segunda-feira, 14 de junho de 2021

A VERDADE NA TRAGÉDIA DAS IRMÃS PAPIN E DA FAMÍLIA LANCELIN

Instituto Vox

Rede de Trabalhos 2021

Casos Clássicos de Psicoses em Lacan

São Paulo,12 de junho de 2021


Minha contribuição para o estudo do caso das irmãs Papin pretende retomar exatamente a última frase escrita por Cristine Papin, “Eu vos peço que possam me dizer como fazer para confessar e reparar essas dificuldades que me atormentam”. Esta frase foi citada por Mauro Mendes no final de seu artigo, “A culpa do sujeito psicótico” (2018), sobre o crime que estamos investigando mais uma vez.


Porém, para chegar até onde nos interessa, que seria compreender o pedido de Cristine de ajuda-la a alcançar esta verdade, esta confissão, para ela indizível, tenho que fazer uma excursão conceitual, e peço a paciência de vocês para me acompanhar. O fato é que Cristine, por ser psicótica, não consegue dizer a verdade, pois a verdade que reside no lugar do Outro, só pode aparecer no campo simbólico, ser dita, ou melhor, semi-dita, por meio da palavra, do significante, que em Cristine, está foracluído neste ato que leva ao assassinato da senhora e da senhorita Lancelin. Por isso, para Cristine, em Cristine, seu ato permanece até o fim no registro do real, mesmo que já tendo sido reconhecido simbolicamente pela sociedade, na ocasião da sua condenação. Será que é isso que a faz se ajoelhar ao escutar o seu veredito? E pensamos nesta palavra: veredito. Do latim medieval veredictum, derivado de vere, “verdadeiramente” ou de verus – “verdadeiro”, mais dictum, que se traduz “dito”. Ou seja, o “verdadeiro dito”.


Começo, então, com o que venho estudando nos últimos três anos sobre a questão da verdade na psicanálise. Este estudo tem por finalidade situar neste mesmo campo, o da Psicanálise, o fenômeno que conhecemos em nossa cultura como pós-verdade. A pesquisa sobre a pós-verdade, que pretende ser minha tese de doutorado, parte da minha proximidade com as análises das formas e conteúdos publicados na mídia, desde minha primeira formação em Comunicação Social. 


Esta pesquisa, sobre a pós-verdade, trago nesta ocasião porque ela, ao meu entender, converge em muitos pontos com o trabalho do Mauro Mendes Dias sobre o discurso da estupidez, pois as vociferações articuladas nesse discurso, se valem dos absurdos, disseminados pelas fake news, ou seja, pelas informação falsas - as farsas - que denotam, que significam, que se pretendem uma realidade possível para à experiência absoluta da vontade do vociferador - ou do rinoceronte, como Mauro, emprestando do teatro de Ionesco, representou esse articulador do discurso da estupidez. Segundo Mauro, a farsa é um elemento que mobiliza um determinado tipo de gozo, que é típico daquilo que chamamos em nosso campo, a perversão. Porém, citando o Mauro, 


Não é que esse sujeito seja um perverso. Mas é prometido a esses sujeitos que, por via da proliferação desses absurdos, da sustentação da farsa, eu vou poder dizer que aquilo que me limita e não me limita e, consequentemente, manter esse objeto em ereção. (Dias, 2021)

 

Um neurótico, atuando neste campo da perversão representado pelo discurso da estupidez, precisa fazer um laço com uma comunidade uníssona ao seu afeto odiento, para que essa farsa possa ser indeterminadamente repetida, a fim de exterminar a diferença para fazer valer a sua vontade, seu acesso ao gozo pleno. E ainda, o mais impressionante, é a maneira como estes sujeitos deslocam, projetam, suas piores características para o oponente, como vimos há alguns meses na farsa sustentada pelos bolsonaristas, após serem acusados de nazistas, de que Hitler era um esquerdista. É claro que aí existe um caminho mais ou menos complexo a respeito das acusações de ambos os lados, mas fica bem ilustrado o reducionismo que se leva a cabo para difamar o inimigo com uma ideia rasa sobre si mesmo.  Tão infantil quanto uma criança, que com a boca toda suja de chocolate, aponta o dedo para o irmão e diz, “mãe, foi ele que comeu o bolo!”.


