como um desafio e passeiam pela poética do insólito" (2012, p. 8).
            Uma proposta insólita, porém real. Real[1] no sentido lacaniano, ou seja, como explica o Dicionário de Psicanálise, o real que "passou a ser empregado pelos filósofos como sinônimo de um absoluto ontológico, um ser-em-si que escaparia à percepção" (1998, p. 645). Em outras palavras, "a realidade psíquica, isto é, o desejo inconsciente e as fantasias que lhe estão ligadas, bem como um "resto": uma realidade desejante, inacessível a qualquer pensamento subjetivo"; ou ainda, "a dúvida fundadora necessária à ciência [... onde] não existe um sujeito" (ibidem). Talvez "escapar à percepção" seja enfático demais para este caso, mas é inquestionável a presença de uma "dúvida fundadora" nos filmes de Bianchi. Empregadas domésticas, assistentes sociais voluntários, intelectuais, donas de casa, bandidos, comerciantes, crianças, pessoas de todas as classes; cedo ou tarde esses personagens perdem a coerência com o discurso que defendem, transparecendo a inconsistência de seus caráteres. Vacilam, assim, em suas manifestações do registro Simbólico, aprendidas culturalmente, entrando no Real; este registro psíquico desvencilhado de acordos sociais.
            A impressão saliente da obra de Bianchi é que as boas ações dos indivíduos não passam de desculpas para colocar em prática as verdadeiras intenções egoístas, muitas vezes, ocultas para o próprio personagem. Assim como "tudo vira indústria" - e é o que diz Bianchi - consequentemente, tudo é motivo para se tirar vantagem, na mais crua tradução do capitalismo: o "toma-lá-dá-cá" de sujeitos dispostos a falsificarem boas causas para sobreviverem em um sistema que perdura pela fachada. O que Bianchi pretende mostrar, enfim, não é o novo, mas, sim, o nu, tentando penetrar o véu ideológico da velha dicotomia mocinho x bandido, trazendo à tona a dúvida que antecede o sujeito; a percepção de uma verdade social obscurecida pelas ferramentas ideológicas; assim como o desejo do Real é obscurecido pelas restrições impostas pela linguagem, ou em termos lacanianos, restrições do registro Simbólico.
            Insólito, porém real, também no sentido mais pragmático, de apresentar outro viés da história brasileira, diferente da história que, nas palavras de George Orwell, é "escrita pelos vencedores"; de apresentar uma perspectiva alheia aos protagonistas da História oficial. Como Slavoj Zizek poderia dizer, a respeito de uma narrativa insólita, uma narrativa "em paralaxe", ou ainda, segundo Walter Benjamin, em defesa do materialismo histórico, "escovar a História a contrapelo" (2012, p. 13).

b) O filme, a alegoria e a crítica à História oficial.
            Lá pelas tantas de Jogo das decapitações (2013), Marília, mãe do protagonista e ex-militante de esquerda, e seus colegas, também ex-militantes de esquerda, comemoram o recebimento de um cheque referente à indenização de presos políticos do regime militar (1964 - 1984). Para registrar o acontecimento, ela posa para uma foto, ao  lado de outros ex-presos políticos e os advogados que trabalham nos processos indenizatórios. Todos estão sorrindo aparentando satisfação. Ela pede, então, uma segunda fotografia: desta vez, acompanhada apenas dos "anistiados", os sorrisos ensaiados são abruptamente censurados pela indenizada propondo que todos mostrem seriedade, em respeito ao que passaram. Se muitas vezes nos deparamos com sorrisos forjados em fotografias, desta vez a simulada é a sisudez. Filmado em 2012, o filme parece pressagiar a situação patética na qual cinco atrizes da TV Globo protagonizaram, em setembro de 2013, ao protestar contra o novo julgamento do Mensalão, com uma foto "séria" nas redes sociais. Uma delas escreveu no Twitter: "Estou passada com a decisão do STF! Ministro Joaquim Barbosa, o senhor não está só. Estamos com você!", completando a mensagem com coraçõezinhos.
            As fotos são - e devem ser, de acordo com o texto "Documentos/Monumentos", de Jacques Le Goff (1985) - registros utilizados em muitos casos de análises históricas. Contudo, podem também funcionar como alegorias de determinadas situações. No caso do filme de Bianchi, a fotografia do grupo de companheiros de guerrilha é uma interpretação do diretor - que teve como ponto de partida, para o argumento do filme, a "raiva" que sente da sua própria geração por estar hoje envolvida "no jogo da direita e da esquerda (política) da briga pelo poder" (BIANCHI, 2013a) - a respeito do possível oportunismo dos antigos militantes diante da História. Como dito antes, para Bianchi, "tudo vira indústria", apontando para uma "alta classe falida paulista enlouquecida para ganhar dinheiro e lutando por indenização", completando que: "Tem professor marxista que não consegue ver a realidade. Funcionário do governo fabricante de dossiês". Para conseguirem suas indenizações, os antigos militantes se mostram como vítimas de uma guerra que, na verdade, ganharam. Como pergunta o protagonista do filme, Leandro, em provocação à sua mãe, Marília: “Por que vocês continuam o discurso de vítima mesmo quando vocês conseguem o que querem?”, referindo-se ao fato de que hoje a "esquerda" está no poder do Brasil.
            Já a foto-protesto citada acima, publicada pelas atrizes, em setembro - na onda das manifestações, diga-se de passagem - feitas para registrar a indignação delas, acabou por conotar uma ação política tão superficial quanto os papéis que elas interpretam nas novelas. Foi uma piada pronta; alegoria acidental do mau gosto e da relação efêmera que o brasileiro médio tem com suas opiniões políticas e com a História.
            Voltando ao filme Jogo das decapitações (2013), para agora entender sua crítica à História oficial, o enredo trata de um homem de 30 anos, Leandro, que, ainda morando na casa da mãe, Marília, não consegue se fixar em um emprego, enquanto, sem muita motivação, prossegue com sua pesquisa sobre a ditadura dos anos 1960/70 para o mestrado, na USP. Como o tema da pesquisa é, por razões óbvias, de grande interesse para sua mãe, ela o ajuda a reconstruir a complexa história da ditadura brasileira. Certa ocasião, ao pesquisar as fichas do DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social), Leandro se depara com a pasta de documentos a respeito de seu pai, Jairo, com quem ele nunca manteve contato: um artista performático típico daqueles que encarnavam o "desbunde" dos anos 1960 e 1970. Irônico e cínico, Jairo - a esta altura está preso sob a acusação de ter assassinado a esposa - ficou na memória dos colegas (inclusive, Marília) como "infantil", "cretino" e "canalha", que para "fazer o tipo maldito" dizia que "ser de esquerda era o esporte da burguesia". Não obstante, Leandro se interessa em ir atrás do pai, porém, neste momento, Jairo morre durante uma rebelião na penitenciária, fato que chega ao filho através do telejornal. Leandro, então, assiste a uma entrevista concedida por Jairo alguns anos antes, quando foi preso, se defendo da acusação de matar a esposa como infundada. Na entrevista, Jairo alega que o poder quer mantê-lo preso por ser uma pessoa incômoda, e como, após a redemocratização do País, não podem prendê-lo por subversão, estão o acusando de assassinato. O poder democrático ao qual Jairo se refere, é o atual, que está na mão de seus velhos conhecidos e companheiros de guerrilha da mãe de seu filho, Leandro: as mesmas pessoas que o qualificaram como "infantil", "cretino" e "canalha". Assim, Leandro, influenciado também pelo discurso cético de seu amigo, Silvio, aos poucos perde o foco de sua pesquisa acadêmica para procurar um filme dirigido por seu pai, no fim da década de 1970, intitulado "Jogo das decapitações" - que como elemento dinâmico da narrativa, dá título ao próprio filme de Bianchi aqui analisado. Portanto, temos o "Jogo das decapitações" de Jairo, como elemento, de Jogo das decapitações (2013), de Bianchi.
            Assim, Leandro abandona os registros oficiais dos anos de chumbo para tomar conhecimento da História (tanto a sua pessoal como a social) através da obra artística legada por seu difamado pai, remetendo-nos ao teor testemunhal que uma obra com pretensões artísticas pode ter.
A memória da ditadura militar brasileira se impõe como um problema fundamental para a crítica literária. Em um país em que as heranças conservadoras são monumentais, e as dificuldades para esclarecer o passado são consolidadas e reforçadas, o papel de escritores, cineastas, músicos, artistas plásticos, atores e dançarinos pode corresponder a uma necessidade histórica. Enquanto instituições e arquivos ainda encerram mistérios fundamentais sobre o passado recente, o pensamento criativo pode procurar modos de mediar o contato da sociedade consigo mesma, trazendo consciência responsável a respeito do que ocorreu (GINZBURG, 2007, p. 43-44).

