Por Vivian Vigar e Arthur Meucci
Introdução
Dentro da tradição de pesquisa no campo
da comunicação há duas linhas de pesquisa que pautam a produção de conhecimento. A primeira linha estuda a produção
e divulgação da mensagem midiática
dentro dos processos educativos. A segunda linha estuda a recepção das mensagens midiáticas e seu impacto no espectador. Esta
pesquisa se enquadra exclusivamente na primeira linha, pois busca refletir a
construção (sendo assim, a produção) do imaginário sobre o morador de aterro sanitário (lixão) através do
filme-documentário Estamira e da
telenovela Avenida Brasil.
Estamira,
que teve o roteiro e direção do cineasta Marcos Prado, foi premiado em
festivais nacionais e internacionais de cinema. O filme mostra a vida de
Estamira Gomes de Souza, que há 20 anos trabalhava no aterro sanitário Jardim
Gramacho. Por conta da repercussão social do documentário, e sua utilização
para fins educativos, ele foi disponibilizado pelo cineasta na internet em
licença pública[1].
Transmitida no horário nobre da Rede
Globo de Televisão, a telenovela Avenida
Brasil, criada e escrita por João Emanuel Carneiro e dirigida por Ricardo
Waddington, foi sucesso de audiência e de críticas. A história narra os planos
de vingança arquitetados pela protagonista Rita (posteriormente chamada de Nina
pela família adotiva) contra sua ex-madrasta Carminha, que arquitetou a morte
de seu pai, Genésio, e que a abandonou em um aterro sanitário, onde foi salva
por Mãe Lucinda e depois adotada por uma família da Argentina. Exibida
inicialmente no dia 26 de março de 2012 foi encerrada no dia 19 de outubro do
mesmo ano.
Recorrendo às estruturas do
documentário, propostas por Bill Nichols (acadêmico e crítico cinematográfico
norte-americano do campo dos filmes documentário), e às estruturas da
telenovela, como registradas por Maria Lourdes Motter, analisaremos o processo
de "estereotipação" dos protagonistas, adaptado de acordo com sistema
social, para funcionarem ideologicamente na construção do imaginário coletivo
dos reais moradores de aterro sanitários. Ou seja, partimos da preposição de que
a composição de um personagem, tanto na ficção como na não-ficção, agenda temas
que podem ser discutidos academicamente, visando entender a, quase
imperceptível, incisão ideológica no imaginário social. Para tanto,
utilizaremos, predominantemente, o teórico Slavoj Žižek, na tentativa de
identificar interdisciplinarmente[2] o viés ideológico pelo
qual defendemos ser construído o imaginário social.
Telenovelas
e documentários
Antes
de iniciarmos a análise da construção do imaginário através dos personagens
aqui sugeridos, demonstraremos, brevemente, o que entendemos por filmes
documentários e telenovelas.
Toda telenovela é
essencialmente uma novela representada teatralmente. O dicionário Houaiss define novela como uma
“narrativa breve, maior do que um conto e menor do que um romance, e que se
caracteriza por apresentar uma espécie de concentração temática em torno de um
número restrito de personagens” (2009, p. 1364) e a telenovela como "novela
escrita diretamente ou adaptada para televisão sob a formula de capítulos
diários" (ibidem, p. 1824). Ainda segundo o dicionário,
toda novela se estrutura na figura de um protagonista e de um antagonista,
constatação referendada pela pesquisadora Maria Lourdes Motter: “Na telenovela,
como na história das narrativas que atravessam o tempo, o herói deve ser alguém
que tenha qualidades, se não excepcionais, pelo menos diferenciadas. Suas
virtudes nascem da relação que se estabelece com seus antagonistas” (Motter,
2004, p. 66).
A telenovela da qual nos referimos
aqui é tida como uma obra de ficção, com atores que interpretam histórias
concebidas pelos autores, mesmo que, muitas vezes, percorram situações
factuais. Na telenovela Páginas da Vida
(2006), por exemplo, ao final de cada capítulo era exibido um depoimento de uma
“pessoa real” sobre um caso de sua vida relacionado a trama da novela. De
acordo com a colunista de telenovelas Laura Mattos, ouvida por Alexandre T.
Santos para escrever O docudrama na
telenovela: qualquer semelhança com fatos e pessoas reais terá sido mera
coincidência? (2008), a finalidade
do autor de Páginas da Vida, Manoel
Carlos, era de fazer o telespectador se identificar com os personagens da
novela, evidenciando a proximidade entre ficção e a vida real.