 Para que esse tipo de perversidade, articulada no discurso da estupidez, possa acontecer, Mauro (2020) elenca 4 condições: a convicção, a mobilização do afeto do ódio, o empobrecimento do patrimônio simbólico e um representante líder vulgar. O estúpido se apropria de mecanismos arcaicos para sustentar a sua vontade, mas isso não significa que ele não seja marcado pela proibição do incesto e pelo recalque. Pelo contrário, o ódio do rinoceronte é, justamente, um retorno do recalcado - uma reedição da rivalidade fraterna trazida à tona contra aqueles que ameaçam sua completude narcísica.


Esse processo está descrito por Freud no texto “Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e no homossexualismo” (2011 [1922]), precisamente na última parte do texto, onde está formulado um acréscimo ao mecanismo de escolha homossexual de objeto. 


Após explicar o apego à condição de existência de um pênis no objeto, bem como o afastamento [deste objeto] em favor do pai” (p. 217) - ambos fatores relacionados ao complexo de castração – Freud elabora a hipótese de como a ameaça à sua exclusividade da mãe, provocada pelo irmão, culmina em um afeto de ciúme, podendo “atingir a intensidade de desejos reais de morte” (p. 210), mas que, em seguida, será reprimido, sublimado e transformado nos primeiros objetos amorosos homossexuais.


O que vemos acontecer no estúpido, é que este último movimento - a transformação da rivalidade em amor homossexual - facilitado pelo empobrecimento simbólico, retorna como um intenso ódio dirigido à eliminação tanto da diferença, quanto daqueles que possam ser um obstáculo ao seu desejo narcísico, à sua vontade plena. Como se a rivalidade, ao invés de ser sublimada, se intensificasse para garantir, pelo ódio, e não pelo laço fraternal, a sua vontade. O que, visto desta maneira, é diferente de uma constituição estruturalmente perversa, onde, pelo mecanismo da renegação, da recusa da negação, a castração não opera, não há recalque, pois a diferença - a ausência do pênis - é substituída por outro objeto de fetiche que sutura a falta, possibilitando o seu acesso direto ao gozo, mesmo que o próprio sujeito se coloque no lugar do objeto, como é o caso do masoquista.


Assim, aparentado às psicoses, há no perverso uma interrupção do curso normal do sujeito com a realidade, provocando uma clivagem do eu com os fatos do mundo externo, que recusa em reconhecer uma percepção negativa, ou seja, a ausência do pênis na mulher. O objeto de fetiche do perverso, assim como o delírio do psicótico é diferente da farsa no discurso da estupidez; esta farsa que deve ser repetida, insistida e deslocada por uma comunidade de estúpidos, e que tem por característica, a hiperrelativização de fatos, propiciada pelo empobrecimento simbólico e pelo descaso a ciência - distorcidos, reduzidos, simplificados, transformados em motes, ou seja, sentenças reducionistas de uma verdade última e absurdos - de maneira a corroborar com a vontade do estúpido. 


