segunda-feira, 2 de setembro de 2013

A CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO SOCIAL DOS MORADORES DO LIXÃO: Estamira e Avenida Brasil


Por Vivian Vigar e Arthur Meucci

APLICANDO ALGUNS CONCEITOS SUGERIDOS POR SLAVOJ ŽIŽEK - COMO O "HERÓI MODERNO", O "COMUNISTA LIBERAL" E AS "NOVAS FORMAS DE APARTHEID" - NA ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO SOCIAL DO MORADOR DOS ATERROS SANITÁRIOS DO BRASIL. PARA TANTO UTILIZAMOS DOIS PRODUTOS MIDIÁTICOS - UM REALIZADO PARA TELEVISÃO E OUTRO PARA O CINEMA, RESPECTIVAMENTE, UMA OBRA DE FICÇÃO E UMA DE NÃO-FICÇÃO - DELIMITANDO NOSSO ENTENDIMENTO A CERCA DE SUAS TEORIAS NARRATIVAS E, FINALMENTE, IDENTIFICANDO UM TRAÇO IDEOLÓGICO, NAS CONSTRUÇÕES, CUJA HERANÇA PODE SER RESGATADA TANTO NA LUTA DE CLASSES COMO NA MORAL CRISTÃ.

Introdução
Dentro da tradição de pesquisa no campo da comunicação há duas linhas de pesquisa que pautam a produção de conhecimento. A primeira linha estuda a produção e divulgação da mensagem midiática dentro dos processos educativos. A segunda linha estuda a recepção das mensagens midiáticas e seu impacto no espectador. Esta pesquisa se enquadra exclusivamente na primeira linha, pois busca refletir a construção (sendo assim, a produção) do imaginário sobre o morador de aterro sanitário (lixão) através do filme-documentário Estamira e da telenovela Avenida Brasil.
Estamira, que teve o roteiro e direção do cineasta Marcos Prado, foi premiado em festivais nacionais e internacionais de cinema. O filme mostra a vida de Estamira Gomes de Souza, que há 20 anos trabalhava no aterro sanitário Jardim Gramacho. Por conta da repercussão social do documentário, e sua utilização para fins educativos, ele foi disponibilizado pelo cineasta na internet em licença pública[1].
Transmitida no horário nobre da Rede Globo de Televisão, a telenovela Avenida Brasil, criada e escrita por João Emanuel Carneiro e dirigida por Ricardo Waddington, foi sucesso de audiência e de críticas. A história narra os planos de vingança arquitetados pela protagonista Rita (posteriormente chamada de Nina pela família adotiva) contra sua ex-madrasta Carminha, que arquitetou a morte de seu pai, Genésio, e que a abandonou em um aterro sanitário, onde foi salva por Mãe Lucinda e depois adotada por uma família da Argentina. Exibida inicialmente no dia 26 de março de 2012 foi encerrada no dia 19 de outubro do mesmo ano.
Recorrendo às estruturas do documentário, propostas por Bill Nichols (acadêmico e crítico cinematográfico norte-americano do campo dos filmes documentário), e às estruturas da telenovela, como registradas por Maria Lourdes Motter, analisaremos o processo de "estereotipação" dos protagonistas, adaptado de acordo com sistema social, para funcionarem ideologicamente na construção do imaginário coletivo dos reais moradores de aterro sanitários. Ou seja, partimos da preposição de que a composição de um personagem, tanto na ficção como na não-ficção, agenda temas que podem ser discutidos academicamente, visando entender a, quase imperceptível, incisão ideológica no imaginário social. Para tanto, utilizaremos, predominantemente, o teórico Slavoj Žižek, na tentativa de identificar interdisciplinarmente[2] o viés ideológico pelo qual defendemos ser construído o imaginário social.