            Podemos perceber, em Jogo das decapitações (2013), uma vontade de abandonar a História, que além de conservadora é, de acordo com Bianchi, mal contata, como dito pelo diretor: "eu vivi a agitação de 1964 e 1968 e sei que o discurso que se faz hoje sobre aquele período não se encaixa com o que eu vi na época" (BIANCHI, 2013b). Se partirmos da premissa de que Bianchi é uma testemunha histórica a ser considerada, podemos, então, levar em conta a sugestão de Le Goff sobre a análise histórica relevando o documento como um "produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder" (1985, p. 545). Estes documentos (produtos) são deixados para as próximas gerações como monumentos, em um "esforço das sociedades históricas para impor ao futuro, voluntária ou involuntariamente, determinada imagem de si próprias" (ibidem, p. 548). É, então, que Le Goff propõe seu método de questionar o documento/monumento, analisando as "perspectivas econômica, social, política, cultural, espiritual" para, enfim, enxergar que "ele [documento/monumento] é o testemunho de um poder polivalente e, ao mesmo tempo, cria-o":
Um monumento é, em primeiro lugar, uma roupagem, uma aparência enganadora, uma montagem. É preciso começar por desmontar, demolir esta montagem, desestruturar esta construção e analisar as condições de produção dos documentos-monumentos (1985, p. 548)

            Acrescentamos, então, que não apenas da produção do documento/monumento o historiador deva se ocupar. Mas, também, de seu armazenamento e manutenção. Leandro – como dito anteriormente, vai à procura dos rolos de filme deixados por Jairo -, descobre que dentre as duas cópias (rolos) existentes na videoteca da universidade; uma está em decomposição e não pode ser emprestada, e a outra foi retirada do lugar pelo produtor do filme. A pergunta que podemos fazer é: Por que um artista que tem sua morte anunciada na televisão, não tem a sua obra conservada? A "espetacularidade" de sua lenda passa a ser mais importante do que a crítica que ele fez sobre a sociedade, valendo apenas para ser lembrado como um "cretino", e, agora, assassino; afinal ele não aderiu ao movimento que, posteriormente, ascendeu ao poder.
            Jairo, como um artista sem identificação com os guerrilheiros de esquerda, teve sua participação histórica ofuscada pela sociedade e esquecido, ou quase esquecido, pela história, remetendo-nos, mais uma vez, a Benjamin. Na sua tese XII do ensaio "Sobre o conceito da história" (2012), podemos verificar uma reincidência de personagens históricos que foram esquecidos, como no caso de Jairo. E, neste caso, a frase "foram esquecidos" deve ser lida como uma ação de ser colocado no esquecimento:

"O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe lutadora e oprimida. Em Marx, ela surge como a última classe subjugada, a classe vingadora que levará às últimas consequências a obra de libertação em nome das gerações de vencidos. Essa consciência, que se manifestou por pouco tempo ainda no Movimento Espartaquista, foi sempre suspeita para a social-democracia. Em três décadas, ela conseguiu praticamente apagar o nome de Blanqui" (BENJAMIN, 2012, p. 16)

            Louis-Auguste Blanqui, apesar de ter sido ativista a favor da igualdade dos direitos humanos, na França do século XIX, não desligou-se de seus ideais republicanos, perdendo com isso sua identificação com a classe trabalhadora, a quem era atribuído o papel de "salvadora das gerações futuras" (ibidem, p. 17).
             Outro assunto enfatizado pelo filme é a manutenção do poder político através da violência contra as classes oprimidas. Bianchi denuncia o Brasil como um país que desde a colonização tem em sua base dinâmica a prática da tortura, no entanto, apenas aquelas pessoas torturadas durantes os 20 anos de ditadura têm direito à indenização, pessoas essas da classe média. Por que os escravos ou os presidiários não têm direito à indenização? Esta pergunta ganha a voz em Silvio, que na ocasião de uma vernissagem de arte organizada por Marília, lembrando a tortura dos militares, diz: “Um preso comum é torturado sistematicamente por qualquer contravenção, desde sempre! Desde quando eles eram escravos legítimos... será que ele não deveria estar aqui com a gente - tirando fotos, tomando esse whiskyinho e comendo canapés?”.

c) Metafilme: A "escrita fílmica" como monumentalidade e alegoria
            Para atender a demanda conceitual da "'escrita fílmica' como monumentalidade e alegoria", podemos explorar uma curiosidade, que apesar de ter sido pouco citada pela crítica especializada, parece importante para a narrativa de Jogo das decapitações (2013). Jairo tem um perfil semelhante ao de Bianchi; tão semelhante que Bianchi "empresta" a ele o seu primeiro longa-metragem, Maldita Coincidência (1979), para "interpretar" o filme "Jogo das decapitações", de Jairo, que, por sua vez, dá o nome ao filme de Bianchi, de 2013 - inclusive a imagem do cartaz de divulgação de Jogo das decapitações (2013) mostra a mesma imagem da capa do DVD de Maldita Coincidência (1979). 



