quinta-feira, 12 de julho de 2012

Quando a Filosofia Dança


UMA REFLEXÃO SOBRE A INFLUÊNCIA DO CONCEITO DE "CORPOS SEM ÓRGÃOS" DE DELEUZE E GATTARI E DA OBRA "NA SOLIDÃO DOS CORPOS DE ALGODÃO", DE KOLTÈS, NA COREOGRAFIA “NA INFINITA SOLIDÃO DESSA HORA E DESSE LUGAR”, DA CIA. CORPOS NÔMADES.
 

“Eu não estou aqui para dar prazer, mas para preencher o abismo do desejo, recordar o desejo, obrigar o desejo a ter um nome, arrastá-lo até a terra, dar-lhe uma forma e um peso, com a crueldade obrigatória que existe em dar uma forma e um peso ao desejo. E porque eu vejo o seu aparecer como saliva no canto dos seus olhos, que escorre pelo seu rosto e seus lábios engolem, eu esperarei que ele corra ao longo do seu queixo ou que você o cuspa antes de te dar um lenço, porque se eu te der o lenço cedo demais, eu sei que você o recusaria, e é um sofrimento que eu definitivamente não quero sofrer.
…você conhece estas ruas, você conhece esta hora, você conhece os seus planos; eu, eu não conheço nada, eu arrisco tudo. Na sua frente, eu estou como na frente desses homens travestidos em mulheres que se fantasiam  de  homens, no fim, não se sabe mais onde está o sexo. “ (Koltès, p. 11-12)[1]

INTRODUÇÃO
“Se você está a essa hora nesse lugar, é porque você quer alguma coisa que você não tem”. Esse é o mote do espetáculo de dança “Na Infinita Solidão Dessa Hora e Desse Lugar”, da Cia. Corpos Nômades, que ficou em cartaz até o dia 11 de março de 2012,  no espaço O Lugar, da própria companhia.

Apropriando-se do conceito de desejos como "corpos sem órgãos" dos filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari e de trechos do dramaturgo, também francês, Bernard-Marie Koltès, mais precisamente da peça “Na Solidão dos Campos de Algodão” -, o diretor da companhia de dança contemporânea João Andrezzi reproduz em movimentos e sons o espírito do cotidiano da Rua Augusta, em São Paulo, marcado pela busca de algo que não se sabe ao certo o que é, mas que tem a marca do delírio da satisfação e da solidão que a vida urbana está, a todo o tempo, ameaçando.

A COMPANHIA E A COREOGRAFIA

Fundada oficialmente em 2000, a Cia. Corpos Nômades é conhecida por agregar outras linguagens à dança contemporânea, como teatro, literatura, vídeo-arte, música e instalações performáticas. “Na Infinita Solidão Dessa Hora e Desse Lugar”, tem em sua raiz a interdisciplinaridade tanto na narrativa como na forma, pois busca elementos da filosofia, da dramaturgia, da vídeo-arte e da interatividade.

Uma vez baixado o portão de ferro d’o Lugar, uma casa antiga (onde morou Mario de Andrade) situada na região do "Baixo Augusta", o público é conduzido a um galpão coberto por pôsteres de shows e festas. Não há palco, mas uma espécie de passarela larga. À direita de quem entra, cerca de vinte cadeiras ficam dispostas, lado a lado, em fileira única onde os espectadores sentam.

Começando o espetáculo, Andreazzi, dançarino principal, de capacete e preso a um pára-quedas, como se tivesse caído do céu, levanta-se languidamente. Aos poucos os bailarinos, sentados em uma arquibancada, ao fundo, também vestindo capacetes de motoqueiro e ponchos feitos com os mesmos cartazes que estão nas paredes, levantam-se e ocupam o espaço. Assim, os desejos que movem alguns personagens da rua Augusta - motoboys, punks, moradores de rua, prostitutas, comerciantes e traficantes, só para citar alguns –, começam a ser mostrados de forma sutil e confusa fazendo com que o público sinta o mesmo estranhamento que eles perante as ofertas e possibilidades da vida caótica urbana.

Poucas vezes durante o espetáculo há linearidade. Noite e dia se confundem. Nem mesmo os personagens, com exceção talvez dos motoboys, é claramente identificado. Com uma peruca rosa espetada ali, uma camisa com um corpo seminu estampado acolá,  os personagens são representados de maneira dúbia.