Telenovelas e documentários
            Antes de iniciarmos a análise da construção do imaginário através dos personagens aqui sugeridos, demonstraremos, brevemente, o que entendemos por filmes documentários e telenovelas.
Toda telenovela é essencialmente uma novela representada teatralmente. O dicionário Houaiss define novela como uma “narrativa breve, maior do que um conto e menor do que um romance, e que se caracteriza por apresentar uma espécie de concentração temática em torno de um número restrito de personagens” (2009, p. 1364) e a telenovela como "novela escrita diretamente ou adaptada para televisão sob a formula de capítulos diários" (ibidem, p. 1824). Ainda segundo o dicionário, toda novela se estrutura na figura de um protagonista e de um antagonista, constatação referendada pela pesquisadora Maria Lourdes Motter: “Na telenovela, como na história das narrativas que atravessam o tempo, o herói deve ser alguém que tenha qualidades, se não excepcionais, pelo menos diferenciadas. Suas virtudes nascem da relação que se estabelece com seus antagonistas” (Motter, 2004, p. 66).
            A telenovela da qual nos referimos aqui é tida como uma obra de ficção, com atores que interpretam histórias concebidas pelos autores, mesmo que, muitas vezes, percorram situações factuais. Na telenovela Páginas da Vida (2006), por exemplo, ao final de cada capítulo era exibido um depoimento de uma “pessoa real” sobre um caso de sua vida relacionado a trama da novela. De acordo com a colunista de telenovelas Laura Mattos, ouvida por Alexandre T. Santos para escrever O docudrama na telenovela: qualquer semelhança com fatos e pessoas reais terá sido mera coincidência?  (2008), a finalidade do autor de Páginas da Vida, Manoel Carlos, era de fazer o telespectador se identificar com os personagens da novela, evidenciando a proximidade entre ficção e a vida real.
            A telenovela analisada neste artigo, Avenida Brasil, não pretendeu de forma alguma, ser um relato não ficcional, mas observamos que ela percorre temas familiares a todos os brasileiros, como o abandono de crianças, a miséria e a nova classe C. Nilson Xavier, crítico de novelas e autor do Almanaque das Telenovelas Brasileiras, observou que:
A novela [Avenida Brasil] fez um bom uso da situação socioeconômica do País para refletir na tela um retrato pitoresco de nossa realidade contemporânea. (...)
A “nova classe C” da novela cativou todas as classes. Como em um jogo de certo e errado, o autor brincou com as nuances simbólicas de ricos e pobres, elaborando uma crítica social muito pertinente, seja através da grã-fina da Zona Sul (Verônica/Débora Bloch), que fazia pouco caso da figura do suburbano, ou no pobre novo-rico que zombava do elitismo. (...) (Xavier, sem data)[3]

            Ainda no mesmo texto, Xavier mostra que, apesar da referência ao fenômeno na economia brasileira, o autor da telenovela, João Emanuel Carneiro, nega ter qualquer “ambição sociológica” ou “vontade de fazer uma novela sociológica sobre o Brasil atual”, e afirma que Avenida Brasil é “um exercício de ficção” (Carneiro apud Xavier) cujas referências vem de personagens ambíguos: como Raskolnokov, de Crime e Castigo;  e o lixão, inspirado em Charles Dinkens, referindo-se a saga em duas fases de Oliver Twist.
            É possível enxergar a cima, algumas questões que podem anuviar a fronteira entre o que é entendido como ficção e não-ficção, e para não ficarmos no empasse, e podermos seguir a diante na proposta deste artigo, optamos por uma visão que busca traçar uma linha entre os dois tipo de narrativa. Fernão Pessoa Ramos[4], percebe esse empasse apontando para uma hegemonia “em nossa época que tem um certo orgulho em mostrar fronteiras tênues entre o campo da ficção e da não-ficção, embaralhando definições”, devido a “preocupação do pensamento contemporâneo em frisar a fragmentação da subjetividade que sustenta a representação.” (Ramos, 2001, p. 198) Contrapondo-se a este entendimento dominante, é proposto, então, um recorte analítico-cognitivista para singularizar o documentário. De acordo com Ramos, este recorte trabalha com dois conceitos:
            A) “Proposição assertiva” - Onde distinguimos a concepção originária da obra, que por sua vez é
composta por enunciados sobre o mundo, caracterizados como asserções.(...) O discurso documentário seria uma narrativa com imagens, composta por asserções que mantém uma relação com a realidade que designam (...) A asserção documentária deve, para a abordagem analítica, ser definida e trabalhada a partir de proposições lógicas, que fecham o campo para a definição de seu conteúdo de verdade. (ibidem, p. 200 -2003)

