terça-feira, 21 de abril de 2020

FOBIA: ANGÚSTIA, ANSIEDADE E PÂNICO. A FUNÇÃO DA NOMEAÇÃO

Texto publicado no livro
SEDAÇÃO e  MONITORAÇÃO EM ODONTOLOGIA - Bases científicas para a prática clínica
organizado por
 Rafael Celestino Colombo de Souza e
Fernanda Urbini Romagnolo


Muitos são os afetos que tomam a sensibilidade do paciente que chega ao consultório do dentista. Se, por um lado, há pessoas que não se incomodam em marcar um horário para tratar uma dor de dente, outras sentem um verdadeiro pavor ao cogitarem a necessidade de uma simples profilaxia, levando-as a postergar a consulta até o último segundo.

Se beneficiará com a tranquilidade transmitida ao paciente, o profissional que souber nomear e discriminar estes afetos (ansiedade, pânico, angústia) a fim de prosseguir com o tratamento. Digo “profissional” pois as orientações a seguir serão úteis não apenas ao dentista, mas para qualquer profissional que possa entrar em contato com medos mais ou menos frequentes de um de seus clientes, pacientes, familiares ou amigos.

É muito comum, por exemplo, crianças com medo de cortar o cabelo. Cabe ao cabeleireiro, junto aos responsáveis, acalmar os pequenos. Muitas vezes não basta a cadeira em forma de carrinho ou todo um salão de beleza que mais parece um buffet infantil; é necessário nomear para as crianças o que está acontecendo; dar um contorno para o acontecimento e mostrar, com firmeza, que o adulto sabe o que está fazendo. Podemos citar diversas situações como esta: o medo de agulha (aicmofobia), o medo de viajar de avião (aerofobia) e até o medo de aprender outro idioma (xenoglossofobia). Enfim, há sempre um perigo a espreita dos desavisados.

Com isso, problematizamos: como médicos, enfermeiros, professores, pilotos e comissários de bordo podem trabalhar diante destes obstáculos? São circunstâncias cotidianas em que pessoas ficam inibidas e até mesmo paralisadas diante da insegurança e nervosismo causados por essas situações.  

Dado o problema do qual este texto trata, ou seja, a atuação do dentista frente ao medo de seu paciente, entenderemos, a partir da psicanálise, o que é uma fobia e a diferença entre angústia, ansiedade e pânico. Acreditamos que estes esclarecimentos poderão instrumentalizar o dentista no momento de decidir quanto a necessidade ou não do uso de anestésicos, quanto a possibilidade de um encaminhamento psicológico e, certamente, quanto a nomeação das emoções atuadas desde a hora de agendar até o atendimento.

O medo é uma virtude que nos protege, fazendo-nos evitar se aproximar demais de um abismo. Porém, quando este medo é extremo ele nos obriga, por exemplo a perder uma apresentação de uma banda que gostamos muito devido a quantidade de pessoas presentes no mesmo ambiente (agorafobia).

Este tipo de temor excessivo nos foi apresentado por Freud em um texto de 1910, chamado Análise da fobia de um menino de 5 anos. Nele Freud relata o caso de Hans, um menino que, após o nascimento da irmãzinha, passa a não querer mais sair de casa porque na rua tem cavalos - animal que não representava nenhum problema a ele até que, segundo Hans, um cocheiro da família o advertiu que não colocasse a mão perto da boca do cavalo, pois este poderia morde-lo. Freud entendeu que Hans fez um deslocamento psíquico: o cavalo simbolizava o pai e a mordia simbolizava o complexo de castração.

Resumidamente, a história se deu assim: quando Hans tinha três anos, sua mãe, ao vê-lo tocando em seu pênis o reprendeu dizendo que se fizesse aquilo novamente chamaria o médico para corta-lo fora. Instalou-se aí o medo de perder o pênis, marca conhecida na psicanálise como complexo de castração. 

Mais tarde, ao ver que a irmãzinha não tinha o “pipi” – como ele se referia ao pênis – Hans percebeu que o seu medo poderia se concretizar. Tal conclusão foi produto de uma investigação bastante intensa sobre a sexualidade, a qual crianças entre as idades de 3 e 5 anos atravessam, passando por indagações como “Será que todo mundo tem um ‘pipi’?”, “Se minha irmã não tem, será que eu posso perder o meu”, “Será que minha mãe tem?”, “Como será que o meu pai conseguiu o dele?”. 