A
telenovela analisada neste artigo, Avenida
Brasil, não pretendeu de forma alguma, ser um relato não ficcional, mas
observamos que ela percorre temas familiares a todos os brasileiros, como o
abandono de crianças, a miséria e a nova classe C. Nilson Xavier, crítico de
novelas e autor do Almanaque das
Telenovelas Brasileiras, observou que:
A novela [Avenida Brasil]
fez um bom uso da situação socioeconômica do País para refletir na tela um
retrato pitoresco de nossa realidade contemporânea. (...)
A “nova classe C” da
novela cativou todas as classes. Como em um jogo de certo e errado, o autor
brincou com as nuances simbólicas de ricos e pobres, elaborando uma crítica
social muito pertinente, seja através da grã-fina da Zona Sul (Verônica/Débora
Bloch), que fazia pouco caso da figura do suburbano, ou no pobre novo-rico que
zombava do elitismo. (...) (Xavier, sem data)[3]
Ainda
no mesmo texto, Xavier mostra que, apesar da referência ao fenômeno na economia
brasileira, o autor da telenovela, João Emanuel Carneiro, nega ter qualquer
“ambição sociológica” ou “vontade de fazer uma novela sociológica sobre o
Brasil atual”, e afirma que Avenida
Brasil é “um exercício de ficção” (Carneiro apud Xavier) cujas referências
vem de personagens ambíguos: como Raskolnokov, de Crime e Castigo; e o lixão,
inspirado em Charles Dinkens, referindo-se a saga em duas fases de Oliver Twist.
É possível enxergar a cima, algumas
questões que podem anuviar a fronteira entre o que é entendido como ficção e
não-ficção, e para não ficarmos no empasse, e podermos seguir a diante na
proposta deste artigo, optamos por uma visão que busca traçar uma linha entre
os dois tipo de narrativa. Fernão Pessoa Ramos[4],
percebe esse empasse apontando para uma hegemonia “em nossa época que tem um
certo orgulho em mostrar fronteiras tênues entre o campo da ficção e da não-ficção,
embaralhando definições”, devido a “preocupação do pensamento contemporâneo em frisar
a fragmentação da subjetividade que sustenta a representação.” (Ramos, 2001, p.
198) Contrapondo-se a este entendimento dominante, é proposto, então, um
recorte analítico-cognitivista para singularizar o documentário. De acordo com
Ramos, este recorte trabalha com dois conceitos:
A)
“Proposição assertiva” - Onde distinguimos a concepção originária da obra, que
por sua vez é
composta por enunciados
sobre o mundo, caracterizados como asserções.(...) O discurso documentário
seria uma narrativa com imagens, composta por asserções que mantém uma relação
com a realidade que designam (...) A asserção documentária deve, para a
abordagem analítica, ser definida e trabalhada a partir de proposições lógicas,
que fecham o campo para a definição de seu conteúdo de verdade. (ibidem, p. 200
-2003)
B)
“Indexação” - “aponta para uma dimensão pragmática, receptiva, do
documentário”, levando em conta os objetivos dos realizadores e a postura dos
espectadores que podem, de acordo com Ramos, tentar construir uma ambiguidade
ou se enganarem, respectivamente. “Mas no geral temos um saber prévio sobre se
estamos expostos a uma narrativa documental ou ficcional.” (ibidem, p. 203-204
).
Para
entender melhor este recorte podemos nos voltar a obra referencial usada por
Ramos, Introdução ao Documentário (2012),
do teórico e crítico de cinema documental, Bill Nichols, que se prolonga em
definir como sabemos se estamos assistindo a um documentário ou a uma obra de
ficção, abordando, entre outras análises, quatro ângulos presentes em um filme:
A) A
estrutura Institucional: as instituições que produzem o filme os distribuem com
o rótulo de documentário ou ficção “antes de qualquer iniciativa do crítico ou
do espectador” (Nichols, 2012, p. 49). No caso de Estamira, sabemos a princípio que é um documentário, pois estreou
em vários festivais de cinema do gênero, como o festival É Tudo Verdade, o Festival
Internacional de Documentário de Marseille, Festival Biografilm, entre outros, além de ter recebido vários
prêmios na categoria “documentários” em outras competições de cinema em geral.
B) A
comunidade de profissionais: “Os documentaristas compartilham o encargo, auto
imposto, de representar o mundo histórico em vez de inventar criativamente
mundos alternativos” (ibidem, p. 53), diferente dos roteiristas de ficção que
tem, em seu escopo de trabalho, a tarefa de elaborar histórias originais.