            B) “Indexação” - “aponta para uma dimensão pragmática, receptiva, do documentário”, levando em conta os objetivos dos realizadores e a postura dos espectadores que podem, de acordo com Ramos, tentar construir uma ambiguidade ou se enganarem, respectivamente. “Mas no geral temos um saber prévio sobre se estamos expostos a uma narrativa documental ou ficcional.” (ibidem, p. 203-204 ).
            Para entender melhor este recorte podemos nos voltar a obra referencial usada por Ramos, Introdução ao Documentário (2012), do teórico e crítico de cinema documental, Bill Nichols, que se prolonga em definir como sabemos se estamos assistindo a um documentário ou a uma obra de ficção, abordando, entre outras análises, quatro ângulos presentes em um filme:
            A) A estrutura Institucional: as instituições que produzem o filme os distribuem com o rótulo de documentário ou ficção “antes de qualquer iniciativa do crítico ou do espectador” (Nichols, 2012, p. 49). No caso de Estamira, sabemos a princípio que é um documentário, pois estreou em vários festivais de cinema do gênero, como o festival É Tudo Verdade, o Festival Internacional de Documentário de Marseille, Festival Biografilm, entre outros, além de ter recebido vários prêmios na categoria “documentários” em outras competições de cinema em geral.
            B) A comunidade de profissionais: “Os documentaristas compartilham o encargo, auto imposto, de representar o mundo histórico em vez de inventar criativamente mundos alternativos” (ibidem, p. 53), diferente dos roteiristas de ficção que tem, em seu escopo de trabalho, a tarefa de elaborar histórias originais. Marcos Prado, como veremos mais a frente, já constituía uma carreira artística voltada para a documentação histórica há muitos anos, mesmo que de maneira poética. Conhecendo a origem profissional do diretor, o espectador terá reforçado que assistirá a um relato factual.
            C) O corpus de textos:  Os documentários sustentam “um argumento, uma afirmação ou uma alegação fundamental sobre o mundo histórico”. (ibidem, p. 55) e, normalmente, apresentam uma “lógica informativa”. Parte de um problema, atravessa uma complexidade, até encontrar uma solução ou caminho para esta, onde o espectador poderá se associar. No caso de Estamira há uma alegação de que a protagonista sofre com distúrbios psiquiátricos devido as dificuldades que passou em sua vida, ainda que deixe para o espectador a oportunidade para refletir sobre as condições mostradas no filme. Porém, mais relevante para a distinção entre ficção e documentário é o uso de dados de arquivos (documentos) e  montagem (uso de voz-over, depoimentos, que indicam  a imagem).
            D) O conjunto de espectadores: Existe uma relação indexadora das imagens e sons usufruídas pelos espectadores com o mundo histórico: percepção de que o que é visto na tela não aconteceu exclusivamente para o filme. O espectador, sujeito visualmente e auditivamente treinado com o mundo do espetáculo, consegue perceber se o que ele está assistindo é uma cena montada em um estúdio. Mesmo que suscetível ao ludíbrio (como é o caso dos mockumentários[5] This is Spinal Tap [Rod Reiner, 1982] e A bruxa de Blair [Daniel Myrick, 1999]), normalmente,  o espectador faz essa distinção intuitivamente.
            Nesta difícil tarefa, Nichols, ainda defende que todo o filme é, de certa forma, um documentário, pois mesmo na ficção está impresso,  através de narrativas imaginadas, nossos sonhos ou pesadelos, prazeres ou angústias, frutos da época em que foi produzido e que as pessoas vivenciam; o que Hegel chamou de Zeitgeist.  A esses filmes, Nichols  classifica como “documentários de satisfação de desejos”, ou seja, a sublimação por meio da arte, como entendida por Freud em O mal-estar na cultura, pode saciar, ainda que apenas em parte, não somente as vontades do criador, mas também de seus espectadores

(...) a satisfação é obtida a partir de ilusões reconhecidas como tais, sem que se permita  que o afastamento da realidade perturbe o gozo. A região donde provém tais ilusões é a da fantasia; quando o desenvolvimento do senso de realidade se completou, ela foi expressamente dispensada das  exigências da prova de realidade e foi destinada ao cumprimento de desejos de difícil realização. No topo dessas satisfações fantasísticas se encontra o gozo de obras de arte, também tornado acessível a quem não é criador através da mediação do artista. Quem é sensível à influência da arte não tem palavras suficientes para louvá-la como fonte de prazer e consolo a vida. No entanto, a suave narcose em que a arte nos coloca não é capaz de produzir mais do que uma fugaz libertação das desgraças da vida, e não é forte o bastante para fazer esquecer a miséria real.
(FREUD, 2010 [1929], p. 71)