            Porém, mais do que simplesmente um metafilme, Jogo das decapitações (2013) parece reafirmar o posicionamento político de Maldita Coincidência (1979), trazendo à superfície sujeitos que ficaram submersos no mar de glórias da esquerda. Por exemplo, ambos os filmes compartilham um discurso, através de textos similares. Em Jogo das Decapitações (2013) ouvimos: "No futuro direita e esquerda jogarão o mesmo jogo, legitimadas por este tempo horrível que agora vivemos. Mudam as moscas, mas a merda continua a mesma." (voz de Jairo quando jovem); e em Maldita Coincidência (1979), aparece uma legenda onde se lê: "Prazer de dizer: que o poder no Brasil é formado por emigrantes, não importa que sejam de direita ou de esquerda, vendem o país, ..." Incorporando Maldita Coincidência como um elemento documental que "interpreta" uma ficção ("Jogo das decapitações", de Jairo) dentro da ficção (Jogo das decapitações (2013)), é possível resgatar e mostrar quem, de fato, eram esses sujeitos reais, dos anos 1970, que não tomavam partido nem da direita e nem da esquerda. Como diz Bianchi: "Meu novo filme trata da guerra velada que rachou minha geração. De um lado, havia os revolucionários que se dividiam em mais de 30 facções. Do outro, havia aqueles chamados de desbundados, que lutavam pela arte." (BIANCHI, 2013b). Essas 30 facções são citadas na segunda cena do filme, quando Marília explica ao filho um diagrama que interliga os diferentes grupos de esquerda, demonstrando a complexidade da luta e excluindo os artistas marginais, cujas opiniões políticas apartidárias deveriam ser lembradas, mesmo, porque, na atual conjuntura política, o termo "apartidário" ganhou grande relevância, não só no Brasil, como em grande parte do mundo.
            Assim, Jogo das decapitações (2013) pode ser visto como alegoria da possível monumentalidade da escrita fílmica; transformando Maldita Coincidência - que a princípio foi produzido como uma ficção alegórica do momento em que surgiu - em um documento histórico, pois itera Bianchi como cineasta "marginal", "maldito", do "desbunde" que, por sua vez, se identifica diretamente com a atividade do personagem Jairo, retificando-o historicamente, mesmo que através da ficção.
            Deve-se lembrar que é recorrente, na obra de Bianchi (assim como em outros cineastas), a inserção de trechos de filmes factuais em suas narrativas ficcionais, porém, é um tanto inusitado recorrer à trama de transformar uma obra de ficção em uma espécie de documento ficcional, para entendermos o passado. Ainda vale citar que em seu novo filme são retomados (recauchutados?), também, alguns elementos de seu mais famoso filme, Cronicamente Inviável (1999).
            Jogos das decapitação (2013) inicia-se com a primeira cena de Maldita Coincidência: um homem, dançando vestido com panos de cor roxa, um traje feminino, dirige-se ao público para apresentar a encenação prestes a começar. A segunda cena está descrita acima (Marília explicando a rede de grupos de esquerda), e a terceira, novamente, extraída de Maldita Coincidência: um homem que, com sarcasmo, mostra a receita de Coquetel Molotov - cena esta que, em 1980, foi cortada pela censura -, e a partir daí começa o novo filme de Bianchi, como se estivesse continuando o trabalho vetado mais de 30 anos antes. Trabalho este que, mesmo com o fim da censura política ideológica, continua sendo difícil de ser realizado.
            Apesar de todos os seus filmes discutirem política, em entrevistas, Bianchi não costuma defender lados, a não ser quando se trata de políticas culturais brasileiras. Esse assunto é motivo de ira para Bianchi. E nisso, Jairo parece o representar alegoricamente: o artista que está preso, cujo filme não chega até o público, pode ser análogo, na realidade de Bianchi, a dificuldade de produzir filmes no Brasil, fazendo com que a expressão artística fique aprisionada pelas políticas culturais.

Faço filmes para refletir o país onde vivo, mas eles sofrem, sim, uma censura. É a censura da burocracia, pois se criou uma indústria virtual no Brasil. De um lado, há uma briga pelo poder entre os que não têm tela, divididos entre associações. Do outro, existem pessoas que encontraram um caminho de sobreviver fazendo comedinhas. Mas a questão é: o cinema brasileiro só vai ser uma indústria, de verdade, quando os administradores públicos, leia-se Ancine e secretarias de Cultura, perceberem que 90% do circuito exibidor estão nas mãos dos americanos. (BIANCHI, 2013b)

d) Conclusão
            Além da teoria da História, de Benjamin e Le Goff, e a teoria do cinema, de Xavier, o artigo trouxe à discussão um pouco da teoria psicanalítica[2] lacaniana para abordar o teor "insólito", que podemos chamar aqui de um estilo de linguagem, muito recorrente na obra de Bianchi. Este teor ou estilo de linguagem, abordado através da psicanálise, é aqui entendido, como uma ferramenta para transmitir as contradições do comportamento humano com o discurso vigente do politicamente correto. A certa altura, o filme faz referência, quase direta, às concepções de pulsão de morte e sentimento de culpa, como descritas no clássico de Freud, Mal-estar na civilização, remetendo-nos à incoerência que pode ser observada nas pessoas que "se policiam para não serem violentos e não terem pensamentos violentos, mas que, no fundo, estão apenas esperando um líder que legitime a caça ou o extermínio do diferente. Que reestabeleça a ordem. Uma energia antiga do ser humano." (Silvio)   
            Os pontos mostrados neste artigo tiveram a intenção de refletir sobre o cinema como uma forma de documentação histórica, tendo se preocupado mais com o conteúdo do que com a forma, mirando, principalmente, em sua relação com o primeiro filme de Bianchi, Maldita Coincidência (1979), e com o personagem Jairo - interpretado por Paulo César Pereio - que este artigo entende como o personagem com maior identificação com o diretor do filme. No entanto, como diz Bianchi em entrevista, cada personagem criado para o filme "representa uma forma de pensar. Cada um é um carteiro, que dá uma mensagem. Silvio vive o mais inflamado. Mas não sou eu. Eu virei um conservador." (BIANCHI, 2013b)
            Há ainda outras crítica e outros personagens que não apareceram neste artigo. Podemos destacar, por exemplo, a jornalista que, ao fazer uma reportagem sobre pessoas que fumam crack nas ruas de São Paulo, demostra compaixão especial por uma moça, dentre os consumidores da droga, branca com a aparência de ser da classe média. Ou seja, Bianchi tenta mostrar como a sociedade tende a ficar mais chocada e tocada ao ver uma pessoa, que "teria" um futuro promissor, usando droga, do que quando se depara com o simples e conhecido mendigo, pobre e de descendência negra (afrobrasileiros, para ser mais correto), na mesma situação. Quanto aos outros personagens, pode ser útil destacar, também, que alguns dos atores que trabalham em Jogo das decapitações (2013) atuaram também em Maldita Coincidência (1979), podendo funcionar tanto como outro exercício de autorreferência, como para enxergarmos os desdobramentos da história. Assim como é dito que o personagem Vincent Vega, vivido por John Travolta, em Pulp Fiction (Quentim Tarantino, 1994), é Tony Manero, muitos anos depois, também vivido por John Travolta, em Embalos de Sábado á Noite, podemos pensar que o personagem que aparece em Maldita Coincidência (1979), instruindo-nos a preparar o Coquetel Molotov, pode ser hoje o senador Siqueira, de Jogo das decapitações (2013), ambos interpretados por Sérgio Mamberti, exatamente como vemos hoje no Brasil: os "terroristas" de ontem são os políticos de hoje.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. "Sobre o conceito da História". In: BARRENTO, João (Org. e Trad.). O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

BIANCHI, Sérgio. "'Jogo de decapitações’, de Sérgio Bianchi, faz sua estreia na Première Brasil em meio a protestos na Cinelândia". Depoimento [1 de outubro, 2013a]. Rio de Janeiro: Jornal O Globo. Entrevista concedida a Carlos Heli de Almeida.

