quinta-feira, 27 de novembro de 2014

FEMINILIDADE: SdB & FREUD


FEMINILIDADE: SdB & FREUD.

Vivian Vigar - Centro de Estudos Psicanalíticos

INTRODUÇÃO          
A discussão em torno do desenvolvimento da sexualidade feminina é, talvez, a mais polêmica de toda a teoria psicanalítica, principalmente, freudiana. Para mim, até aqui, o é. Assim, das feministas que acusam Freud de misógino, passando pelo anti-humanismo de Foucault, depois pelo existencialismo de Simone de Beauvoir, seguido pelo gozo feminino de Lacan e, mais recentemente, o gênero como performance indicado por Judith Butler, traço aqui uma tentativa de posicionar-me perante a discussão.

No livro O Segundo Sexo (1949), Simone de Beauvoir (SdB) parafraseia seu amigo: " A mulher não ultrapassa nunca o pretexto" e, em seguida, afirma que a mulher investiga como nenhum homem: na observação, a mulher brilha; descreve a natureza, a singularidade humana com "adjetivos saborosos" e "imagens carnais"; assim, ela "revela sua experiência e seu sonho". Porém elas "não contestam a condição humana porque mal começam a poder assumi-la integralmente". (p. 912).

Penso que o feminismo possa padecer na mesma imanência feminina, apontada por SdB: o feminisno ainda não transcendeu seu pretexto. Segue, ao menos na generalidade (assim como as mulheres exemplificadas por SdB), observando e adjetivando os seres humanos: machistas, ousadas, sexistas, emancipadas etc. Assim, instigada pela leitura de O Segundo Sexo, é utilizando a feminista como contraponto que tecerei o presente trabalho sobre a feminilidade para Freud.

Também, minha tentativa de posicionar-me através deste ensaio é um pretexto: um estudo pretende um pensamento, um fim, mas não o é. É um estudo. O que o pretexto pode, de fato, é ser um caminho; às vezes sem volta ou sem fim, mas sempre implicado em um objetivo. No caso do feminismo, o caminho pode não ter um retorno (assim espero) ou um fim, porém é certo que, assim como a mulher, ele tem um objetivo, o qual você pode imaginar: a liberdade. Já o objetivo deste trabalho é, como já dito,  posicionar-me, organizando algumas ideias em relação ao feminino.

Um posicionamento exige um repertório. Para se construir um repertório precisamos de tempo. Tempo este que usamos de acordo com nossas "escolhas" subjetivas, nossos desejos e possibilidades. Portanto o recorte que faço aqui é uma arbitrariedade dentro de minha subjetividade. O que quero, dizendo isso, é assegurar-lhes que sei da existência da imensa variedade registrada sobre esse assunto: um esclarecimento em tom confessional que, acima de tudo, pede sua complacência.    

DO TEXTO "FEMINILIDADE", DE FREUD
Começo expondo a teoria freudiana a respeito do desenvolvimento sexual feminino. Tardiamente, em sua vida, Freud escreve "Feminilidade", para as Novas conferências introdutórias à psicanálise  (1933). Nele, antes de dar suas premissas para a investigação do desenvolvimento sexual feminino, são apresentadas algumas dificuldades para desvendar tal "enigma".  Primeiramente ele descreve a ambivalência e inadequação, em termos anatômicos, das qualidades "passivas" e "ativas" para o "feminino" e o "masculino"; depois aponta que "a supressão da agressividade, prescrita condicionalmente e imposta socialmente à mulher, favorece o desenvolvimento de fortes impulsos masoquistas (FREUD, [1933] 2010, p. 268); e, em seguida discute a possibilidade da parcialidade do analista homem no desenvolver de teorias da feminilidade (ibidem, p. 269). Tem, então, o início da investigação colocando duas expectativas a priori. São elas: 1) "a constituição não se ajustará à função sem alguma relutância"; 2) "as mudanças decisivas terão sido encaminhadas ou realizadas antes da puberdade". (ibidem, p. 269). A base de sua teoria é calcada em dois fatores: Diferente do menino, "a menina deve trocar de zona erógena e de objeto" (ibidem, p. 272). Ou seja, sobre a zona erógena,
"com a mudança rumo a feminilidade, o clitóris deve ceder à vagina sua sensibilidade [...] o homem, tendo mais sorte, na maturidade sexual precisa apenas dar continuidade ao que já praticou no período da primeira florescência sexual" (ibidem, p. 271)

Quanto ao objeto, tanto o menino como a menina, na fase pré-edípica, têm a figura da mãe como foco de investimento amoroso. Porém, enquanto o menino assim permanecerá por toda a sua vida, a menina está destinada a reverter este investimento objetal amoroso ao pai.