            Na telenovela Avenida Brasil, por exemplo, grande parte do enredo foi criado a partir de imaginários da cultura popular, como por exemplo o estereótipo do novo-rico vivido pelo jogador de futebol, Tufão, e sua família, representado pelo mau gosto e exagero na decoração da casa e na forma de se vestir. Ou ainda as “periguetes”, que já faziam parte do imaginário coletivo, principalmente entre os cariocas, mas que ganharam mais notoriedade após a novela. Ou mesmo temas, recorrentes desde as tragédias gregas, relacionados a "Eros (amor romântico, prazer) e thymos (inveja, competição, reconhecimento)" (Žižek, 2008, p. 186). Os espectadores podem, por meio desses personagens de ficção se identificar e expressar suas vontades em julgar ou torcer; ou seja, satisfazer, de uma forma socialmente aceitável, "os desejos de difícil realização".
            Por outro lado, Nichols classifica como  “documentários de representação social” aquilo o que:
... comumente chamamos de não-ficção. Esses filmes nos dão uma representação tangível dos aspectos do mundo que nós vivemos e compartilhamos. Ele faz com que a realidade social seja visível e audível em uma forma distinta, de acordo com os atos de seleção e arranjos realizado por um cineasta. Eles dão um senso do que a realidade pode ter sido, pode ser agora, ou poderá vir a ser. Esses filmes podem também carregar verdades, se optarmos que sim. Cabe a nós avaliar suas reivindicações e afirmações, suas perspectivas e argumentos em relação ao mundo como conhecemos e decidirmos se é ou não é digno de nossa confiança. Documentários de representação social nos oferece  novas visões e para explorar e compreender o nosso mundo. (Nichols, 2001, p.2)

            Tendo delineado, brevemente, nosso entendimento sobre filmes documentários em relação a Estamira, e telenovelas, em relação a Avenida Brasil, podemos agora passar por algumas ideias sobre a construção do imaginário social para, então, analisarmos os dois objetos aqui propostos.

Imaginário Social
O imaginário socialmente construído pelo senso comum influencia e é influenciado pelas representações sociais que as mídias fazem de seus personagens. Tanto em Avenida Brasil quanto em Estamira as personagens e seus coadjuvantes interagem com as identidades culturais do nosso país, reproduzindo ou questionando como rotulamos as pessoas segundo suas crenças religiosas, profissões, região em que mora e, principalmente, sobre tudo aquilo que consomem ou deixam de consumir. O imaginário oferecido pela cultura nacional, como nos ensina Stuart Hall,
são compostas não apenas de instituições culturais, mas também dos símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influência e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos. (2002, p. 50)