Marcos Prado, como veremos mais a frente, já constituía uma carreira artística
voltada para a documentação histórica há muitos anos, mesmo que de maneira
poética. Conhecendo a origem profissional do diretor, o espectador terá reforçado
que assistirá a um relato factual.
C) O corpus
de textos: Os documentários sustentam
“um argumento, uma afirmação ou uma alegação fundamental sobre o mundo
histórico”. (ibidem, p. 55) e, normalmente, apresentam uma “lógica
informativa”. Parte de um problema, atravessa uma complexidade, até encontrar
uma solução ou caminho para esta, onde o espectador poderá se associar. No caso
de Estamira há uma alegação de que a
protagonista sofre com distúrbios psiquiátricos devido as dificuldades que
passou em sua vida, ainda que deixe para o espectador a oportunidade para
refletir sobre as condições mostradas no filme. Porém, mais relevante para a
distinção entre ficção e documentário é o uso de dados de arquivos (documentos)
e montagem (uso de voz-over,
depoimentos, que indicam a imagem).
D) O
conjunto de espectadores: Existe uma relação indexadora das imagens e sons
usufruídas pelos espectadores com o mundo histórico: percepção de que o que é
visto na tela não aconteceu exclusivamente para o filme. O espectador, sujeito
visualmente e auditivamente treinado com o mundo do espetáculo, consegue
perceber se o que ele está assistindo é uma cena montada em um estúdio. Mesmo
que suscetível ao ludíbrio (como é o caso dos mockumentários[5]
This is Spinal Tap [Rod Reiner,
1982] e A bruxa de Blair [Daniel
Myrick, 1999]), normalmente, o
espectador faz essa distinção intuitivamente.
Nesta
difícil tarefa, Nichols, ainda defende que todo o filme é, de certa forma, um
documentário, pois mesmo na ficção está impresso, através de narrativas imaginadas, nossos
sonhos ou pesadelos, prazeres ou angústias, frutos da época em que foi
produzido e que as pessoas vivenciam; o que Hegel chamou de Zeitgeist. A esses filmes, Nichols classifica como “documentários de satisfação
de desejos”, ou seja, a sublimação por meio da arte, como entendida por Freud
em O mal-estar na cultura, pode
saciar, ainda que apenas em parte, não somente as vontades do criador, mas
também de seus espectadores
(...) a satisfação é
obtida a partir de ilusões reconhecidas como tais, sem que se permita que o afastamento da realidade perturbe o gozo.
A região donde provém tais ilusões é a da fantasia; quando o desenvolvimento do
senso de realidade se completou, ela foi expressamente dispensada das exigências da prova de realidade e foi
destinada ao cumprimento de desejos de difícil realização. No topo dessas
satisfações fantasísticas se encontra o gozo de obras de arte, também tornado
acessível a quem não é criador através da mediação do artista. Quem é sensível
à influência da arte não tem palavras suficientes para louvá-la como fonte de
prazer e consolo a vida. No entanto, a suave narcose em que a arte nos coloca
não é capaz de produzir mais do que uma fugaz libertação das desgraças da vida,
e não é forte o bastante para fazer esquecer a miséria real.
(FREUD, 2010 [1929], p. 71)
Na telenovela Avenida Brasil, por exemplo, grande parte do enredo foi criado a
partir de imaginários da cultura popular, como por exemplo o estereótipo do
novo-rico vivido pelo jogador de futebol, Tufão, e sua família, representado
pelo mau gosto e exagero na decoração da casa e na forma de se vestir. Ou ainda
as “periguetes”, que já faziam parte do imaginário coletivo, principalmente
entre os cariocas, mas que ganharam mais notoriedade após a novela. Ou mesmo
temas, recorrentes desde as tragédias gregas, relacionados a "Eros (amor
romântico, prazer) e thymos (inveja, competição, reconhecimento)" (Žižek, 2008, p. 186). Os
espectadores podem, por meio desses personagens de ficção se identificar e
expressar suas vontades em julgar ou torcer; ou seja, satisfazer, de uma forma
socialmente aceitável, "os desejos de difícil realização".
