sábado, 4 de setembro de 2021

AUTORIA E AUTONOMIA NA DIVERSIDADE

Seminário Instituto Casa do Todos

São Paulo –  04/set/ 2021

 

 

 

Eu gostaria de iniciar com uma ideia fundamental sobre um dos pontos em que a psicanálise, principalmente a lacaniana, que é desde onde eu articulo a minha clínica, se diferencia de outras clínicas: o ponto ao qual me refiro é o impossível. A psicanálise é a clínica do impossível ou, como ficou conhecida - desde as formalizações de Lacan, segundo os três registros do sujeito (Real Simbólico e Imaginário): a clínica do real.

 

É desde o impossível, desde o Real, que pretendo falar, acompanhada pelo Coletivo, da autoria e da autonomia na diversidade. Mas as coisas não são simples assim. Dizer de uma clínica do Real, se diz de uma clínica predominantemente do real, mas também atravessada pelo Simbólico e pelo Imaginário.

 

Vamos colocar desta maneira, muito breve: 

 

O Real é da ordem do corte, da angústia, do resto

O Simbólico da ordem da metáfora, do dito, de uma organização compartilhada

O Imaginário é da ordem do sentido, do intransponível, da alienação.

 

Então, quando falo da Casa do Todos em relação ao Coletivo, me apoio no registro do Simbólico. 

 

A título de um empréstimo de um saber compartilhado e reconhecido por uma certa comunidade - no caso uma parcela de psicanalistas que se interessam pela terapia institucional - me organizo a partir deste seminário transformado em livro, de Jean Oury: O Coletivo. Faço dele uma referência simbólica, ou seja, faço do Coletivo um Outro ao qual a minha fala toca quando me dirijo a vocês.

 

Eu não poderia dizer o que que digo, se não tivesse referida a este dispositivo, a esta máquina abstrata de tratar a alienação, como Jean Oury definiu tantas vezes o Coletivo. E quando digo referida, tenho que tomar por pressuposto que estou de certa maneira alienada a esta máquina de tratar alienação.

 

Me causou algum efeito quando escutei - não me lembro mais onde - que nossas análises pessoais são, na maior parte do tempo, tentativas de separação. Um impulso na direção contrária do grude narcísico, imaginário, que é a alienação: o sentido que nos é dado sobre a vida desde a relação intransponível que é o vínculo maternal: o lugar de nomeação, de satisfação da necessidade e, também, e, consequentemente, de tamponamento do desejo. A alienação é o saber que ampara, e que se não for seguido pelo movimento de separação, é um saber que assola o sujeito, que o mantém refém do desejo do outro, sombra de uma imagem fixada, sobra de uma expectativa frustrada. O resto de algo que não pode ser outra coisa, se não um objeto preso no tempo que já passou.

 

 Portanto, mantemos nosso ponto de referência, nosso lugar primeiro de alienação, nossas reminiscências/lembranças narcísicas, nos assegurando de algum amparo, porém diante de um outro que se impõe e nos seduz para a experiência de vida, arriscamos uma nova narrativa que contemple o desejo próprio. A nossa autoria. Nosso próprio caminho de viver. Assim, olhamos e nos arrastamos rumo a separação. Nos deslocamos dessa sombra, ainda que temporariamente, para respirar a nossa criação.

 

Assim, eu escolhi para o encontro de hoje a aula do dia 15 de maio de 1985, do seminário O Coletivo. Ali onde ele, Jean Oury, fala da função do discurso analítico em instituições psiquiátricas. Função de promover passagens para uma outra cena. Uma passagem autônoma e autoral. 

 

No início desta apresentação eu dizia que a psicanálise se diferencia das outras clínicas por tratar do impossível. Isso porque a interpretação psicanalítica está mais para a ordem do corte, a ordem do devir, do que da ordem da tradução. Dito de outro modo, não se trata tanto de dizer:

 

 “Fulano está assim porque não superou a rivalidade com seu irmão e agora desloca o seu ódio para o colega de trabalho que ameaça a sua posição” 

 

Trata-se de perguntar quais os efeitos e as consequências de seus atos diante da angústia provocada pela ameaça de perder o seu posto. Falo aqui dos efeitos do interesse do analista em seu paciente, e não da capacidade que o analista tem em traduzir a reedição de uma “cena traumática”. 

 

Por isso, trata-se do impossível, daquilo que escapa do saber, e que só teremos algum acesso diante da fala de nosso paciente na transferência. E quando falo da transferência, falo de um suposto saber que o atendido deposita em nós. Ou seja, um vínculo de confiança que conquistamos ao dar ouvidos ao inconsciente. Este vínculo propicia uma fala que implica o sujeito, promovendo, algumas vezes, uma retificação subjetiva, uma passagem de cena.