            As estruturas culturais de uma sociedade estão cunhadas nos mitos reproduzidos por suas histórias e seus sistemas de educação familiar, midiático, escolar e econômico que, imperceptivelmente, perpetuam os símbolos e representações que constituem o imaginário sobre a realidade que todos os membros do grupo compartilham. As construções dos personagens de Avenida Brasil e de Estamira não passaram incólumes aos estereótipos presentes no discurso do senso comum.
            Tantos os moradores presentes no aterro sanitário da telenovela quanto os do documentário são apresentados como pessoas em estado de miséria, sem estrutura familiar ou respaldo do Estado, carregando uma desgraça particular que “justifica” suas situações - na novela Mãe Lucinda e Carminha são vítimas da maldade de Santiago, e Rita vítima da maldade de Carminha. Já no filme, Estamira é apresentada como vítima de seus dois ex-maridos, de seu pai e de seu avô, além de ser portadora de uma grave doença psíquica.
Ao contrário dos moradores de calçada, tidos pelo senso comum como potencialmente maus e repugnantes (Hana, 2012), os moradores de aterro sanitário são socialmente bem vistos e geram comoção, o que pode ser constatado através em dois fatores: primeiro, quem está no “lixão” trabalha; já quem mora na calçada não exerce uma atividade econômica "legítima"; eles, normalmente, vivem de restos e esmolas. A ideologia cristã do trabalho sofrido e mal remunerado, encarnado por pessoas humildes, casa perfeitamente com o estereótipo dos moradores de aterro. Tanto Mãe Lucinda quanto Estamira são retratadas em discursos religiosos e como porta-vozes da moralidade, o mesmo acontece com Rita e Carminha quando residem no aterro. O segundo fator pode ser explicado por meio das novas formas de apartheid proposto por Žižek: "Estamos testemunhando um crescimento rápido de uma população fora do controle do Estado, que vive em condições fora da lei, com necessidade urgente de formas mínimas de auto-organização". (Žižek, 2012, p. 419) Enquanto o morador de calçada circula livremente pela cidade sem se preocupar com a classe social que reside ou trabalha na região onde se encontra, o morador do aterro sanitário se fixa em um local específico, longe do contato visual da "elite".  A esta "elite",  Žižek chamará de comunistas liberais: são sujeitos que vivem segregados em suas comunidades e condomínios ("gated communities"), e ainda, acreditam estar construindo um mundo melhor, fazendo caridade, "comendo alimentos orgânicos e tirando férias em reservas florestais". (Žižek, 2008, p. 27).
            Tomando, então, por pressuposto que o imaginário social se desenvolve a partir de estruturas sociais, podemos utilizar a concepção de representação social de John Thompson. No livro Ideologia e Cultura Moderna (1995), o sociólogo entende que fenômenos culturais, aceitos e transmitidos, são formas simbólicas em contextos estruturados, levando em consideração que esta concepção é parte de uma análise “estrutural” da cultura onde “formas simbólicas estão inseridas em contextos sociais estruturados que envolvem relação de poder, formas de conflito, desigualdade em termos de distribuição de recursos e assim por diante” (Thompson, 1995, p. 22).
            Ele segue explicando como essas formas simbólicas sofrem um processo de valorização (valor simbólico ou valor econômico) e são transmitidas culturalmente através do que ele chama de “reprodução simbólica de contextos sociais” que, como uma ferramenta ideológica, serve “em circunstâncias específicas, para estabelecer, manter e reproduzir relações sociais que são, sistematicamente, assimétricas em termos de poder” (ibidem, p. 203), fazendo transparecer em suas considerações, uma arbitrariedade, por parte do poder dominante, na constituição do imaginário social.
Os problemas econômicos e sociais do país, que atuam como causa determinante da situação de miséria, e é sistematicamente representado e assimilado no imaginário social, é dito ou retratado en passant, como se fosse um fato triste e comum; sintoma de anos de exploração colonial: o Brasil preso nas armadilhas de sua história e que, agora, "comunistas liberais" - como Žižek se refere a empresários como Bill Gates e George Soros - dedicam parte de seu tempo a causas humanitárias, se mostrando dispostos a reverter esta situação. Um imaginário social que parte de uma miséria enraizada na história, assim redimindo a classe dominante de culpa, e encontra sua solução nas boas ações dessa classe. Porém, longe de ser verdadeiramente funcional, esta prática comunista liberal vela a exploração e a competição injusta de mercado, para, enfim, legitimar o capitalismo global, e manter a estrutura de dominação.

Na ética comunista liberal a perseguição implacável do lucro é contrabalançada pela caridade. Caridade é a máscara que esconde a face da exploração econômica. Em uma chantagem de proporções gigantescas, os países desenvolvidos "ajudam" o subdesenvolvido, com auxílio, créditos, e assim por diante, e, assim, evitando a questão-chave, ou seja, a sua cumplicidade e coresponsabilidade pela situação miserável do subdesenvolvido. (Žižek, 2008, p. 22)

            Podemos trazer para este contexto os programas de incentivos culturais e ONGs, que atuam no Brasil, fomentando a produção, por exemplo, cinematográfica ou com programas de sustentabilidade. No Brasil, a Petrobrás é um dos casos mais evidentes: se por um lado é frequentemente denunciada por danos ambientais, por outro, está constantemente lançando novos programas de recuperação e preservação ambiental, além de financiar inúmeros projetos culturais.
            O filme Estamira, também teve patrocínio da indústria petrolífera, no caso, a empresa Aster Petróleo, que encerrou suas atividades em 2004 (antes do lançamento do filme), com uma dívida de cerca de R$ 80 milhões. O proprietário desta empresa, de acordo com a revista Veja,[6] esteve envolvido, no ano 1997, em um caso flagrante de prostituição envolvendo menores. Também foram patrocinadores do filme as empresas Vivo (telecomunicações), Fósferti (indústria de fertilizantes), Teadit (manutenção industrial), Momsem & Leonardos (registros e patentes) e Hotel Marina.