__________. "Entre a revolta e o escárnio". Depoimento [15 de julho, 2013b]. Rio de Janeiro: Jornal O Globo. Entrevista concedida a Rodrigo Fonseca.

__________ Jogo das decapitações. [DVD-filme]. Fornecido por Sérgio Bianchi: 2013. Drama, 2013, cor, Brasil, 94 min.

__________ Maldita Coincidência. [DVD-filme] Versátil Home Video:2010. Drama, 1979, cor, Brasil, 82 min.

GINZBURG, Jaime. Memória da ditadura em Caio Fernando Abreu e Luís Fernando Veríssimo. O eixo e a roda, Belo Horizonte, v. 15, p. 43-54, 2007.

LE GOFF, Jacques. "Documento/Monumento". Tradução Suzana Ferreira Borges. In: História e Memória. Campinas: Editora Unicamp, 1985.

ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michael. Dicionário de Psicanálise. Tradução Vera Ribeiro, Lucy Magalhães; supervisão da edição brasileira Marco Antônio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

XAVIER. Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: Cosac Naify, 2012.


[1]  O artigo opta por usar Real com letra maiúscula quando trata do Real lacaniano. Jacques Lacan criou o hábito de grafar com letra maiúscula os três registros psíquicos desenvolvidos por ele: Real, Simbólico e Imaginário.
[2] A psicanálise é também explorada em Jogo das decapitações (2013), através dos sonhos de Leandro.
 

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

A CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO SOCIAL DOS MORADORES DO LIXÃO: Estamira e Avenida Brasil


Por Vivian Vigar e Arthur Meucci

APLICANDO ALGUNS CONCEITOS SUGERIDOS POR SLAVOJ ŽIŽEK - COMO O "HERÓI MODERNO", O "COMUNISTA LIBERAL" E AS "NOVAS FORMAS DE APARTHEID" - NA ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO SOCIAL DO MORADOR DOS ATERROS SANITÁRIOS DO BRASIL. PARA TANTO UTILIZAMOS DOIS PRODUTOS MIDIÁTICOS - UM REALIZADO PARA TELEVISÃO E OUTRO PARA O CINEMA, RESPECTIVAMENTE, UMA OBRA DE FICÇÃO E UMA DE NÃO-FICÇÃO - DELIMITANDO NOSSO ENTENDIMENTO A CERCA DE SUAS TEORIAS NARRATIVAS E, FINALMENTE, IDENTIFICANDO UM TRAÇO IDEOLÓGICO, NAS CONSTRUÇÕES, CUJA HERANÇA PODE SER RESGATADA TANTO NA LUTA DE CLASSES COMO NA MORAL CRISTÃ.

Introdução
Dentro da tradição de pesquisa no campo da comunicação há duas linhas de pesquisa que pautam a produção de conhecimento. A primeira linha estuda a produção e divulgação da mensagem midiática dentro dos processos educativos. A segunda linha estuda a recepção das mensagens midiáticas e seu impacto no espectador. Esta pesquisa se enquadra exclusivamente na primeira linha, pois busca refletir a construção (sendo assim, a produção) do imaginário sobre o morador de aterro sanitário (lixão) através do filme-documentário Estamira e da telenovela Avenida Brasil.
Estamira, que teve o roteiro e direção do cineasta Marcos Prado, foi premiado em festivais nacionais e internacionais de cinema. O filme mostra a vida de Estamira Gomes de Souza, que há 20 anos trabalhava no aterro sanitário Jardim Gramacho. Por conta da repercussão social do documentário, e sua utilização para fins educativos, ele foi disponibilizado pelo cineasta na internet em licença pública[1].
Transmitida no horário nobre da Rede Globo de Televisão, a telenovela Avenida Brasil, criada e escrita por João Emanuel Carneiro e dirigida por Ricardo Waddington, foi sucesso de audiência e de críticas. A história narra os planos de vingança arquitetados pela protagonista Rita (posteriormente chamada de Nina pela família adotiva) contra sua ex-madrasta Carminha, que arquitetou a morte de seu pai, Genésio, e que a abandonou em um aterro sanitário, onde foi salva por Mãe Lucinda e depois adotada por uma família da Argentina. Exibida inicialmente no dia 26 de março de 2012 foi encerrada no dia 19 de outubro do mesmo ano.
Recorrendo às estruturas do documentário, propostas por Bill Nichols (acadêmico e crítico cinematográfico norte-americano do campo dos filmes documentário), e às estruturas da telenovela, como registradas por Maria Lourdes Motter, analisaremos o processo de "estereotipação" dos protagonistas, adaptado de acordo com sistema social, para funcionarem ideologicamente na construção do imaginário coletivo dos reais moradores de aterro sanitários. Ou seja, partimos da preposição de que a composição de um personagem, tanto na ficção como na não-ficção, agenda temas que podem ser discutidos academicamente, visando entender a, quase imperceptível, incisão ideológica no imaginário social. Para tanto, utilizaremos, predominantemente, o teórico Slavoj Žižek, na tentativa de identificar interdisciplinarmente[2] o viés ideológico pelo qual defendemos ser construído o imaginário social.

Telenovelas e documentários
            Antes de iniciarmos a análise da construção do imaginário através dos personagens aqui sugeridos, demonstraremos, brevemente, o que entendemos por filmes documentários e telenovelas.
Toda telenovela é essencialmente uma novela representada teatralmente. O dicionário Houaiss define novela como uma “narrativa breve, maior do que um conto e menor do que um romance, e que se caracteriza por apresentar uma espécie de concentração temática em torno de um número restrito de personagens” (2009, p. 1364) e a telenovela como "novela escrita diretamente ou adaptada para televisão sob a formula de capítulos diários" (ibidem, p. 1824). Ainda segundo o dicionário, toda novela se estrutura na figura de um protagonista e de um antagonista, constatação referendada pela pesquisadora Maria Lourdes Motter: “Na telenovela, como na história das narrativas que atravessam o tempo, o herói deve ser alguém que tenha qualidades, se não excepcionais, pelo menos diferenciadas. Suas virtudes nascem da relação que se estabelece com seus antagonistas” (Motter, 2004, p. 66).
            A telenovela da qual nos referimos aqui é tida como uma obra de ficção, com atores que interpretam histórias concebidas pelos autores, mesmo que, muitas vezes, percorram situações factuais. Na telenovela Páginas da Vida (2006), por exemplo, ao final de cada capítulo era exibido um depoimento de uma “pessoa real” sobre um caso de sua vida relacionado a trama da novela. De acordo com a colunista de telenovelas Laura Mattos, ouvida por Alexandre T. Santos para escrever O docudrama na telenovela: qualquer semelhança com fatos e pessoas reais terá sido mera coincidência?  (2008), a finalidade do autor de Páginas da Vida, Manoel Carlos, era de fazer o telespectador se identificar com os personagens da novela, evidenciando a proximidade entre ficção e a vida real.
            A telenovela analisada neste artigo, Avenida Brasil, não pretendeu de forma alguma, ser um relato não ficcional, mas observamos que ela percorre temas familiares a todos os brasileiros, como o abandono de crianças, a miséria e a nova classe C. Nilson Xavier, crítico de novelas e autor do Almanaque das Telenovelas Brasileiras, observou que:
A novela [Avenida Brasil] fez um bom uso da situação socioeconômica do País para refletir na tela um retrato pitoresco de nossa realidade contemporânea. (...)
A “nova classe C” da novela cativou todas as classes. Como em um jogo de certo e errado, o autor brincou com as nuances simbólicas de ricos e pobres, elaborando uma crítica social muito pertinente, seja através da grã-fina da Zona Sul (Verônica/Débora Bloch), que fazia pouco caso da figura do suburbano, ou no pobre novo-rico que zombava do elitismo. (...) (Xavier, sem data)[3]