 

Agora, como isto se dá no Coletivo?

 

Jean Oury fala de uma “práxis de autoprodução do Coletivo, que permite um tipo de recolocação em circulação da subjetividade em sofrimento”. Essa práxis seria a de produzir um acting-out - ou seja, uma demanda endereçada - na transferência múltipla que caracteriza o meio institucional. 

 

Para que este acting out tenha efeitos terapêuticos é necessário que os operadores do coletivo questionem o “agenciamento” desta instituição. Ou seja, que a instituição não esteja entulhada de saberes inquestionáveis.

 

Lembrando que, estes saberes, que podem em muito balizar o fazer terapêutico, podem, por outro lado, estancar a escuta, que por sua vez impossibilita a transferência e, consequentemente, a passagem de uma cena a outra. 

 

Se este acting out for escutado apenas em seu caráter formal, discursivo, sem levar em conta a enunciação, aquilo que parte do inconsciente, não haverá espaço para que o desejo se manifeste.  É preciso que se aposte no sujeito, que se acredite no inconsciente e no campo do aleatório.

 

Um acting out fomentado num grupo, pode não ser resolvido neste mesmo grupo, mas num outro grupo. Assim como os efeitos de uma interpretação podem demorar semanas, meses, para se manifestar em um processo psicanalítico. Os efeitos que esperamos em qualquer um desses casos, é um efeito de autoria. De separação da imagem narcísica, para uma narrativa própria, possibilitada por um grupo que reconhece a manifestação de um desejo e acompanha esta reorientação do curso da existência.

 

Esta novidade do sujeito, esta outra cena, que emerge a partir deste campo que escuta o aleatório é possibilitada por que os operadores do coletivo se empenham em articular um modo para aquilo que não tinha lugar – e Jean Oury fala justamente das personalidades psicóticas, que são seres de lugar nenhum – se manifeste a partir de um ambiente, ou como a Mirella pensou, a partir da ambiência, que vale enfatizar que não é uma massa amorfa. Assim como o inconsciente, o ambiente é um composto de singularidades – e cada sujeito e cada objeto que compõe o ambiente, são também formados por elementos singulares - que quando articulados mostra uma narrativa inédita. 

 

Uma massa amorfa te a ver com a padronização. E a padronização é estéril. A padronização empobrece a ambiência e enfraquece a singularidade. E essa é uma leitura crítica que trago, citando Jean Oury na íntegra:

 

“Sabe-se bem que o que faz a “podridão” de certos hospitais são as dificuldades de ambiente. Eu falo tanto dos hospitais psiquiátricos quanto dos hospitais gerais. Vocês devem ter lido ou ouvido relatos de hospitalizações em serviço de medicina ou de cirurgia, mesmo os mais modernos. É preciso ver que a qualidade de ambiente (miserável) é mantida: 

o que faz fracassar as intenções, por mais tecnicizadas que sejam! 

Infelizmente, tenho muitos exemplos que se aproximam, de um jeito consciente ou não, em certos casos de eutanásia.”

 

A padronização, a uniformização, ou a serialização - que mostra na superfície, boas intensões - não passam de economias financeiras que tem por resultado uma amálgama, uma aglutinação, discrepante da condição de singularidade do sujeito. Se opõe a diversidade; e não produz espaço para passagem. Não se faz passagens no campo que é homogêneo

 

Não se passa de A para A. 

Se passamos de A para A, continuamos em A.

 

 

Padronizar, uniformizar, ou serializar, silenciam o sujeito. Um campo coletivo escuta. Promove seres falantes para escutar e criar outras cenas, a partir do real. Daquilo que não teve lugar na ordem simbólica e está alienado ao desejo do outro na ordem imaginária.

 

 Os operadores do coletivo são “agidos” pela fala. Falas que produzem fatos de discurso, de acontecimentos, de encontros. E por serem “agidos”, os operadores são também peça operacionalizadasdo dispositivo. Da máquina. Isso é o ambiente. A ambiência. Um lugar de circulação que respeita a dimensão inconsciente. Que trabalha na transferência. E que trabalha não apenas com aquilo já simbolizado ou uniformizado. Mas com aquilo que está fora.

 

O coletivo é atento ao não dito, ao que não tem lugar. Ao que parecia impossível, mas que surge do Real e, a partir daí produz ressignificações novos elementos. E, lembro mais uma vez: O coletivo não é uma massa amorfa. Nós não pretendemos pensar igual.  É um lugar de diferenças, de diversidade. Ou, pelo menos é nesta direção que miramos.