A moral cristã no imaginário social
            Tendo em mente o que entendemos por ficção, não-ficção e imaginário social podemos nos concentrar agora na análise da construção de nossos objetos de estudo.
            Antes de estrear como cineasta, Marcos Prado, trabalhava como fotógrafo publicitário e interessava-se por ensaios a longo prazo de fotojornalismo. O trabalho de fotografia documental[7] no aterro sanitário de Jardim Gramacho, iniciou em 1992 (na época da Eco-92), com o objetivo de entender porquê, no Brasil, não havia coleta seletiva de lixo. Após sete anos fotografando o lixão percebeu que não havia feito retratos das pessoas que por ali passavam seus dias, e explica que a lacuna decorreu das ameaças que sofria de uma parcela menor da população do local, de  criminosos e foragidos, temerosos que o as imagens fossem publicadas. Prado resolveu, então, se aproximar dos idosos, acreditando que estes não lhe ofereceriam riscos caso os fotografasse. Foi nesta circunstância que conheceu Estamira, de 63 anos, e teve a ideia de acompanhá-la e fazer o documentário. Ainda de acordo com o cineasta, Estamira, concordou plenamente com a ideia, declarando para Prado que esperava por esse momento a vida toda.
            Com três filhos[8] (Hernani do primeiro casamento, Carolina do segundo casamento e Maria Rita, de um relacionamento não oficial), e dois netos, Estamira, que apesar de ter uma casa  na região de Campo Grande - RJ (construída com tábuas de madeira, que gostava muito e acreditava ser “abençoado”),  passava a maior parte dos seus dias no aterro recolhendo material que pudesse reaproveitar, além de alimentos que considerava comestíveis.
            Seus filhos não concordavam com a escolha da mãe de viver no aterro. O filho mais velho, Hernane, já havia tentado interná-la contra sua vontade enquanto Carolina, a filha do meio demonstrava mais ponderação: ela percebia que a mãe precisava de cuidados médicos (inclusive a acompanhava em algumas visitas ao CAPS - Centros de Atenção Psicossocial - onde a mãe era medicada periodicamente), mas acreditava ser uma “judiação” interná-la, pois sabia o quanto Estamira presava por sua liberdade. Carolina relata que vivenciou, junto com Estamira a internação da avó materna em um hospício na década de 1970, lembrando o sofrimento da mãe com a situação[9] e justificando, novamente, sua hesitação em relação a internação psiquiátrica. Carolina reconhecia que os problemas mentais de sua mãe começaram com um quadro de paranoia, após diversos traumas que sofreu desde a infância com o avô - por quem foi abusada sexualmente e aliciada para trabalhar em um bordel, por ter visto a mãe sofrer maus tratos pelo pai e, por fim, as infidelidades e agressões de seus ex-maridos.
            Para tentar contextualizar a condição da protagonista em seu ambiente, o documentário é separado em dois núcleos: o grupo dos filhos de Estamira, pertencentes a classe de brasileiros de baixa renda, adequados às instituições sociais como igreja, trabalho e família; e o grupo dos moradores do lixão, representados por Estamira, João e Teobaldo, socialmente inadequados, porém, pessoas cuja integridade ética é quase que inquestionável. Eles não dependem da sociedade para sobreviverem. Agem de acordo com princípios morais cristãos, apesar de não serem vinculados a nenhuma igreja.
            Os três filhos de Estamira são evangelizados e acreditam, principalmente Hernane (o mais "fervoroso") e Maria Rita (a filha mais nova, que fora adotada aos seis anos por outra mulher, a pedido de Hernane, tendo em vista que a menina está sendo criada pela mãe no lixão), que a condição de Estamira se deve também por ter abandonado a fé em Deus, ou melhor, por não ter Deus como a salvação.
            O misticismo está muito presente em todo o filme, inclusive no discurso de Estamira. Porém, esta, diferente dos filhos, apesar de cristã, não expressa dogmas das instituições evangelizadas. Além de não participar de cultos, ela acredita em um Deus mais punitivo do que salvador: um Deus “estuprador”, “assaltante”. No filme, ela questiona esse Deus venerado pelos filhos dizendo:
Que Deus é esse? Que Jesus é esse, que só fala em guerra e não sei o quê?! Não é ele que é o próprio trocadilo? Só pra otário, pra esperto ao contrário, bobado, bestalhado. Quem já teve medo de dizer a verdade, largou de morrer? Largou? Quem ando com Deus dia e noite, noite e dia na boca ainda mais com os deboches, largou de morrer? Quem fez o que ele mandou, o que o da quadrilha dele manda, largou de morrer? Largou de passar fome? Largou de miséria? Ah, não dá!
           