Quando não nos parece pura desonestidade intelectual, frequentemente, esses absurdos soam nos ouvidos leigos, porém razoavelmente sensatos, como falas delirantes paranoicas. Porém, como sabemos nas psicoses – e retomaremos sobre isso um pouco mais a frente - o significante da castração, o nome-do-pai, não faz sua função de corte no eu (imaginário), que irá resultar no conflito entre o Eu (simbólico) e o Id, mas resta foracluído, perdido em algum lugar fora do inconsciente, entre o eu (imaginário) e o mundo exterior. Dito de outra forma, a função paterna, introduzida pelo significante da castração não irá defender o psicótico das investidas do Id, mas sim, do mundo exterior onde lhe desagrada e, assim, por mais semelhantes, fenomenologicamente, que pareçam as falas delirantes e as farsas absurdas, elas não são a mesma coisa. Os exemplos desses casos que se confundem são inúmeros, mas posso citar aqui alguns exemplos, como os fetos abortados na composição da Pepsi (nos primórdios das fake News), ou os chips que estariam dentro das vacinas chinesas, para serem implantados na população, afim de nos monitorar, e tantas outras informações, ou melhor, desinformações, que se confundem com teorias da conspiração.


No caso do discurso da estupidez, a função paterna é operada por algo débil; mas está lá, entre o Eu e o Id, ao mesmo tempo autoritária (rígida) e inconsistente (frágil), sendo operada pela barata - ­cuja figura Mauro empresta do livro de mesmo nome de Ian McEwan (2019). É ela, a barata, o representante do “declínio da imago paterna”, diagnosticado por Lacan, desde 1938, no texto sobre os complexos familiares. 


No caso das psicoses é diferente. As falas delirantes não são efeito de um retorno do recalcado e tão pouco de um declínio da função paterna, afinal, para haver o declínio, a função deve estar operante no inconsciente, o que não é o caso das psicoses. Nas psicoses o que retorna não é o recalcado, mas sim, constatamos um retorno no real daquilo que não pode ser simbolizado. Ou, nas palavras de Lacan “o que não veio à luz do simbólico, aparece no real” (Lacan, 1998 [1954], p. 390).


Vejamos o que acontece no caso investigado: os “olhares” da Sra. Lancelin fora tomado como as “observações” críticas (observamos com os olhos) que Clémence, mãe de Cristine e Lea, dirigia às suas filhas, e que tanto as aborreciam. Esses olhares da patroa, não puderam ser simbolizados, elaborados a partir de um significante que atravessasse a relação imaginária projetada na Sra. Lacelin, que nesta altura da história representava, no delírio compartilhado, a mãe Clémence.  Esses olhares se impuseram de maneira tão insuportável ao ponto de as irmãs arrancar os olhos de sra. Lancelin ainda viva.


Como resultado da foraclusão, o significante da castração não se encontra integrado ao inconsciente do sujeito e há uma retirada do investimento do eu no mundo exterior, fazendo com que verdade do desejo fique exposta, sem a intervenção do princípio de realidade no Id, e invadindo a fala ou a percepção do sujeito e causando as alucinações e delírios. A questão do significante se torna, então, central para pensarmos como a verdade entra na economia psíquica das neuroses e das psicoses, já que, como vimos no início deste texto e veremos novamente mais adiante, a verdade só se manifesta através do significante.


Com essas condições postas a respeito das psicoses e do discurso da estupidez, a experiência da realidade absurda vivida pelo rinoceronte, ou sua “verdade” vivida, é o que chamamos de pós-verdade e não um delírio. A pós-verdade seria um conhecimento a respeito do mundo e das relações que leva em consideração não os fatos objetivos, mas os fatos manipulados, deformados, de acordo com uma crença representativa de sua vontade. A pós-verdade é uma crença elevada ao estatuto de certeza e colocada no lugar da verdade. O sujeito rinoceronte, ele coincide, atuando através da farsa, a verdade com a crença. 


Na escrita do discurso da estupidez como proposto por Mauro, a crença está justamente no lugar ocupado pela verdade, na lógica que se repete dos quatro discursos (DIAS, 2020, p. 86):                   

 


    Se para a psicanálise, a verdade total, a verdade pura, está inacessível à nossa experiência - lembrando que a barra na escrita do discurso representa o recalque -, para o estúpido, articulado no discurso, no lugar da verdade está uma crença que vela a realidade. 