O desejo e a culpa, o amor e o ódio têm papel fundamental nesta construção fantasiosa que dá enredo às relações familiares e fazem com que as crianças associem as figuras parentais a outros representantes, a fim de dar vasão aos seus afetos proibidos: a criança sente-se ameaçada pelo pai quando disputa com ele, em sua imaginação, o amor da mãe.  Nesta disputa o pai é objeto de admiração e raiva, pois ao mesmo tempo que se identifica com ele para conquistar a mãe, quer eliminá-lo e percebe-se impotente perante tamanho confronto. A criança depare-se com uma falta em si própria. A mãe é objeto de amor e culpa, pois quer tê-la só para si, mas sabe que para isso teria que eliminar o pai. Frente a complexidade destas operações, onde a perda é eminente, se não há outras representações possíveis, (como no caso do pequeno Hans, expiar o temor do pai no cavalo) ou se não há um espaço para negociar a realização de sua satisfação (preferencialmente por vias indiretas, como por exemplo pelo dito do pai: “a mamãe é minha, mas eu permito que ela lhe conte uma história antes de dormir”) a criança sente-se abandonada. Por isso, para lidar com a ambivalência dos afetos (o desejo e a culpa, o amor e o ódio) podemos dizer que é preciso sempre ganhar/perder.

Jacques André diz, em seu Vocabulário Básico da Psicanálise (2015) que, “Antes de ser uma ‘doença’, a fobia é uma solução, ela permite deslocar o conflito, localizar a angústia, dar-lhe uma ‘razão’” (p. 72) Está aqui uma ótima dica ao dentista: para tratar a cárie de um paciente com medo é necessário localizar a angústia, dar-lhe uma razão. E a única maneira de fazer isso é conversando, pois qualquer manifestação de afeto humano passa pela linguagem. Não é por acaso que a medicina integrativa - que consiste na construção de uma relação entre paciente e profissional da saúde - tem ganhado tanto destaque.

Sobre a fobia, resta dizer aqui que se trata de um tipo de estrutura neurótica, assim como a neurose histérica e a neurose obsessiva: um sintoma atuante através de deslocamentos de conteúdos latentes para defender o sujeito de seus desejos recalcados. Desta dinâmica psíquica - a operação de associação e deslocamento de conteúdos - pode sobrar um excesso não elaborado revelando uma falha no mecanismo de defesa, justamente onde identificamos as psicopatologias como, por exemplo, a angústia.

Vamos então a distinção entre angústia, ansiedade e pânico aqui proposta:

A angústia é um termo extensamente discutido não apenas na psicanálise como também na filosofia. Tão inquietante para a existência humana, este afeto, inclusive, adquiriu status de conceito[1]. Porém, aqui pretendemos nos ater ao domínio da psicanálise e, mais precisamente, às proposições feitas por Freud e Lacan para, então, pensarmos na aplicação prática deste conhecimento ao dentista.

Para Freud a angústia está ligada intimamente a castração, ou seja, a perda de um objeto importante, e cuja definição foi proposta em seu texto Inibição, Sintoma e Angústia, de 1926, e popularizada na formulação “a angústia é sempre angústia de castração”. Um afeto a deriva, sem poder ligar-se ao seu objeto que fora perdido. “A angústia tem inegável relação com a expectativa: é angústia por algo. Tem uma qualidade deindefinição e falta de objeto.” (FREUD, [1926] 2006, p. 160)

Já nos anos 1960, o psicanalista francês pós-freudiano, Jacques Lacan, reformula a ideia de angústia, compreendendo que ela não está, em seu fim, ligada a perda de um objeto, à finitude de si próprio, como vimos acima. Lacan diz que “a angústia não é sem objeto”, mas relativa ao enigma do amparo parental; uma resposta a sentimentos que podemos representar por sentenças como, “Se aquele que me ampara me quer é porque ele precisa de algo de mim, logo, nele também falta. O que quer ele de mim?”. A angústia está ligada ao enigma do desejo do outro relativo a si.