Por outro
lado, Nichols classifica como
“documentários de representação social” aquilo o que:
... comumente chamamos de
não-ficção. Esses filmes nos dão uma representação tangível dos aspectos do
mundo que nós vivemos e compartilhamos. Ele faz com que a realidade social seja
visível e audível em uma forma distinta, de acordo com os atos de seleção e
arranjos realizado por um cineasta. Eles dão um senso do que a realidade pode
ter sido, pode ser agora, ou poderá vir a ser. Esses filmes podem também
carregar verdades, se optarmos que sim. Cabe a nós avaliar suas reivindicações
e afirmações, suas perspectivas e argumentos em relação ao mundo como
conhecemos e decidirmos se é ou não é digno de nossa confiança. Documentários
de representação social nos oferece
novas visões e para explorar e compreender o nosso mundo. (Nichols,
2001, p.2)
Tendo
delineado, brevemente, nosso entendimento sobre filmes documentários em relação
a Estamira, e telenovelas, em relação
a Avenida Brasil, podemos agora
passar por algumas ideias sobre a construção do imaginário social para, então,
analisarmos os dois objetos aqui propostos.
Imaginário
Social
O imaginário
socialmente construído pelo senso comum influencia e é influenciado pelas
representações sociais que as mídias fazem de seus personagens. Tanto em Avenida Brasil quanto em Estamira as personagens e seus
coadjuvantes interagem com as identidades culturais do nosso país, reproduzindo
ou questionando como rotulamos as pessoas segundo suas crenças religiosas,
profissões, região em que mora e, principalmente, sobre tudo aquilo que
consomem ou deixam de consumir. O imaginário oferecido pela cultura nacional,
como nos ensina Stuart Hall,
são compostas não apenas de
instituições culturais, mas também dos símbolos e representações. Uma cultura
nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influência e
organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos. (2002,
p. 50)
As
estruturas culturais de uma sociedade estão cunhadas nos mitos reproduzidos por
suas histórias e seus sistemas de educação familiar, midiático, escolar e
econômico que, imperceptivelmente, perpetuam os símbolos e representações que
constituem o imaginário sobre a realidade que todos os membros do grupo
compartilham. As construções dos personagens de Avenida Brasil e de Estamira
não passaram incólumes aos estereótipos presentes no discurso do senso comum.
Tantos
os moradores presentes no aterro sanitário da telenovela quanto os do
documentário são apresentados como pessoas em estado de miséria, sem estrutura
familiar ou respaldo do Estado, carregando uma desgraça particular que
“justifica” suas situações - na novela Mãe Lucinda e Carminha são vítimas da
maldade de Santiago, e Rita vítima da maldade de Carminha. Já no filme,
Estamira é apresentada como vítima de seus dois ex-maridos, de seu pai e de seu
avô, além de ser portadora de uma grave doença psíquica.
Ao contrário dos
moradores de calçada, tidos pelo senso comum como potencialmente maus e
repugnantes (Hana, 2012), os moradores de aterro sanitário são socialmente bem
vistos e geram comoção, o que pode ser constatado através em dois fatores:
primeiro, quem está no “lixão” trabalha; já quem mora na calçada não exerce uma
atividade econômica "legítima"; eles, normalmente, vivem de restos e
esmolas. A ideologia cristã do trabalho sofrido e mal remunerado, encarnado por
pessoas humildes, casa perfeitamente com o estereótipo dos moradores de aterro.
Tanto Mãe Lucinda quanto Estamira são retratadas em discursos religiosos e como
porta-vozes da moralidade, o mesmo acontece com Rita e Carminha quando residem
no aterro. O segundo fator pode ser explicado por meio das novas formas de apartheid proposto por Žižek:
"Estamos testemunhando um crescimento rápido de uma população fora do
controle do Estado, que vive em condições fora da lei, com necessidade urgente
de formas mínimas de auto-organização". (Žižek, 2012, p. 419) Enquanto o
morador de calçada circula livremente pela cidade sem se preocupar com a classe
social que reside ou trabalha na região onde se encontra, o morador do aterro
sanitário se fixa em um local específico, longe do contato visual da
"elite". A esta
"elite", Žižek chamará de
comunistas liberais: são sujeitos que vivem segregados em suas comunidades e
condomínios ("gated communities"),
e ainda, acreditam estar construindo um mundo melhor, fazendo caridade,
"comendo alimentos orgânicos e tirando férias em reservas
florestais". (Žižek, 2008, p. 27).