O acesso parcial à verdade e a força na qual ela incide no sujeito, estão abordadas por Lacan em todo o seu ensino, do primeiro ao último seminário, formulando aforismas bem conhecidos por seus leitores, mas talvez nem sempre tão bem entendidos: “Eu sempre digo a verdade”, “a verdade é semi-dita”, “a verdade tem estrutura de ficção” ou “não há verdade da verdade”.  


Para Freud, a verdade não teve menor peso em sua pesquisa. Desde seus escritos pré-psicanalíticos até sua morte, Freud nunca deixou de investigar a verdade. Em uma carta a Fliess, de 1897, ele escreve que “não existe no inconsciente nenhum ‘índice de realidade’, te tal modo que não é possível distinguir, uma de outra, a verdade e a ficção investida de afeto” (Freud, 1986, p.191). Já em seu último texto, Moisés e o Monoteísmo (1939), Freud dedica dois capítulos para a questão da verdade. Um deles chamado “O conteúdo de verdade da religião” e o outro, “A verdade histórica”. Deste texto, Lacan tira duas lições para o seminário 3, das psicoses: (1) que o homem não é manifestamente feito para a verdade e se acomoda facilmente à não verdade; e (2) a dimensão da verdade entra da economia psíquica do homem por intermédio da significação última do pai, ou outra forma de dizer, do símbolo do pai enquanto significante. (p. 250-251) Falaremos desses dois itens.


A não verdade, a entendemos em termos da limitação objetiva de nossa realidade psíquica, esta que se manifesta no sujeito através das fantasias neuróticas ou dos delírios psicóticos, decorrentes da nossa incapacidade de adequar totalmente os fatos ocorridos com a percepção que temos sobre eles. Essa questão está posta por Freud, principalmente no texto “A perda da realidade na neurose e na psicose” (1924b).


A fantasia, é aquilo que situa o sujeito em sua relação com o mundo exterior, equacionando por um lado o princípio de prazer e por outro a lei, a castração, resultando em uma formação de compromisso entre um modo particular de gozo e o desejo do Outro. A fantasia seria a maneira dos neuróticos de “substituir a realidade indesejada por outra mais conforme aos seus desejos” (Freud, 2011 [1924b], p. 220), sem, no entanto, se desamarrar do mundo exterior. Mais ainda, é ela que, de acordo com Lacan, tem por função enlaçar os registros do simbólico, do imaginário e do real.  (Lacan, 2017 [1966-1967]).


Quanto ao delírio psicótico, podemos dizer que é uma construção defensiva do sujeito para sustentar o seu lugar em relação ao mundo exterior, porém, diferente da fantasia, no delírio, o significante opera de maneira deficitária pelo mecanismo da foraclusão. Neste caso, o significante, o nome-do-pai, não intermedia a relação do sujeito com o Outro, fazendo com que a bateria de significantes, esta que constitui o universo simbólico do sujeito, fique escasso do artifício que Lacan nomeou no seminário 3 de “pontos de basta”, o “ponto de convergência que permite situar retroativa e prospectivamente tudo o que se passa nesse discurso”, o ponto que ata o significante e o significado, por onde “tudo se irradia e tudo se organiza”. Para que um ser humano seja dito normal, é necessário um número mínimo desses pontos, sem os quais ou “quando eles não estão bem estabelecidos, ou afrouxam, produzem o psicótico” (Lacan, 1988 [1955-1956], p. 311-312).  


No texto “Neurose e Psicose” (1924a), escrito seis meses antes de “A perda da realidade na neurose e na psicose”, Freud nos explica que na neurose o conflito acontece entre o Eu e o Id, e na psicose, entre o Eu e o mundo exterior, sendo que, em ambos os casos, o Eu ocupa uma posição intermediária entre o mundo exterior e o Id, e se  “empenha em fazer a vontade de todos os seus senhores ao mesmo tempo”. (p. 177, [1924a]). Lacan, depois irá diferenciar o Eu (simbólico, “je”) e o eu (imaginário, “moi”), como dito aqui anteriormente.