            Ainda no mesmo texto, Xavier mostra que, apesar da referência ao fenômeno na economia brasileira, o autor da telenovela, João Emanuel Carneiro, nega ter qualquer “ambição sociológica” ou “vontade de fazer uma novela sociológica sobre o Brasil atual”, e afirma que Avenida Brasil é “um exercício de ficção” (Carneiro apud Xavier) cujas referências vem de personagens ambíguos: como Raskolnokov, de Crime e Castigo;  e o lixão, inspirado em Charles Dinkens, referindo-se a saga em duas fases de Oliver Twist.
            É possível enxergar a cima, algumas questões que podem anuviar a fronteira entre o que é entendido como ficção e não-ficção, e para não ficarmos no empasse, e podermos seguir a diante na proposta deste artigo, optamos por uma visão que busca traçar uma linha entre os dois tipo de narrativa. Fernão Pessoa Ramos[4], percebe esse empasse apontando para uma hegemonia “em nossa época que tem um certo orgulho em mostrar fronteiras tênues entre o campo da ficção e da não-ficção, embaralhando definições”, devido a “preocupação do pensamento contemporâneo em frisar a fragmentação da subjetividade que sustenta a representação.” (Ramos, 2001, p. 198) Contrapondo-se a este entendimento dominante, é proposto, então, um recorte analítico-cognitivista para singularizar o documentário. De acordo com Ramos, este recorte trabalha com dois conceitos:
            A) “Proposição assertiva” - Onde distinguimos a concepção originária da obra, que por sua vez é
composta por enunciados sobre o mundo, caracterizados como asserções.(...) O discurso documentário seria uma narrativa com imagens, composta por asserções que mantém uma relação com a realidade que designam (...) A asserção documentária deve, para a abordagem analítica, ser definida e trabalhada a partir de proposições lógicas, que fecham o campo para a definição de seu conteúdo de verdade. (ibidem, p. 200 -2003)

            B) “Indexação” - “aponta para uma dimensão pragmática, receptiva, do documentário”, levando em conta os objetivos dos realizadores e a postura dos espectadores que podem, de acordo com Ramos, tentar construir uma ambiguidade ou se enganarem, respectivamente. “Mas no geral temos um saber prévio sobre se estamos expostos a uma narrativa documental ou ficcional.” (ibidem, p. 203-204 ).
            Para entender melhor este recorte podemos nos voltar a obra referencial usada por Ramos, Introdução ao Documentário (2012), do teórico e crítico de cinema documental, Bill Nichols, que se prolonga em definir como sabemos se estamos assistindo a um documentário ou a uma obra de ficção, abordando, entre outras análises, quatro ângulos presentes em um filme:
            A) A estrutura Institucional: as instituições que produzem o filme os distribuem com o rótulo de documentário ou ficção “antes de qualquer iniciativa do crítico ou do espectador” (Nichols, 2012, p. 49). No caso de Estamira, sabemos a princípio que é um documentário, pois estreou em vários festivais de cinema do gênero, como o festival É Tudo Verdade, o Festival Internacional de Documentário de Marseille, Festival Biografilm, entre outros, além de ter recebido vários prêmios na categoria “documentários” em outras competições de cinema em geral.
            B) A comunidade de profissionais: “Os documentaristas compartilham o encargo, auto imposto, de representar o mundo histórico em vez de inventar criativamente mundos alternativos” (ibidem, p. 53), diferente dos roteiristas de ficção que tem, em seu escopo de trabalho, a tarefa de elaborar histórias originais. Marcos Prado, como veremos mais a frente, já constituía uma carreira artística voltada para a documentação histórica há muitos anos, mesmo que de maneira poética. Conhecendo a origem profissional do diretor, o espectador terá reforçado que assistirá a um relato factual.
            C) O corpus de textos:  Os documentários sustentam “um argumento, uma afirmação ou uma alegação fundamental sobre o mundo histórico”. (ibidem, p. 55) e, normalmente, apresentam uma “lógica informativa”. Parte de um problema, atravessa uma complexidade, até encontrar uma solução ou caminho para esta, onde o espectador poderá se associar. No caso de Estamira há uma alegação de que a protagonista sofre com distúrbios psiquiátricos devido as dificuldades que passou em sua vida, ainda que deixe para o espectador a oportunidade para refletir sobre as condições mostradas no filme. Porém, mais relevante para a distinção entre ficção e documentário é o uso de dados de arquivos (documentos) e  montagem (uso de voz-over, depoimentos, que indicam  a imagem).
            D) O conjunto de espectadores: Existe uma relação indexadora das imagens e sons usufruídas pelos espectadores com o mundo histórico: percepção de que o que é visto na tela não aconteceu exclusivamente para o filme. O espectador, sujeito visualmente e auditivamente treinado com o mundo do espetáculo, consegue perceber se o que ele está assistindo é uma cena montada em um estúdio. Mesmo que suscetível ao ludíbrio (como é o caso dos mockumentários[5] This is Spinal Tap [Rod Reiner, 1982] e A bruxa de Blair [Daniel Myrick, 1999]), normalmente,  o espectador faz essa distinção intuitivamente.
            Nesta difícil tarefa, Nichols, ainda defende que todo o filme é, de certa forma, um documentário, pois mesmo na ficção está impresso,  através de narrativas imaginadas, nossos sonhos ou pesadelos, prazeres ou angústias, frutos da época em que foi produzido e que as pessoas vivenciam; o que Hegel chamou de Zeitgeist.  A esses filmes, Nichols  classifica como “documentários de satisfação de desejos”, ou seja, a sublimação por meio da arte, como entendida por Freud em O mal-estar na cultura, pode saciar, ainda que apenas em parte, não somente as vontades do criador, mas também de seus espectadores

(...) a satisfação é obtida a partir de ilusões reconhecidas como tais, sem que se permita  que o afastamento da realidade perturbe o gozo. A região donde provém tais ilusões é a da fantasia; quando o desenvolvimento do senso de realidade se completou, ela foi expressamente dispensada das  exigências da prova de realidade e foi destinada ao cumprimento de desejos de difícil realização. No topo dessas satisfações fantasísticas se encontra o gozo de obras de arte, também tornado acessível a quem não é criador através da mediação do artista. Quem é sensível à influência da arte não tem palavras suficientes para louvá-la como fonte de prazer e consolo a vida. No entanto, a suave narcose em que a arte nos coloca não é capaz de produzir mais do que uma fugaz libertação das desgraças da vida, e não é forte o bastante para fazer esquecer a miséria real.
(FREUD, 2010 [1929], p. 71)