Tomando,
então, por pressuposto que o imaginário social se desenvolve a partir de
estruturas sociais, podemos utilizar a concepção de representação social de
John Thompson. No livro Ideologia e
Cultura Moderna (1995), o sociólogo entende que fenômenos culturais,
aceitos e transmitidos, são formas simbólicas em contextos estruturados,
levando em consideração que esta concepção é parte de uma análise “estrutural” da
cultura onde “formas simbólicas estão inseridas em contextos sociais
estruturados que envolvem relação de poder, formas de conflito, desigualdade em
termos de distribuição de recursos e assim por diante” (Thompson, 1995, p. 22).
Ele segue
explicando como essas formas simbólicas sofrem um processo de valorização
(valor simbólico ou valor econômico) e são transmitidas culturalmente através
do que ele chama de “reprodução simbólica de contextos sociais” que, como uma
ferramenta ideológica, serve “em circunstâncias específicas, para estabelecer,
manter e reproduzir relações sociais que são, sistematicamente, assimétricas em
termos de poder” (ibidem, p. 203), fazendo transparecer em suas considerações,
uma arbitrariedade, por parte do poder dominante, na constituição do imaginário
social.
Os problemas
econômicos e sociais do país, que atuam como causa determinante da situação de
miséria, e é sistematicamente representado e assimilado no imaginário social, é
dito ou retratado en passant, como se
fosse um fato triste e comum; sintoma de anos de exploração colonial: o Brasil
preso nas armadilhas de sua história e que, agora, "comunistas
liberais" - como Žižek se refere a empresários como Bill Gates e George
Soros - dedicam parte de seu tempo a causas humanitárias, se mostrando
dispostos a reverter esta situação. Um imaginário social que parte de uma
miséria enraizada na história, assim redimindo a classe dominante de culpa, e
encontra sua solução nas boas ações dessa classe. Porém, longe de ser verdadeiramente
funcional, esta prática comunista liberal vela a exploração e a competição
injusta de mercado, para, enfim, legitimar o capitalismo global, e manter a
estrutura de dominação.
Na
ética comunista liberal a perseguição implacável
do lucro é contrabalançada pela caridade. Caridade é a máscara que esconde a face da exploração
econômica. Em uma chantagem de
proporções gigantescas, os países desenvolvidos "ajudam"
o subdesenvolvido, com auxílio, créditos, e assim por diante, e, assim, evitando a
questão-chave, ou seja, a sua cumplicidade e coresponsabilidade pela
situação miserável do subdesenvolvido. (Žižek, 2008, p. 22)
Podemos
trazer para este contexto os programas de incentivos culturais e ONGs, que
atuam no Brasil, fomentando a produção, por exemplo, cinematográfica ou com
programas de sustentabilidade. No Brasil, a Petrobrás é um dos casos mais
evidentes: se por um lado é frequentemente denunciada por danos ambientais, por
outro, está constantemente lançando novos programas de recuperação e
preservação ambiental, além de financiar inúmeros projetos culturais.
O
filme Estamira, também teve
patrocínio da indústria petrolífera, no caso, a empresa Aster Petróleo, que
encerrou suas atividades em 2004 (antes do lançamento do filme), com uma dívida
de cerca de R$ 80 milhões. O proprietário desta empresa, de acordo com a
revista Veja,[6]
esteve envolvido, no ano 1997, em um caso flagrante de prostituição envolvendo
menores. Também foram patrocinadores do filme as empresas Vivo
(telecomunicações), Fósferti (indústria de fertilizantes), Teadit (manutenção
industrial), Momsem & Leonardos (registros e patentes) e Hotel Marina.
A
moral cristã no imaginário social
Tendo em
mente o que entendemos por ficção, não-ficção e imaginário social podemos nos
concentrar agora na análise da construção de nossos objetos de estudo.
Antes de
estrear como cineasta, Marcos Prado, trabalhava como fotógrafo publicitário e
interessava-se por ensaios a longo prazo de fotojornalismo. O trabalho de
fotografia documental[7]
no aterro sanitário de Jardim Gramacho, iniciou em 1992 (na época da Eco-92),
com o objetivo de entender porquê, no Brasil, não havia coleta seletiva de
lixo. Após sete anos fotografando o lixão percebeu que não havia feito retratos
das pessoas que por ali passavam seus dias, e explica que a lacuna decorreu das
ameaças que sofria de uma parcela menor da população do local, de criminosos e foragidos, temerosos que o as
imagens fossem publicadas. Prado resolveu, então, se aproximar dos idosos,
acreditando que estes não lhe ofereceriam riscos caso os fotografasse. Foi
nesta circunstância que conheceu Estamira, de 63 anos, e teve a ideia de
acompanhá-la e fazer o documentário. Ainda de acordo com o cineasta, Estamira,
concordou plenamente com a ideia, declarando para Prado que esperava por esse
momento a vida toda.