Dito isso, podemos compor o esquema da segunda tópica de Freud a respeito da constituição neurótica e da psicótica, assim como situar o ponto onde essas estruturas se afastam da realidade, antecipando aqui, nas palavras de Freud, que “a neurose não nega a realidade, apenas não quer saber dela; a psicose a nega e busca subtituí-la”  ([1924b], p. 218)




Sendo estas as formas bem definidas das estruturas, é importante situar também onde e como elas fracassam. Enquanto o adoecimento neurótico recai no enfraquecimento da repressão ao Id, na psicose o problema acontece quando o mundo exterior invade a subjetividade de maneira a que o eu (que mais tarde Lacan chamará de eu imaginário - ou em francês, “moi”) não consegue evita-la, ou seja, não consegue estar desinvestido deste mundo. Ele é atravessado por algo que ameaça sua construção delirante. Olhando por outro ângulo, podemos dizer que, enquanto as pulsões do id mal reprimidas prejudicam a funcionalidade da fantasia do neurótico, a realidade do mundo exterior perturba o delírio do psicótico, provocando o que chamamos, em ambos os casos, de surto ou de uma desorganização psíquica. 


Foi este o destino das irmãs Papin: Algo da realidade – um curto circuito na rede elétrica que por sua vez ocasionou um olhar da patroa que a empregada entendeu como uma reprovação - atravessou o universo imaginário das irmãs, fazendo com que aquele delírio compartilhado desmoronasse e as levasse junto, afinal suas identidades estavam fragilmente aderidas a este universo fadado ao colapso.


Agora, importante notar que realidade psíquica, realidade do mundo exterior e verdade são conceitos totalmente diferentes. A realidade psíquica está ligada a subjetividade, a maneira como adequamos nossas percepções da realidade do mundo exterior ao nosso desejo; a realidade do mundo exterior seriam os fatos objetivos que nos cercam; e a verdade, para a psicanálise, é uma dimensão, uma possibilidade, um de-vir que reside no lugar do Outro, e, cuja emergência só acontece por meio do significante. Lacan propõe o neologismo “diz-mansão da verdade” (Lacan, 2009 [1971]) para o lugar do Outro, pois é a partir desta dimensão, quando atravessada pelo significante, que a verdade pode ser dita, ou melhor, semi-dita. 


Essas ideias partem da leitura que Lacan faz, principalmente, do cogito e da dúvida metódica de Descartes, e do conceito de verdade em Heiddegger, que por sua vez procede do conceito pré-socrático de alethéia.


Da dúvida metódica Lacan compõe a ideia do Outro como o lugar da verdade, que Descartes propôs como sendo Deus, “a suprema fonte da verdade”. 


Já a ideia heiddeggeriana, que reintroduz na filosofia a aletheia[1], discute que, diferente da verdade que conhecemos como adequação entre o que acontece e o que se diz sobre o acontecimento, a verdade enquanto alethéia significa o desvelamento, a revelação, o que está aí por vir. Tudo o que é, é oposto ao está encoberto. E, assim, a mentira também é uma verdade. Mesmo quando minto, eu digo a verdade. E a condição para a verdade se manifestar, o desvelamento, a alethéia, é a palavra, o significante. Desde o seminário 1, Lacan determina que “antes da palavra, nada é nem não é” ... “é com a dimensão da palavra que se cava no real a verdade” ... “é o ato mesmo da palavra que funda a dimensão da verdade” (1986 [1953-1954], p.297)  


Das duas ideias, referenciadas a Descartes e Heiddegger, incorre a crítica de Lacan à metalinguagem. Isso significa que, devido a condição do acesso à verdade ser a introdução pelo significante, não é possível falarmos a verdade sobre a verdade. A verdade está sempre submetida a linguagem, e, portanto, ao significante, e, por isso, só pode ser semi-dita. Não há linguagem que não seja limitada pela própria linguagem, assim como também não é possível termos a palavra final sobre o sentido do sentido e, finalmente, é por isso que não existe o Outro do Outro, o que Lacan representa com o Ⱥ (A barrado). Sendo a barra a falta, a castração, introduzida pelo significante.