            Na telenovela Avenida Brasil, por exemplo, grande parte do enredo foi criado a partir de imaginários da cultura popular, como por exemplo o estereótipo do novo-rico vivido pelo jogador de futebol, Tufão, e sua família, representado pelo mau gosto e exagero na decoração da casa e na forma de se vestir. Ou ainda as “periguetes”, que já faziam parte do imaginário coletivo, principalmente entre os cariocas, mas que ganharam mais notoriedade após a novela. Ou mesmo temas, recorrentes desde as tragédias gregas, relacionados a "Eros (amor romântico, prazer) e thymos (inveja, competição, reconhecimento)" (Žižek, 2008, p. 186). Os espectadores podem, por meio desses personagens de ficção se identificar e expressar suas vontades em julgar ou torcer; ou seja, satisfazer, de uma forma socialmente aceitável, "os desejos de difícil realização".
            Por outro lado, Nichols classifica como  “documentários de representação social” aquilo o que:
... comumente chamamos de não-ficção. Esses filmes nos dão uma representação tangível dos aspectos do mundo que nós vivemos e compartilhamos. Ele faz com que a realidade social seja visível e audível em uma forma distinta, de acordo com os atos de seleção e arranjos realizado por um cineasta. Eles dão um senso do que a realidade pode ter sido, pode ser agora, ou poderá vir a ser. Esses filmes podem também carregar verdades, se optarmos que sim. Cabe a nós avaliar suas reivindicações e afirmações, suas perspectivas e argumentos em relação ao mundo como conhecemos e decidirmos se é ou não é digno de nossa confiança. Documentários de representação social nos oferece  novas visões e para explorar e compreender o nosso mundo. (Nichols, 2001, p.2)

            Tendo delineado, brevemente, nosso entendimento sobre filmes documentários em relação a Estamira, e telenovelas, em relação a Avenida Brasil, podemos agora passar por algumas ideias sobre a construção do imaginário social para, então, analisarmos os dois objetos aqui propostos.

Imaginário Social
O imaginário socialmente construído pelo senso comum influencia e é influenciado pelas representações sociais que as mídias fazem de seus personagens. Tanto em Avenida Brasil quanto em Estamira as personagens e seus coadjuvantes interagem com as identidades culturais do nosso país, reproduzindo ou questionando como rotulamos as pessoas segundo suas crenças religiosas, profissões, região em que mora e, principalmente, sobre tudo aquilo que consomem ou deixam de consumir. O imaginário oferecido pela cultura nacional, como nos ensina Stuart Hall,
são compostas não apenas de instituições culturais, mas também dos símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influência e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos. (2002, p. 50)

            As estruturas culturais de uma sociedade estão cunhadas nos mitos reproduzidos por suas histórias e seus sistemas de educação familiar, midiático, escolar e econômico que, imperceptivelmente, perpetuam os símbolos e representações que constituem o imaginário sobre a realidade que todos os membros do grupo compartilham. As construções dos personagens de Avenida Brasil e de Estamira não passaram incólumes aos estereótipos presentes no discurso do senso comum.
            Tantos os moradores presentes no aterro sanitário da telenovela quanto os do documentário são apresentados como pessoas em estado de miséria, sem estrutura familiar ou respaldo do Estado, carregando uma desgraça particular que “justifica” suas situações - na novela Mãe Lucinda e Carminha são vítimas da maldade de Santiago, e Rita vítima da maldade de Carminha. Já no filme, Estamira é apresentada como vítima de seus dois ex-maridos, de seu pai e de seu avô, além de ser portadora de uma grave doença psíquica.
Ao contrário dos moradores de calçada, tidos pelo senso comum como potencialmente maus e repugnantes (Hana, 2012), os moradores de aterro sanitário são socialmente bem vistos e geram comoção, o que pode ser constatado através em dois fatores: primeiro, quem está no “lixão” trabalha; já quem mora na calçada não exerce uma atividade econômica "legítima"; eles, normalmente, vivem de restos e esmolas. A ideologia cristã do trabalho sofrido e mal remunerado, encarnado por pessoas humildes, casa perfeitamente com o estereótipo dos moradores de aterro. Tanto Mãe Lucinda quanto Estamira são retratadas em discursos religiosos e como porta-vozes da moralidade, o mesmo acontece com Rita e Carminha quando residem no aterro. O segundo fator pode ser explicado por meio das novas formas de apartheid proposto por Žižek: "Estamos testemunhando um crescimento rápido de uma população fora do controle do Estado, que vive em condições fora da lei, com necessidade urgente de formas mínimas de auto-organização". (Žižek, 2012, p. 419) Enquanto o morador de calçada circula livremente pela cidade sem se preocupar com a classe social que reside ou trabalha na região onde se encontra, o morador do aterro sanitário se fixa em um local específico, longe do contato visual da "elite".  A esta "elite",  Žižek chamará de comunistas liberais: são sujeitos que vivem segregados em suas comunidades e condomínios ("gated communities"), e ainda, acreditam estar construindo um mundo melhor, fazendo caridade, "comendo alimentos orgânicos e tirando férias em reservas florestais". (Žižek, 2008, p. 27).
            Tomando, então, por pressuposto que o imaginário social se desenvolve a partir de estruturas sociais, podemos utilizar a concepção de representação social de John Thompson. No livro Ideologia e Cultura Moderna (1995), o sociólogo entende que fenômenos culturais, aceitos e transmitidos, são formas simbólicas em contextos estruturados, levando em consideração que esta concepção é parte de uma análise “estrutural” da cultura onde “formas simbólicas estão inseridas em contextos sociais estruturados que envolvem relação de poder, formas de conflito, desigualdade em termos de distribuição de recursos e assim por diante” (Thompson, 1995, p. 22).
            Ele segue explicando como essas formas simbólicas sofrem um processo de valorização (valor simbólico ou valor econômico) e são transmitidas culturalmente através do que ele chama de “reprodução simbólica de contextos sociais” que, como uma ferramenta ideológica, serve “em circunstâncias específicas, para estabelecer, manter e reproduzir relações sociais que são, sistematicamente, assimétricas em termos de poder” (ibidem, p. 203), fazendo transparecer em suas considerações, uma arbitrariedade, por parte do poder dominante, na constituição do imaginário social.
Os problemas econômicos e sociais do país, que atuam como causa determinante da situação de miséria, e é sistematicamente representado e assimilado no imaginário social, é dito ou retratado en passant, como se fosse um fato triste e comum; sintoma de anos de exploração colonial: o Brasil preso nas armadilhas de sua história e que, agora, "comunistas liberais" - como Žižek se refere a empresários como Bill Gates e George Soros - dedicam parte de seu tempo a causas humanitárias, se mostrando dispostos a reverter esta situação. Um imaginário social que parte de uma miséria enraizada na história, assim redimindo a classe dominante de culpa, e encontra sua solução nas boas ações dessa classe. Porém, longe de ser verdadeiramente funcional, esta prática comunista liberal vela a exploração e a competição injusta de mercado, para, enfim, legitimar o capitalismo global, e manter a estrutura de dominação.