            Por outro lado, o filme mostra uma Estamira consciente política e socialmente: que reconhece a importância do  lixo ali descartado, que reconhece a injustiça com as pessoas que ali moram e sobrevivem como escravo livres, dizendo que  “A princesa Isabel deu a liberdade para os negros, mas não deu emprego”, e que acredita no “comunismo superior”, onde as pessoas tem oportunidades iguais.
            A poeticidade contida na narrativa do filme, tanto por meio do discurso abstrato da protagonista como na linguagem fotográfica explorada pelo diretor, auxilia na construção subjetiva de um personagem sensível que, diante das crueldades da história pessoal e social, renega os paradigmas social.
            No livro O amor impiedoso (2012), Žižek aponta para um herói moderno que, na consciência das consequência de seus atos, hesita em sua atitudes. Assim como Hamlet, que “sobrevive ao reinado ilegítimo de seu tio se fazendo de bobo e proferindo observações ‘loucas’ mas verdadeiras” (Žižek, 2012, p. 18), Estamira é representada como uma mulher que para sobreviver, mesmo que fora das convenções sociais, enlouquece, e assim não participa do jogo sujo do capitalismo e das vicissitudes da sociedade, colocando-a além do bem e do mal.  
            Marcos Prado, percebe seu papel de mediador entre a realidade e o público, admitindo que a narrativa é construída por ele. Em uma entrevista concedida para a revista TPM, Prado fala sobre o processo de construção da mulher  Estamira que foi vista por todo o mundo:
Ela [Estamira] foi a primeira pessoa a ver [o filme] e falou: “Marcos, tem vezes em que eu não me reconheço, mas eu sei que veio de mim, então acredito. Te dei a missão de revelar minha missão. Então não vou falar pra tirar ou colocar nada. Se você acha que é isso, é isso”. Eu entrei numa crise de consciência, achei que tinha de ser mais cuidadoso. E tirei várias coisas. Quando passei o filme em São Paulo dois anos atrás, não havia a parte em que ela briga com o neto. Mas depois pensei: “Não posso santificar a Estamira. Só colocar as coisas mágicas, poéticas. Ela não é só isso”. Então, voltei com os esporros, os filhos, o neto, a exposição toda. (Alves entrevista Prado, 2006)

            Ainda na mesma entrevista, Prado fala sobre sua impressão do olhar de Hernane a respeito de como ele foi apresentado no filme:
O Hernane, filho mais velho, que aparece um pouco como o vilão, me falou: “Eu sou isso aí mesmo, uma pessoa religiosa, crente”. Acho que ele não gostou da posição dele no filme, que é a do cara que não fala mais com a mãe, que acha que ela é possuída pelo demônio. Mas não se opôs. A família fica feliz por eu ajudar a mãe. Eu dou dinheiro todo mês, dei telefone, levei no meu médico. Foi um encontro maravilhoso que tive na vida. (ibidem)