Segue-se, então, a explicação do complexo de castração, da inveja do pênis, do complexo de édipo masculino e o feminino, e como a mulher é prejudicada, em comparação ao homem, durante a determinação de sua sexualidade. Até, então, pouco temos a nos opor, pois apesar da falha em dar a devida importância a posição cultural da mulher, seu projeto, em termos psíquicos, é coeso, e como diz Simone de Beauvoir, "não é um empreendimento fácil discutir a psicanálise" (BEAUVOIR, [1949] 2009, p. 71). Porém, no penúltimo parágrafo do texto de Freud somos surpreendidos com opiniões que hoje nos soam até absurdas, tornando fácil entender porque tantas feministas repudiam o pai da psicanálise. Assim, nos é revelada sua duvidosa crença ("temos que admitir", ele diz) "que pouco senso de justiça nas mulheres provavelmente se liga à preponderância da inveja na sua vida psíquica", referindo-se à sua tese da inveja do pênis. E, como se não bastasse, ele segue, no mesmo parágrafo, afirmando "que os interesses sociais das mulheres são mais fracos e sua capacidade de sublimação é menor que nos homens." (FREUD, [1933] 2010, p. 292).

SdB E A PSICANÁLISE
Uma das mais célebres críticas da inveja do pênis é de Simone de Beauvoir. Em seu livro O Segundo Sexo, onde investiga o que é uma mulher, ela apoia-se no existencialismo, demonstrando a insuficiência, não apenas da psicanálise, mas também da biologia e do materialismo para dar sentido ao seu objeto, a mulher: Em que, o fato de ser mulher, afeta a vida da mulher? Que possibilidades foram oferecidas ou recusadas às mulheres? Que destino devem esperar as irmãs mais novas e como orientá-las? (BEAUVOIR, [1949] 2009, p. 29)
A perspectiva que adotamos é a da moral existencialista. Todo sujeito coloca-se concretamente através de projetos como uma transcendência; só alcança a liberdade pela sua constante superação em vista de outras liberdades; não há outra justificação da existência presente senão sua expansão para um futuro indefinidamente aberto. Cada vez que a transcendência cai na imanência, há degradação da existência em "em si", da liberdade em facticidade; essa queda é uma falha moral, se consentida pelo sujeito. Se lhe é infligida, assume o aspecto de frustração ou opressão. Em ambos os casos, é um mal absoluto. Todo indivíduo que se preocupa em justificar sua existência, sente-a como uma necessidade indefinida de se transcender. Ora, o que define de maneira singular a situação da mulher é que, sendo, como todo ser humano, uma liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se num mundo em que os homens lhe impõem a condição do Outro. Pretende-se torná-la objeto, votá-la à imanência, porquanto sua transcendência será perpetuamente transcendida por outra consciência essencial e soberana. O drama da mulher é esse conflito entre a reivindicação fundamental de todo sujeito que se põe sempre como o essencial e as exigências de uma situação que a constitui como inessencial. (ibidem, p. 30-31)

Assim, dada a abrangência filosófica de seu empreendimento, escolhi dois capítulos do livro, escrito em dois volumes, onde a autora dialoga diretamente com a psicanálise. São eles, "O ponto de vista psicanalítico" (Volume 1: Fatos e Mitos) e "A narcisista" (Volume 2: Da experiência vivida).

No primeiro texto supracitado, SdB examina as contribuições da psicanálise ao estudo da mulher, entendendo o "imenso progresso" da ciência de Freud
ao "considerar que nenhum fator intervém na vida psíquica sem ter revestido um sentimento humano". Traduzindo esta afirmação em termos existencialistas, ela continua, "não é o corpo-objeto descrito pelos cientistas que existe concretamente e sim o corpo vivido pelo sujeito" (ibidem, p. 71). Assim, dada esta introdução podemos passar entender a crítica do existencialismo beauvoiriano em relação a teoria da sexualidade freudiana.

A leitura feita por SdB entende que Freud estuda a mulher não em sua origem, "em si mesma", mas a partir do homem, sendo ele absoluto e ela a incompletude de uma fuga inautêntica, resultado da inversão a ela destinada pela "mutilação" e, consequentemente, inveja do pênis. Para ele, a libido feminina é um "desvio complexo da libido humana em geral" (ibidem, p. 73)[1].