Com três
filhos[8]
(Hernani do primeiro casamento, Carolina do segundo casamento e Maria
Rita, de um relacionamento não oficial), e dois netos, Estamira, que apesar de
ter uma casa na região de Campo Grande -
RJ (construída com tábuas de madeira, que gostava muito e acreditava ser
“abençoado”), passava a maior parte dos
seus dias no aterro recolhendo material que pudesse reaproveitar, além de
alimentos que considerava comestíveis.
Seus filhos
não concordavam com a escolha da mãe de viver no aterro. O filho mais velho, Hernane,
já havia tentado interná-la contra sua vontade enquanto Carolina, a filha do
meio demonstrava mais ponderação: ela percebia que a mãe precisava de cuidados
médicos (inclusive a acompanhava em algumas visitas ao CAPS - Centros de
Atenção Psicossocial - onde a mãe era medicada periodicamente), mas acreditava
ser uma “judiação” interná-la, pois sabia o quanto Estamira presava por sua
liberdade. Carolina relata que vivenciou, junto com Estamira a internação da
avó materna em um hospício na década de 1970, lembrando o sofrimento da mãe com
a situação[9]
e justificando, novamente, sua hesitação em relação a internação psiquiátrica.
Carolina reconhecia que os problemas mentais de sua mãe começaram com um quadro
de paranoia, após diversos traumas que sofreu desde a infância com o avô - por
quem foi abusada sexualmente e aliciada para trabalhar em um bordel, por ter
visto a mãe sofrer maus tratos pelo pai e, por fim, as infidelidades e
agressões de seus ex-maridos.
Para tentar
contextualizar a condição da protagonista em seu ambiente, o documentário é
separado em dois núcleos: o grupo dos filhos de Estamira, pertencentes a classe
de brasileiros de baixa renda, adequados às instituições sociais como igreja,
trabalho e família; e o grupo dos moradores do lixão, representados por
Estamira, João e Teobaldo, socialmente inadequados, porém, pessoas cuja
integridade ética é quase que inquestionável. Eles não dependem da sociedade
para sobreviverem. Agem de acordo com princípios morais cristãos, apesar de não
serem vinculados a nenhuma igreja.
Os três
filhos de Estamira são evangelizados e acreditam, principalmente Hernane (o
mais "fervoroso") e Maria Rita (a filha mais nova, que fora adotada
aos seis anos por outra mulher, a pedido de Hernane, tendo em vista que a
menina está sendo criada pela mãe no lixão), que a condição de Estamira se deve
também por ter abandonado a fé em Deus, ou melhor, por não ter Deus como a
salvação.
O
misticismo está muito presente em todo o filme, inclusive no discurso de
Estamira. Porém, esta, diferente dos filhos, apesar de cristã, não expressa
dogmas das instituições evangelizadas. Além de não participar de cultos, ela
acredita em um Deus mais punitivo do que salvador: um Deus “estuprador”, “assaltante”.
No filme, ela questiona esse Deus venerado pelos filhos dizendo:
Que Deus é esse? Que Jesus
é esse, que só fala em guerra e não sei o quê?! Não é ele que é o próprio
trocadilo? Só pra otário, pra esperto ao contrário, bobado, bestalhado. Quem já
teve medo de dizer a verdade, largou de morrer? Largou? Quem ando com Deus dia
e noite, noite e dia na boca ainda mais com os deboches, largou de morrer? Quem
fez o que ele mandou, o que o da quadrilha dele manda, largou de morrer? Largou
de passar fome? Largou de miséria? Ah, não dá!
Por
outro lado, o filme mostra uma Estamira consciente política e socialmente: que
reconhece a importância do lixo ali
descartado, que reconhece a injustiça com as pessoas que ali moram e sobrevivem
como escravo livres, dizendo que “A
princesa Isabel deu a liberdade para os negros, mas não deu emprego”, e que
acredita no “comunismo superior”, onde as pessoas tem oportunidades iguais.
A
poeticidade contida na narrativa do filme, tanto por meio do discurso abstrato
da protagonista como na linguagem fotográfica explorada pelo diretor, auxilia
na construção subjetiva de um personagem sensível que, diante das crueldades da
história pessoal e social, renega os paradigmas social.