Muito difícil de ser sustentada na clínica psicanalítica, a angústia é, porém, é o motor para nosso paciente rumar ao seu desejo, possibilitando construções simbólicas de ordem própria e radicalmente livre para, então, serem sublimadas da maneira possível.

Na psicanálise angústia e ansiedade tem a mesma definição. Freud nunca distinguiu essas duas palavras, tendo usado a palavra angst - traduzido para anxiety, em inglês e ansiedade em português. Porém, no assentimento popular, em português, diferente da angústia, a ansiedade pode também estar relacionada a um por vir agradável. Pensemos em uma criança que não consegue dormir na véspera de um passeio muito especial, ou um pai que reencontrará sua família após um longo período separado. Boa ou ruim, a ansiedade é entendida como uma impossibilidade de estar presente no momento atual; uma antecipação que, em seu limite, inviabiliza tarefas simples como ler, lavar a louça, conversar, trabalhar, etc. A inquietude no agora.

A ansiedade é a palavra preferida pela medicina para se referir a esta inquietude que Freud chamou de angst. O texto, Angústia: conceito e fenômeno (Vera Pollo e Sandra Chiabi, 2013) nos apresenta uma breve historiografia da transição do conceito de angústia para noção de ansiedade na linguagem técnica do American Psychiatric Association, no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM). Pollo e Chiabi defendem que desde a primeira edição do DSM (1954) até a presente edição, o DSM-5 (2013), a categorização dos transtornos mentais vem sendo ampliada e organizada a fim de confluir com os interesses da indústria farmacêutica em produzir novos e lucráveis medicamentos, se distanciando das contribuições do campo da psicanálise evidenciadas, principalmente, nas duas primeiras edições (DSM-1 e DSM-2) e se aproximando de uma visão organicista da psiquiatria. Assim, o que era classificado como neurose de angústia no DSM-1 e DSM-2 foi apagado e substituído por transtorno de pânico no DSM-3 (1974) e, no DSM-4 (1994), foi criada a seção sobre transtornos de ansiedade, passand o pânico para uma de suas subcategorias[2].

Fugindo das descrições fenomenológicas e psiquiátricas da compreensão de um ataque de pânico e afim de nos ater a escuta de nossos pacientes, proponho contar aqui a origem da palavra. Pânico vem de Pã, deus da mitologia grega, protetor dos bosques, campos, rebanhos e pastores. Morador de grutas entre as montanhas e representado por uma figura horrenda, meio homem meio bode, Pã se divertia assustando aqueles que atravessavam as florestas, causando medo nas pessoas. Pânico.

Outra história conta que Pã, apaixonado pela ninfa Eco, que por sua vez era apaixonada por Narciso, que por sua vez era apaixonado por ele mesmo, deixou a floresta em verdadeiro caos ao entrar em desespero por ver sua amada Eco se jogar de um precipício ao saber da morte de Narciso.

Pânico é esta desorganização do corpo desencadeado por uma dor psíquica manifesta ou latente. Algumas pessoas têm uma crise de pânico ao entrar em contato com alguma situação específica, outras podem desencadear esta crise sem nenhum motivo aparente, mas possível de ser resgatado em análise, em uma conversa franca, direcionada por um terapeuta. 

Este trabalho psicoterapêutico, inaugurado em situações diversas, tem o objetivo nomear sentimentos e sensações, organizando a história de vida do paciente, implicando ele em seu sofrimento - ou seja, “o que disto que você sofre é responsabilidade sua e possível de mudar diante da sua vontade?” - e encontrando junto a ele possibilidades de ressignificação, dando outros destinos a suas angústias.

Relatarei aqui o caso de uma analisante que quando começou a fazer terapia evitava ao máximo viagens de avião e ir ao dentista. Apesar de gostar muito de conhecer países novos, preferia a ir a lugares acessíveis por vias terrestre. As viagens de avião causavam-lhe verdadeiro pânico. Em uma ocasião, durante um período mais crítico deste medo, ela foi convencida a ir para Fortaleza e carro não era uma opção para os seus companheiros de viagem. Este evento - desde que comprou a passagem - tomou não apenas o pensamento como todas as sessões de análise, com a possibilidade de o avião sofrer algum acidente ou atentado onde ela morreria. A ansiedade aumentava na medida em que a data se aproximava, até que durante o vôo, após a decolagem, ela atuou um ataque de pânico, acusando seus companheiros de viagem de coloca-la naquela situação e pedindo para que os comissários de bordo descrevessem todos os barulhos que o avião fazia. 