            Enquanto no documentário temos uma protagonista representada a partir de seus dramas pessoais e que, relutante contra as injustiças do sistema, relativa seus julgamentos, não condenando as pessoas como boas ou más, mas apenas cegas e ignorantes[10], e eximindo-se de qualquer participação política e social, em Avenida Brasil podemos destacar uma concentração maior de maniqueísmo em todo o enredo.
            Mesmo que os personagens principais, Nina e Carminha,  tenham sido ambíguas, vacilado, algumas vezes, entre o “bem” e o “mal”, podemos distinguir mais facilmente aquilo o que Motter nos diz a respeito do antagonismo do vilão e do herói. Dentro da doutrina  maniqueísta, o que é material é intrinsecamente mal e o que é espiritual é intrinsicamente bom, e assim funcionava no núcleo do lixão de Avenida. Brasil: aqueles personagens que desejavam a riqueza material ou as possuíam, eram os malvados, como Carminha e Max. Aqueles que não tinham ambição material, como Lucinda, Nina e Jorginho, eram “do bem”. Nina e Jorginho, apesar financeiramente estáveis, eram movidos por uma ambição imaterial. No caso de Nina, a vingança pela morte do pai e no caso de Jorginho, o amor por Nina.
            Assim, podemos observar, então, a principal diferença entre a representação de moradores de aterro sanitário no documentário e na telenovela. Se documentário, os personagens são mostrados como vítimas de problemas psicossociais, e que apesar de dizerem que estão lá por vontade própria (Estamira  e Teobaldo afirmam estar lá por se identificarem com o lugar), fica implícito que passaram por dificuldades que acabaram por marginalizá-los do que entendemos por realidade social aceitável, na novela é claro que os moradores do lixão são excluídos por questões financeiras, exceto Lucinda que permanece no lixão pois, como pensa ter sido responsável pela morte da mãe de Carminha, não se sentia digna de uma vida melhor.
            Aqui podemos identificar um estratagema ideológico cristão, onde mãe Lucinda, como é chamada por seus amigos, paga seus pecados não só com sua miséria, mas também ao passar anos em uma cadeia por um crime que não cometeu, assim como Jesus Cristo pagou por todos os nossos pecados. Por causa da culpa que sentia pela morte da mãe de Carminha, Lucinda confessa o assassinato do seu próprio filho, mesmo sabendo que Carminha o havia cometido. No entanto, no final da narrativa ficamos sabendo que quem matou da mãe de Carminha, foi o seu amante, e mesma assim ela perdoa os mal feitores. Com todo o peso da culpa, diante da infinita bondade de Lucinda, no final da novela, é a vez de Carminha renunciar a possibilidade de viver em sociedade, resignando-se a Lucinda, e representando, como apontado por  Žižek, que "nessa imposição de uma dívida simbólica pelo próprio ato de exoneração, reside o maior truque do cristianismo." (2012, p. 21).
            Podemos identificar, nesta breve análise apoiada por algumas teorias desenvolvidas por Žižek, como a construção desses personagens, tanto na ficção como na não ficção,  passam pela peneira da moral cristã - tão presente entre o grupo dos brasileiros - e replicam um modelo de imaginário social favorável a permanência da classe dominante no poder. 

REFERÊNCIAS

ALVES, Micheline. Uma Mulher de Peito. In: Revista TPM. ed 56. Julho de 2006. Disponível em: <http://revistatpm.uol.com.br/56/estamira/home.htm>. Acesso em: 08 de maio de 2013.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura. Tradução: Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2011.

HOUAISS, Antônio; SALLES, Mauro. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009

MOTTER, Maria Lourdes. "As telenovelas brasileiras: heróis e vilões". In: Revista Latinoamericana de Ciencias de La Comunicación, Buenos Aires, v. 1, n. 1, p. 64-74, 2004.

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[2] As raízes epistemológicas de Žižek passam pela filosofia de Hegel, pelo pensamento social de Marx e pela psicanálise de Lacan.
[3] Disponível em: <http://www.teledramaturgia.com.br/tele/avenidabrasilb.asp>. Acesso: 02/05/2013
[4] Professor e coordenador CEPECIDOC (Centro de Pesquisas de Cinema Documentário da UNICAMP)
[5] Mockumentários: falsos documentários. “O filme apresenta-se como um documentário, sé para revelar-se uma fabricação ou simulação de um documentário” (NICHOLS, 2012, p. 50)
[6] Matéria do dia 01/10/1997. A vez das pequenas, escrita por Angélica Santa Cruz e Bruno Paes Manso.
[7] Outros dois ensaios fotográficos de Marcos Prado, prévios ao Jardim Gramacho, são Os Carvoeiros e Free Tibet. Ambos reconhecidos em premiações institucionais.  Disponível em: <http://7f4histfoto.wetpaint.com/page/Marcos+Prado+de+Oliveira>. Acesso em: 27 de abril, 2013
[8] Teve também um outro filho, com o pai de Carolina, que nasceu morto e que ela se sente guiada por ele.
[9] O relato de Carolina é ilustrado com imagens de arquivo que denunciam o descaso com os pacientes do hospital psiquiátrico Pedro II, no bairro Engenho de Dentro, Rio de Janeiro, onde a mãe de Estamira ficou.
[10] No entanto, Estamira acusa pessoas que tiram vantagem das situações: “não existe inocente, existe esperto ao contrário”