No livro O amor impiedoso (2012), Žižek aponta para um herói
moderno que, na consciência das consequência de seus atos, hesita em sua
atitudes. Assim como Hamlet, que “sobrevive ao reinado ilegítimo de seu tio se
fazendo de bobo e proferindo observações ‘loucas’ mas verdadeiras” (Žižek, 2012, p. 18),
Estamira é representada como uma mulher que para sobreviver, mesmo que fora das
convenções sociais, enlouquece, e assim não participa do jogo sujo do
capitalismo e das vicissitudes da sociedade, colocando-a além do bem e do mal.
Marcos
Prado, percebe seu papel de mediador entre a realidade e o público, admitindo
que a narrativa é construída por ele. Em uma entrevista concedida para a
revista TPM, Prado fala sobre o processo de construção da mulher Estamira que foi vista por todo o mundo:
Ela [Estamira] foi a
primeira pessoa a ver [o filme] e falou: “Marcos, tem vezes em que eu não me
reconheço, mas eu sei que veio de mim, então acredito. Te dei a missão de
revelar minha missão. Então não vou falar pra tirar ou colocar nada. Se você
acha que é isso, é isso”. Eu entrei numa crise de consciência, achei que tinha
de ser mais cuidadoso. E tirei várias coisas. Quando passei o filme em São
Paulo dois anos atrás, não havia a parte em que ela briga com o neto. Mas
depois pensei: “Não posso santificar a Estamira. Só colocar as coisas mágicas,
poéticas. Ela não é só isso”. Então, voltei com os esporros, os filhos, o neto,
a exposição toda. (Alves entrevista Prado, 2006)
Ainda na
mesma entrevista, Prado fala sobre sua impressão do olhar de Hernane a respeito
de como ele foi apresentado no filme:
O Hernane, filho mais
velho, que aparece um pouco como o vilão, me falou: “Eu sou isso aí mesmo, uma
pessoa religiosa, crente”. Acho que ele não gostou da posição dele no filme,
que é a do cara que não fala mais com a mãe, que acha que ela é possuída pelo
demônio. Mas não se opôs. A família fica feliz por eu ajudar a mãe. Eu dou
dinheiro todo mês, dei telefone, levei no meu médico. Foi um encontro
maravilhoso que tive na vida. (ibidem)
Enquanto no
documentário temos uma protagonista representada a partir de seus dramas pessoais
e que, relutante contra as injustiças do sistema, relativa seus julgamentos, não
condenando as pessoas como boas ou más, mas apenas cegas e ignorantes[10],
e eximindo-se de qualquer participação política e social, em Avenida Brasil podemos destacar uma
concentração maior de maniqueísmo em todo o enredo.
Mesmo que
os personagens principais, Nina e Carminha,
tenham sido ambíguas, vacilado, algumas vezes, entre o “bem” e o “mal”,
podemos distinguir mais facilmente aquilo o que Motter nos diz a respeito do
antagonismo do vilão e do herói. Dentro da doutrina maniqueísta, o que é material é intrinsecamente
mal e o que é espiritual é intrinsicamente bom, e assim funcionava no núcleo do
lixão de Avenida. Brasil: aqueles
personagens que desejavam a riqueza material ou as possuíam, eram os malvados,
como Carminha e Max. Aqueles que não tinham ambição material, como Lucinda,
Nina e Jorginho, eram “do bem”. Nina e Jorginho, apesar financeiramente
estáveis, eram movidos por uma ambição imaterial. No caso de Nina, a vingança
pela morte do pai e no caso de Jorginho, o amor por Nina.
Assim,
podemos observar, então, a principal diferença entre a representação de
moradores de aterro sanitário no documentário e na telenovela. Se documentário,
os personagens são mostrados como vítimas de problemas psicossociais, e que
apesar de dizerem que estão lá por vontade própria (Estamira e Teobaldo afirmam estar lá por se
identificarem com o lugar), fica implícito que passaram por dificuldades que
acabaram por marginalizá-los do que entendemos por realidade social aceitável,
na novela é claro que os moradores do lixão são excluídos por questões
financeiras, exceto Lucinda que permanece no lixão pois, como pensa ter sido responsável
pela morte da mãe de Carminha, não se sentia digna de uma vida melhor.