Na ética comunista liberal a perseguição implacável do lucro é contrabalançada pela caridade. Caridade é a máscara que esconde a face da exploração econômica. Em uma chantagem de proporções gigantescas, os países desenvolvidos "ajudam" o subdesenvolvido, com auxílio, créditos, e assim por diante, e, assim, evitando a questão-chave, ou seja, a sua cumplicidade e coresponsabilidade pela situação miserável do subdesenvolvido. (Žižek, 2008, p. 22)

            Podemos trazer para este contexto os programas de incentivos culturais e ONGs, que atuam no Brasil, fomentando a produção, por exemplo, cinematográfica ou com programas de sustentabilidade. No Brasil, a Petrobrás é um dos casos mais evidentes: se por um lado é frequentemente denunciada por danos ambientais, por outro, está constantemente lançando novos programas de recuperação e preservação ambiental, além de financiar inúmeros projetos culturais.
            O filme Estamira, também teve patrocínio da indústria petrolífera, no caso, a empresa Aster Petróleo, que encerrou suas atividades em 2004 (antes do lançamento do filme), com uma dívida de cerca de R$ 80 milhões. O proprietário desta empresa, de acordo com a revista Veja,[6] esteve envolvido, no ano 1997, em um caso flagrante de prostituição envolvendo menores. Também foram patrocinadores do filme as empresas Vivo (telecomunicações), Fósferti (indústria de fertilizantes), Teadit (manutenção industrial), Momsem & Leonardos (registros e patentes) e Hotel Marina.

A moral cristã no imaginário social
            Tendo em mente o que entendemos por ficção, não-ficção e imaginário social podemos nos concentrar agora na análise da construção de nossos objetos de estudo.
            Antes de estrear como cineasta, Marcos Prado, trabalhava como fotógrafo publicitário e interessava-se por ensaios a longo prazo de fotojornalismo. O trabalho de fotografia documental[7] no aterro sanitário de Jardim Gramacho, iniciou em 1992 (na época da Eco-92), com o objetivo de entender porquê, no Brasil, não havia coleta seletiva de lixo. Após sete anos fotografando o lixão percebeu que não havia feito retratos das pessoas que por ali passavam seus dias, e explica que a lacuna decorreu das ameaças que sofria de uma parcela menor da população do local, de  criminosos e foragidos, temerosos que o as imagens fossem publicadas. Prado resolveu, então, se aproximar dos idosos, acreditando que estes não lhe ofereceriam riscos caso os fotografasse. Foi nesta circunstância que conheceu Estamira, de 63 anos, e teve a ideia de acompanhá-la e fazer o documentário. Ainda de acordo com o cineasta, Estamira, concordou plenamente com a ideia, declarando para Prado que esperava por esse momento a vida toda.
            Com três filhos[8] (Hernani do primeiro casamento, Carolina do segundo casamento e Maria Rita, de um relacionamento não oficial), e dois netos, Estamira, que apesar de ter uma casa  na região de Campo Grande - RJ (construída com tábuas de madeira, que gostava muito e acreditava ser “abençoado”),  passava a maior parte dos seus dias no aterro recolhendo material que pudesse reaproveitar, além de alimentos que considerava comestíveis.
            Seus filhos não concordavam com a escolha da mãe de viver no aterro. O filho mais velho, Hernane, já havia tentado interná-la contra sua vontade enquanto Carolina, a filha do meio demonstrava mais ponderação: ela percebia que a mãe precisava de cuidados médicos (inclusive a acompanhava em algumas visitas ao CAPS - Centros de Atenção Psicossocial - onde a mãe era medicada periodicamente), mas acreditava ser uma “judiação” interná-la, pois sabia o quanto Estamira presava por sua liberdade. Carolina relata que vivenciou, junto com Estamira a internação da avó materna em um hospício na década de 1970, lembrando o sofrimento da mãe com a situação[9] e justificando, novamente, sua hesitação em relação a internação psiquiátrica. Carolina reconhecia que os problemas mentais de sua mãe começaram com um quadro de paranoia, após diversos traumas que sofreu desde a infância com o avô - por quem foi abusada sexualmente e aliciada para trabalhar em um bordel, por ter visto a mãe sofrer maus tratos pelo pai e, por fim, as infidelidades e agressões de seus ex-maridos.
            Para tentar contextualizar a condição da protagonista em seu ambiente, o documentário é separado em dois núcleos: o grupo dos filhos de Estamira, pertencentes a classe de brasileiros de baixa renda, adequados às instituições sociais como igreja, trabalho e família; e o grupo dos moradores do lixão, representados por Estamira, João e Teobaldo, socialmente inadequados, porém, pessoas cuja integridade ética é quase que inquestionável. Eles não dependem da sociedade para sobreviverem. Agem de acordo com princípios morais cristãos, apesar de não serem vinculados a nenhuma igreja.
            Os três filhos de Estamira são evangelizados e acreditam, principalmente Hernane (o mais "fervoroso") e Maria Rita (a filha mais nova, que fora adotada aos seis anos por outra mulher, a pedido de Hernane, tendo em vista que a menina está sendo criada pela mãe no lixão), que a condição de Estamira se deve também por ter abandonado a fé em Deus, ou melhor, por não ter Deus como a salvação.
            O misticismo está muito presente em todo o filme, inclusive no discurso de Estamira. Porém, esta, diferente dos filhos, apesar de cristã, não expressa dogmas das instituições evangelizadas. Além de não participar de cultos, ela acredita em um Deus mais punitivo do que salvador: um Deus “estuprador”, “assaltante”. No filme, ela questiona esse Deus venerado pelos filhos dizendo:
Que Deus é esse? Que Jesus é esse, que só fala em guerra e não sei o quê?! Não é ele que é o próprio trocadilo? Só pra otário, pra esperto ao contrário, bobado, bestalhado. Quem já teve medo de dizer a verdade, largou de morrer? Largou? Quem ando com Deus dia e noite, noite e dia na boca ainda mais com os deboches, largou de morrer? Quem fez o que ele mandou, o que o da quadrilha dele manda, largou de morrer? Largou de passar fome? Largou de miséria? Ah, não dá!
           
            Por outro lado, o filme mostra uma Estamira consciente política e socialmente: que reconhece a importância do  lixo ali descartado, que reconhece a injustiça com as pessoas que ali moram e sobrevivem como escravo livres, dizendo que  “A princesa Isabel deu a liberdade para os negros, mas não deu emprego”, e que acredita no “comunismo superior”, onde as pessoas tem oportunidades iguais.
            A poeticidade contida na narrativa do filme, tanto por meio do discurso abstrato da protagonista como na linguagem fotográfica explorada pelo diretor, auxilia na construção subjetiva de um personagem sensível que, diante das crueldades da história pessoal e social, renega os paradigmas social.
            No livro O amor impiedoso (2012), Žižek aponta para um herói moderno que, na consciência das consequência de seus atos, hesita em sua atitudes. Assim como Hamlet, que “sobrevive ao reinado ilegítimo de seu tio se fazendo de bobo e proferindo observações ‘loucas’ mas verdadeiras” (Žižek, 2012, p. 18), Estamira é representada como uma mulher que para sobreviver, mesmo que fora das convenções sociais, enlouquece, e assim não participa do jogo sujo do capitalismo e das vicissitudes da sociedade, colocando-a além do bem e do mal.  
            Marcos Prado, percebe seu papel de mediador entre a realidade e o público, admitindo que a narrativa é construída por ele. Em uma entrevista concedida para a revista TPM, Prado fala sobre o processo de construção da mulher  Estamira que foi vista por todo o mundo:
Ela [Estamira] foi a primeira pessoa a ver [o filme] e falou: “Marcos, tem vezes em que eu não me reconheço, mas eu sei que veio de mim, então acredito. Te dei a missão de revelar minha missão. Então não vou falar pra tirar ou colocar nada. Se você acha que é isso, é isso”. Eu entrei numa crise de consciência, achei que tinha de ser mais cuidadoso. E tirei várias coisas. Quando passei o filme em São Paulo dois anos atrás, não havia a parte em que ela briga com o neto. Mas depois pensei: “Não posso santificar a Estamira. Só colocar as coisas mágicas, poéticas. Ela não é só isso”. Então, voltei com os esporros, os filhos, o neto, a exposição toda. (Alves entrevista Prado, 2006)