A video-arte fica por conta de uma câmera que é levada para rua pelo dançarino principal para descrever o que acontece fora, enquanto uma tela mostra as imagens ao vivo para quem está dentro do galpão. É pura abstração: o próprio tema do espetáculo o invade.  Já a interação acontece quando um dos espectadores recebe uma ligação no celular feita por Andreazzi[2], que pergunta: : “Por que escolhemos o nosso sofrimento?”. A resposta, variável, gera uma reação única por parte do dançarino, que faz a chamada. É estabelecido não apenas um diálogo, mas uma relação com o imprevisível.

GUATTARI, DELEUZE E KOLTÈS
Fonte de inspiração declarada pelos criadores da coreografia , o texto "Como Criar para Si um Corpo sem Orgãos" da obra Mil Platôs de Gattari e Deluze, investiga a condição do desejo. Para os filósofos o desejo ganha o conceito de "corpo sem órgãos", que deve ser um "processo que [se] produz independente da ideia do corpo como origem das necessidades e lugar dos prazeres." Por isso, na dança, os personagens mostram uma constante busca desconexa e abstrata, deixando no ar as ideias plausíveis sobre o objetivo de suas vidas.

Mesmo o que nesta coreografia é chamado de dança, é discutível, pois não apresenta as características tradicionais desta forma de arte. Não há sincronismo entre os bailarinos, não há exatamente um ritmo a ser seguido, e mesmo a música é muitas vezes confundida com ruídos caóticos. É como se a dança assim como o desejo conceitualizado por Gattari e Deleuze estive pairando no galpão, independente de corpos, sendo construída e absorvida no plano de consistência (que de acordo com os filósofos é o plano "onde o desejo se define como processo de produção, sem referência a qualquer instância exterior". É neste plano de consistência que a dança se desenvolve.

A influência de Bernard-Marie Koltès é explicada pela sua própria temática. A relação entre a dança e a peça em questão é muito próxima.

 Em Na Solidão dos Campos de Algodão, o autor francês, como em outras obras, tematiza a solidão. Não há uma ação evidenciada - o texto é construído a partir de extensos monólogos e o conflito se estabelece até o final pela contraposição desses discursos que subentendem dois lados complementares de uma situação. São dois homens sem nome e sem referências passadas explícitas, que expõem, por meio da palavra, um jogo feito apenas de sugestões ao longo de cada monólogo. Tráfico de droga ou de sexo, o texto não explicita as motivações nem o local onde se dá o encontro. (Encliclopedia Itaú Cultural)


Andreazzi expões seu ponto de vista sobre as pessoas que habitam e transitam pela Rua Augusta. Pode-se entender que ele vê esses sujeitos como indivíduos sem nome, cuja identidade se perdeu em meio a multidão e, paradoxalmente, a solidão . Todos são um, sem diferença. Ninguém sabe ao certo o que faz, mas procura algo que vá preencher seus vazios, seus desejos quase insanos permeados pela ignorância da existência.

REFERÊNCIAS
______. A Companhia. Cia. Corpos Nômades. Disponível em: < http://
Www.ciacorposnomades.art.br/wordpress/?Page_id=29>. Acesso em: 14 jun.
2012.

______. Temporada 2012 – “Na Infinita Solidão Dessa Hora e Desse Lugar”
Com Cia. Corpos Nômades. Cia. Corpos Nômades. Disponível em: <http://
Www.ciacorposnomades.art.br/wordpress/?P=960>. Acesso em: 14 jun. 2012.

Na Solidão dos Campos de Algodão. Encliclopedia Itaú Cultural. Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=espetaculos_biografia&cd_verbete=299>. Acesso em: 14 jun. 2012.

KOLTÈS, Bernard-Marie. Na Solidão dos Campos de Algodão. [1986] Scrib. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/20327803/Na-solidao-dos-campos-de-algodao. Acesso em: 14 jun. 2012.

DELEUZE, Guilles.; GUATTARI, F. Como criar para si um corpo sem órgãos. In: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 3. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.



[1] O fragmento foi extraído de uma tradução disponível na internet (a única encontrada) sem crédito ou data. Foram pesquisadas algumas montagens da peça em português e entre os tradutores encontramos Jacqueline Laurance (1996), Nuno M. Cardoso (1999), Nuno Júdice (2006) - este dois últimos, de Portugal. Há também uma montagem  de 2009, no Brasil, do diretor Caco Ciocler, mas esta não credita o tradutor.
[2] Quando compra-se a entrada do espetáculo o vendedor da bilheteria pede o telefone das pessoas que irão assistir.