Aqui
podemos identificar um estratagema ideológico cristão, onde mãe Lucinda, como é
chamada por seus amigos, paga seus pecados não só com sua miséria, mas também
ao passar anos em uma cadeia por um crime que não cometeu, assim como Jesus
Cristo pagou por todos os nossos pecados. Por causa da culpa que sentia pela
morte da mãe de Carminha, Lucinda confessa o assassinato do seu próprio filho, mesmo
sabendo que Carminha o havia cometido. No entanto, no final da narrativa
ficamos sabendo que quem matou da mãe de Carminha, foi o seu amante, e mesma
assim ela perdoa os mal feitores. Com todo o peso da culpa, diante da infinita
bondade de Lucinda, no final da novela, é a vez de Carminha renunciar a
possibilidade de viver em sociedade, resignando-se a Lucinda, e representando,
como apontado por Žižek, que "nessa
imposição de uma dívida simbólica pelo próprio ato de exoneração, reside o
maior truque do cristianismo." (2012, p. 21).
Podemos
identificar, nesta breve análise apoiada por algumas teorias desenvolvidas por Žižek, como a construção
desses personagens, tanto na ficção como na não ficção, passam pela peneira da moral cristã - tão presente
entre o grupo dos brasileiros - e replicam um modelo de imaginário social favorável a
permanência da classe dominante no poder.
REFERÊNCIAS
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56. Julho de 2006. Disponível em: <http://revistatpm.uol.com.br/56/estamira/home.htm>. Acesso em: 08
de maio de 2013.
FREUD, Sigmund. O
mal-estar na cultura. Tradução: Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2011.
HOUAISS, Antônio; SALLES, Mauro. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,
2009
MOTTER, Maria Lourdes. "As telenovelas brasileiras:
heróis e vilões". In: Revista
Latinoamericana de Ciencias de La Comunicación, Buenos Aires, v. 1, n. 1,
p. 64-74, 2004.
____________________. "Telenovela e educação: um
processo interativo". In: Revista
Comunicação & Educação, São Paulo, n. 17, p. 54-60, jan. abr. 2000
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NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Tradução: Mônica Saddy Martins. -
Campinas, SP: Papirus, 2005.
RAMOS, Fernão Pessoa. "O que é Documentário?". In:
Ramos, Fernão Pessoa e Catani, Afrânio (orgs.), Estudos de Cinema SOCINE 2000, Porto Alegre, Editora Sulina, 2001.
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docudrama na telenovela: qualquer semelhança com fatos e pessoas reais terá
sido mera coincidência?". Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos
Interdisciplinares da Comunicação XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da
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SANTA
CRUZ, Angélica e Paes Manso, Bruno. A vez das pequenas. Revista Veja, São
Paulo, 01 out. 1997. Disponível em: < http://veja.abril.com.br/011097/p_030b.html>. Acesso em
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THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de
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ŽIŽEK, Slavoj. Violence.
New York: Picador, 2008.
____________________. Em
defesa das causas perdidas. Tradução: Maria Beatriz de Medina. São Paulo:
Boitempo, 2011
____________________. Amor
impiedoso. Tradução: Lucas Mello Carvalho Ribeiro. Belo Horizonte:
Autêntica, 2012
[2] As raízes epistemológicas de Žižek passam pela filosofia de Hegel, pelo pensamento social de
Marx e pela psicanálise de Lacan.
[3] Disponível em: <http://www.teledramaturgia.com.br/tele/avenidabrasilb.asp>.
Acesso: 02/05/2013
[4] Professor e coordenador CEPECIDOC (Centro de Pesquisas
de Cinema Documentário da UNICAMP)
[5] Mockumentários: falsos documentários. “O filme
apresenta-se como um documentário, sé para revelar-se uma fabricação ou
simulação de um documentário” (NICHOLS, 2012, p. 50)
[6] Matéria
do dia 01/10/1997. A vez das pequenas,
escrita por Angélica Santa Cruz e Bruno Paes Manso.
[7] Outros dois ensaios fotográficos de Marcos Prado,
prévios ao Jardim Gramacho, são Os
Carvoeiros e Free Tibet. Ambos
reconhecidos em premiações institucionais.
Disponível em: <http://7f4histfoto.wetpaint.com/page/Marcos+Prado+de+Oliveira>. Acesso em: 27 de abril, 2013
[8] Teve também um outro filho, com o pai de Carolina, que
nasceu morto e que ela se sente guiada por ele.
[9] O relato
de Carolina é ilustrado com imagens de arquivo que denunciam o descaso com os
pacientes do hospital psiquiátrico Pedro II, no bairro Engenho de Dentro, Rio
de Janeiro, onde a mãe de Estamira ficou.
[10] No entanto, Estamira acusa pessoas
que tiram vantagem das situações: “não existe inocente, existe
esperto ao contrário”
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