            A crítica à metalinguagem nos devolve ao problema das irmãs Papin, e aqui penso, especificamente, em Cristine. Pelo fator do significante não estar propriamente, suficientemente, integrado ao inconsciente dela, sua verdade resta perdida, e Cristine não pode dize-la. 


“O significante introduz a ordem da verdade no mundo”, disse Lacan no Seminário 5 (1999 [1957-1958], p. 321). Porém, quando o Outro - a diz-mansão da verdade - não está barrado pelo significante, deparamo-nos com a falta da falta.  Ou seja, a falta do significante - que permite que a palavra semi dita sobre a verdade possa emergir no campo do simbólico - faz com que o acontecimento, o assassinato, não seja possível de ser falado por Cristine.

Até a tragédia, Cristine e Lea viviam o seu delírio a dois, certas de que estavam protegidas do mundo exterior. Não havia falta.  É este o sujeito da certeza, que produz uma narrativa delirante e se depara, como nos diz Freud, “com a tarefa de obter percepções tais que correspondam à nova realidade” (2011 [1924b], p. 218): as alucinações. 


É aqui, neste ponto que podemos estabelecer a diferença fundamental de como a verdade entra na economia psíquica do neurótico e do psicótico. No neurótico, a verdade entra sempre como uma ficção, como uma metáfora, pois não é possível o acesso pleno a ela quando se está interpelado pelo significante, que por sua vez a introduz, da maneira possível, na ordem simbólica. A verdade na neurose está velada em um horizonte de possibilidades, para onde o sujeito endereça sua pergunta, sua busca, e faz o seu enigma. 


Já na psicose, no delírio, a verdade aparece como uma certeza indiscutível. É bem sabido o risco ou erro que o analista incorre ao duvidar de seu paciente psicótico. Se tentarmos retirar o delírio, certamente causaremos uma grande desorganização psíquica e fracassaremos com o caso. É por isso que Lacan propõe no seminário 3 que “o delirante, o psicótico, está unido ao seu delírio como a algo que é ele próprio (1988 [1955-1956], p. 252). 


O Outro, este lugar onde a verdade habita, não atravessado pelo significante faz com que a verdade reste submetida apenas aos registros do Real e do Imaginário, já que o registro do Simbólico dependeria do significante para poder operar. Pensemos que no surto psicótico há um desencadeamento radical nos três registro que formam o nó borromeu, ficando o Simbólico fora do jogo. 


No caso de Cristine, seu delírio, que até então estava sustentado, entre outros fatores, pela ideia de que a Sra. Lancelin era uma “boa mãe”, cai por terra quando defrontada com o olhar da patroa que, ao entrar em casa e se deparar com o curto-circuito na rede elétrica, parecia reprova-la. “Ela quer me matar”, pensou. 


O entendimento de Cristine quanto ao olhar da Sra. Lancelin comprometeu, imediatamente, a sua organização psíquica, levando ao desmantelamento do delírio e, consequentemente, a passagem ao ato. O registro Imaginário, que vinha até então sustentando a constituição subjetiva de Cristine, veda a sua certeza - e não, somente, vela a verdade como acontece na subjetividade neurótica – que, por sua vez, impossibilitada de encontrar um destino menos cruel na ordem simbólica, surge no Real.


Dessa operação podemos retirar duas consequências: 


(1)  Este desencadeamento radical dos registros Imaginário e Real do registro do Simbólico produz um tipo de apagamento da passagem ao ato na memória de Cristine que, ao ser perguntada sobre o crime, responde: “Já não me lembro direito do que aconteceu”.