            Ainda na mesma entrevista, Prado fala sobre sua impressão do olhar de Hernane a respeito de como ele foi apresentado no filme:
O Hernane, filho mais velho, que aparece um pouco como o vilão, me falou: “Eu sou isso aí mesmo, uma pessoa religiosa, crente”. Acho que ele não gostou da posição dele no filme, que é a do cara que não fala mais com a mãe, que acha que ela é possuída pelo demônio. Mas não se opôs. A família fica feliz por eu ajudar a mãe. Eu dou dinheiro todo mês, dei telefone, levei no meu médico. Foi um encontro maravilhoso que tive na vida. (ibidem)

            Enquanto no documentário temos uma protagonista representada a partir de seus dramas pessoais e que, relutante contra as injustiças do sistema, relativa seus julgamentos, não condenando as pessoas como boas ou más, mas apenas cegas e ignorantes[10], e eximindo-se de qualquer participação política e social, em Avenida Brasil podemos destacar uma concentração maior de maniqueísmo em todo o enredo.
            Mesmo que os personagens principais, Nina e Carminha,  tenham sido ambíguas, vacilado, algumas vezes, entre o “bem” e o “mal”, podemos distinguir mais facilmente aquilo o que Motter nos diz a respeito do antagonismo do vilão e do herói. Dentro da doutrina  maniqueísta, o que é material é intrinsecamente mal e o que é espiritual é intrinsicamente bom, e assim funcionava no núcleo do lixão de Avenida. Brasil: aqueles personagens que desejavam a riqueza material ou as possuíam, eram os malvados, como Carminha e Max. Aqueles que não tinham ambição material, como Lucinda, Nina e Jorginho, eram “do bem”. Nina e Jorginho, apesar financeiramente estáveis, eram movidos por uma ambição imaterial. No caso de Nina, a vingança pela morte do pai e no caso de Jorginho, o amor por Nina.
            Assim, podemos observar, então, a principal diferença entre a representação de moradores de aterro sanitário no documentário e na telenovela. Se documentário, os personagens são mostrados como vítimas de problemas psicossociais, e que apesar de dizerem que estão lá por vontade própria (Estamira  e Teobaldo afirmam estar lá por se identificarem com o lugar), fica implícito que passaram por dificuldades que acabaram por marginalizá-los do que entendemos por realidade social aceitável, na novela é claro que os moradores do lixão são excluídos por questões financeiras, exceto Lucinda que permanece no lixão pois, como pensa ter sido responsável pela morte da mãe de Carminha, não se sentia digna de uma vida melhor.
            Aqui podemos identificar um estratagema ideológico cristão, onde mãe Lucinda, como é chamada por seus amigos, paga seus pecados não só com sua miséria, mas também ao passar anos em uma cadeia por um crime que não cometeu, assim como Jesus Cristo pagou por todos os nossos pecados. Por causa da culpa que sentia pela morte da mãe de Carminha, Lucinda confessa o assassinato do seu próprio filho, mesmo sabendo que Carminha o havia cometido. No entanto, no final da narrativa ficamos sabendo que quem matou da mãe de Carminha, foi o seu amante, e mesma assim ela perdoa os mal feitores. Com todo o peso da culpa, diante da infinita bondade de Lucinda, no final da novela, é a vez de Carminha renunciar a possibilidade de viver em sociedade, resignando-se a Lucinda, e representando, como apontado por  Žižek, que "nessa imposição de uma dívida simbólica pelo próprio ato de exoneração, reside o maior truque do cristianismo." (2012, p. 21).
            Podemos identificar, nesta breve análise apoiada por algumas teorias desenvolvidas por Žižek, como a construção desses personagens, tanto na ficção como na não ficção,  passam pela peneira da moral cristã - tão presente entre o grupo dos brasileiros - e replicam um modelo de imaginário social favorável a permanência da classe dominante no poder. 

REFERÊNCIAS

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____________________. "Telenovela e educação: um processo interativo". In: Revista Comunicação & Educação, São Paulo, n. 17, p. 54-60, jan. abr. 2000

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SANTOS, Alexandre Tadeu dos. "O docudrama na telenovela: qualquer semelhança com fatos e pessoas reais terá sido mera coincidência?". Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Natal, RN – 2 a 6 de setembro de 2008. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2008/resumos/R3-1726-1.pdf>. Acesso em 25 abr. 2013

SANTA CRUZ, Angélica e Paes Manso, Bruno. A vez das pequenas. Revista Veja, São Paulo, 01 out. 1997. Disponível em: < http://veja.abril.com.br/011097/p_030b.html>. Acesso em 07 ago. 2013.

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____________________. Em defesa das causas perdidas. Tradução: Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2011

____________________. Amor impiedoso. Tradução: Lucas Mello Carvalho Ribeiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2012



[2] As raízes epistemológicas de Žižek passam pela filosofia de Hegel, pelo pensamento social de Marx e pela psicanálise de Lacan.
[3] Disponível em: <http://www.teledramaturgia.com.br/tele/avenidabrasilb.asp>. Acesso: 02/05/2013
[4] Professor e coordenador CEPECIDOC (Centro de Pesquisas de Cinema Documentário da UNICAMP)
[5] Mockumentários: falsos documentários. “O filme apresenta-se como um documentário, sé para revelar-se uma fabricação ou simulação de um documentário” (NICHOLS, 2012, p. 50)
[6] Matéria do dia 01/10/1997. A vez das pequenas, escrita por Angélica Santa Cruz e Bruno Paes Manso.
[7] Outros dois ensaios fotográficos de Marcos Prado, prévios ao Jardim Gramacho, são Os Carvoeiros e Free Tibet. Ambos reconhecidos em premiações institucionais.  Disponível em: <http://7f4histfoto.wetpaint.com/page/Marcos+Prado+de+Oliveira>. Acesso em: 27 de abril, 2013
[8] Teve também um outro filho, com o pai de Carolina, que nasceu morto e que ela se sente guiada por ele.
[9] O relato de Carolina é ilustrado com imagens de arquivo que denunciam o descaso com os pacientes do hospital psiquiátrico Pedro II, no bairro Engenho de Dentro, Rio de Janeiro, onde a mãe de Estamira ficou.
[10] No entanto, Estamira acusa pessoas que tiram vantagem das situações: “não existe inocente, existe esperto ao contrário”