O desconforto com o dentista nunca chegou ao extremo de uma cena constrangedora como a do avião, porém antes de uma consulta ficava ressabiada com a dor e nenhuma anestesia era suficiente para ela se aquietar na cadeira. O barulho e a sensação das brocas tocando o dente a deixavam agitada, tornando o trabalho do dentista mais difícil. 

Na medida em que sua análise avançava e ela falava mais sobre o medo do avião, descobrimos que este estava relacionado a uma culpa recalcada em relação ao pai. Quando era criança seus pais se divorciaram e sua mãe se casou com um homem do Rio de Janeiro, o que resultava em muitas viagens na ponte aérea. O seu pai, sem muita sensibilidade, dizia à ela que apesar de o avião ser o maio de transporte mais seguro, se houvesse um acidente as chances de sobreviver eram nula. Mais tarde, ela associou essas viagens a uma traição: estava traindo o seu pai com o padrasto e logo merecia ser punida. Em sua fatasia, a profecia de seu pai iria se cumprir. 

Ganhando consciência desta formação sintomática, o medo foi controlado e, aos poucos, ela pode viajar com mais tranquilidade. Descobriu, também, que o medo com as viagens eram muito maiores quando o piloto não se pronunciava no início do voo. Escuta-lo descrevendo o tempo da viagem, as condições climáticas e atmosféricas, além de ter uma ideia do humor do piloto pela voz, a tranquiliza.

Em uma sessão ela me contou que havia conhecido um dentista que finalmente a atendia de maneira acolhedora. Ao deitar-se na cadeira, ele percebeu sua inquietação e começou a narrar todas as suas ações: o que estava pensando em fazer, como fazer, o instrumento manipulado, o lugar da boca que iria encostar, a sensação que ela teria, o tempo que o tratamento duraria, etc. Tudo claramente, na medida em trabalhava. Não sabemos, pela análise, quais as associações que levaram essa paciente a precisar de tanto acolhimento para ir ao dentista, - assim como descobrimos sobre a origem do medo de avião - mas ficou claro como, para ela, a função da nomeação feita durante a intervenção que lhe causa insegurança. 

Conversar com o paciente, simpatizar com o seu sofrimento, tratar do medo com a devida importância e não como uma bobagem, pode ser o manejo mais simples e eficiente, além resultar em menos risco de efeito colateral do que uma anestesia.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

ANDRÉ, J. Vocabulário Básico da Psicanálise. Trad. Marcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: editoranWMF Martins Fontes, 2015.
FREUD, S. (1909). Análise de uma Fobia em um Menino de Cinco Anos. Rio de Janeiro:Imago,1990 (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud,v. X). 
FREUD, S.(1926). Inibições, sintomas e angústia. Rio de Janeiro:Imago,1980 (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud,v. XX). 
LACAN, J. (1962-63). O Seminário, Livro 10: A AngústiaRio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. 
POLLO, V. e CHIABI, S. “Angústia: conceito e fenômeno”. Revista de Psicologia. v. 4 – n. 1, p. 137-154. Fortaleza, 2013.
Referência rápida aos critérios diagnósticos do DSM-5. Trad. Maria Inês Correa Nascimento ... et al. Revisão técnica: Aristides Volpato Cordioli ... [et. Al.] – Porto Alegre: Artmed, 2014



[1] Nos referimos ao livro O Conceito de Angústia (1844), de Søren Kierkegaard.

[2] O DSM-5 apresenta a categoria de Transtorno de Ansiedade classificando-a entre os seguintes transtornos: os seguintes Transtorno de Ansiedade de Separação (F93), Mutismo Seletivo (F94), Fobias específica (F40), Transtorno de Ansiedade Social (F40.10), Transtorno de Pânico (F41), Agorafobia (F40.00), Transtorno de Ansiedade Generalizada (F41.1), Transtorno de Ansiedade Induzido por Substância/Medicamento (F10), Transtorno de Ansiedade Devido a Outra Condição Médica (F06.4), Outro Transtorno de Ansiedade Especificado (F41.8) e Transtorno de Ansiedade não Especificado (F41.9)