(2)  E, finalmente, para fecharmos esta construção, sobre a última frase de Cristine encontrada após sua morte, citada no inicio deste trabalho, “Eu vos peço que possam me dizer como fazer para confessar e reparar essas dificuldades que me atormentam”, entendemos que ela nos pede para ajuda-la a dizer algo, para ela impossível. Apesar de a atrocidade cometida ter o reconhecimento no campo social pela via da condenação jurídica, dada a falta do significante que viabilizaria a simbolização da cena traumática, ela continua no registro do real. A verdade está barrada pela certeza constituinte de um delírio que, por sua vez, a esta altura, está desmantelado. Prisioneira e isolada de qualquer outro significante que pudesse lhe fazer suplência para sua completude narcísica e constituir um delírio, Cristine não pode falar por si. Ainda que queira.

 

 

REFERÊNCIAS


Descartes, R. “Meditações”. In: Os pensadores – Descartes – Vida e Obra. Tradução Enrico Corvisieri. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda., 1999 [1641].


Dias, M. M. “A culpa do sujeito psicótico”. Biblioteca Virtual do Instituto Vox de Pesquisa em Psicanálise, 2018. Disponível em: <http://voxinstituto.com.br/wp-content/uploads/2018/05/a-culpa-do-sujeito-psicotico-1.pdf >. Acesso em: 10 de junho de 2021.

________. O discurso de estupidez. 1. Ed. São Paulo: Iluminuras, 2020.

________. Núcleo Psicanálise e Psicoses – Palestra As Psicoses e o ódio na Cultura e na Política, 01 de março de 2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=3iihwQhPl6Y&t=5862s> Acesso em: 10 de junho de 2021.

Freud, S.  A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess 1887/1904. Tradução V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Imago, 1986.


________. “Sobre alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e na homossexualidade”, In: S. Freud Obras Completas. Vol. 15. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 2011 [1922]. 


________. “Neurose e psicose”. In: S. Freud Obras Completas. Vol. 16. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011 [1924a].


________. “A perda da realidade na neurose e psicose”. In: S. Freud Obras Completas. Vol. 16. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011 [1924b]. 


Heiddeger, M. Ser e Verdade: a questão fundamental da filosofia; da essência da verdade. Tradução E. Carneiro Leão. 2. Ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universidade São Francisco, 2012 [1933-1934].


Lacan, J. O Seminário, Livro 1: Os escritos técnicos de Freud.  Tradução V. Milan. Rio de Janeiro: Zahar. 1986 [1953-1954].


________. O Seminário, Livro 3: As psicoses. Tradução A. Menezes. Rio de Janeiro: Zahar, 1988 [1955-1956].


________. “Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a ‘Verneinung’ de Freud”. In: Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998 [1954].


________. O Seminário, Livro 5: As Formações do Inconsciente. Tradução V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999 [1957-1958]. 


________. O Seminário, Livro 14: A Lógica do Fantasma. 3. Ed. Tradução A. Lyra, C. B. Fleig, D. A. L. Araújo, I. Chaves, I. Corrêa, L. P. Fonsêca, L. A. Tavares, Mª. L. Q. Santos e M. Fleig. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2017 [1966-1967].


________. O Seminário 18: De um discurso que não fosse semblante. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009 [1971]. 


Roudinesco, E. “As irmãs Papin”. In: Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. Tradução Paulo Never. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.


Vialet-Bine, G e Coriat, A. “Um caso de J. Lacan: As irmãs Papin ou a loucura a dois”. In: Os grandes casos de psicose. Direção J.-D. Nasio. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 

 



[1] Alethéia é uma palavra que deriva de Léthê, um dos rios de Hades, e que significa “esquecimento”, “ocultação”. Na mitologia, ao entrar no mundo de Hades, aquele que bebesse dessa água esqueceria de sua vida passada.