Referindo-se ao complexo de Elektra (termo sabidamente rejeitado por Freud), ao complexo de Édipo e ao complexo de castração, SdB assinala uma rigidez descabida. Para ela, enquanto a psicanálise "supõe que a mulher se sente um homem mutilado", (..) "muitas meninas só tardiamente descobrem a constituição masculina", e ainda, quando descobrem - a feminista continua com uma pequena dose de ironia -, "esse frágil caule de carne só pode inspirar indiferença e até repugnância". Ou seja, a inveja do pênis não deve, invariavelmente, originar da "simples confrontação anatômica", mas de "uma valorização prévia da virilidade" (ibidem, p. 74-75). A crítica vale para os meninos também: "a presença de um complexo de Édipo de ordem propriamente genital está longe de ser geral" (ibidem, p. 75)

Assim como Jung (porém, obviamente, em um caminho diferente), SdB entende que nem tudo é sexo. Na ontologia do ser, nos encontramos, nos definimos no confronto com valores dados às significações criadas pelos sujeitos, "pela realidade humana que é mitsein[2] ao mesmo tempo que separação" (ibidem, p. 80). Vemos aqui, uma tendência de SdB para uma psicanálise nos moldes mais lacanianos[3], atribuindo a um Outro a constituição do sujeito, refletindo sobre o paradoxo mitsein/separação:
Essa perspectiva permite-nos, por exemplo, compreender o valor geralmente dado ao pênis. É impossível explicá-lo sem partir de um fato existencial: a tendência do sujeito para a alienação. A angústia de sua liberdade conduz o sujeito a procurar-se nas coisas, o que é uma maneira de fugir de si mesmo; é uma tendência tão fundamental que logo após a desmama, quando se acha separado do Todo, a criança esforça-se por apreender nos espelhos, no olhar dos pais, sua existência alienada. Os primitivos alienam-se no mana, no totem; os civilizados em sua alma individual, em seu eu, em seu nome, em sua propriedade, em sua obra: é a primeira tentação da inautenticidade. (ibidem, p. 80-81)

Lembremos que é no mesmo ano da publicação de O Segundo Sexo que Lacan comunica, pela segunda vez a concepção do estádio do espelho, no XVI Congresso Internacional de Psicanálise. É sabido, também, através da biografia de Lacan[4], que a filósofa recorreu ao psicanalista antes de publicar O Segundo Sexo, porém a parceria não rendeu frutos. Assim, SdB cita, Lacan e seu texto, "Complexos familiares na formação do indivíduo", apenas em uma nota de roda pé sobre a constituição de identidade.

Voltando-nos a crítica da teoria da sexualidade, SdB  afirma que a fraqueza da psicanálise reside não apenas na recusa da noção de valor - dado do mundo das significações do mitsein -, mas também a noção de escolha, interditada pela contingência psíquica, resultado do que conhecemos como banquete totêmico. Aqui, ao meu ver, SdB desliza na compreensão da teoria psicanalítica, subtraindo a importância da proibição do incesto para nosso arcabouço psicológico. Ela diz:
Tendo desligado impulsos e proibições da escolha existencial, Freud malogra em  explicar-lhes a origem: toma-os por todos. Tenta substituir a noção de valor pela de autoridade; mas, em Moisés e seu Povo, ele convém em que não há meio de explicar essa autoridade. O incesto, por exemplo, é proibido porque o pai o proibiu: mas por que essa proibição? Mistério. O superego interioriza ordens e proibições emanando de uma tirania arbitrária; as tendências instintivas existem não se sabe por quê; as duas realidades são heterogêneas porque se considerou a moral alheia à sexualidade; a unidade humana apresenta-se quebrada, não há passagem do indivíduo à sociedade; Freud é obrigado a inventar estranhos romances para reuni-los (ibidem, p. 78)

Sabemos, no entanto, que Freud, no texto Totem e Tabu, apoia-se no darwinismo, para remontar a proibição do incesto a partir do "assassinato" do pai primitivo por seus filhos, e são estes (os filhos, irmãos) que, ao perceberam a necessidade de estarem juntos para dar continuidade a horda, instituem a proibição do incesto. Ainda assim, Freud aponta para a dificuldade em adotar mitos tão distantes no intuito de dar sentido à sobrevivência infantil. Portanto, aqui julgamos  injusta ou ingênua a leitura de SdB.

Evoluindo do banquete totêmico ao narcisismo (onde a filósofa sai-se melhor), pudemos constatar, um ponto de congruência entre nossos dois pensadores: ela reconhece o maior risco da mulher em não "atingir o termo de sua evolução sexual, a permanecer no estágio infantil e, consequentemente, a desenvolver neuroses" (ibidem, p. 73), devido a necessidade de troca de zona erógena, do clitóris para a vagina. Porém, como já vimos, há muito para ser investigado além da anatomia, e esta tese será demonstrada no segundo texto aqui estudado, "A narcisista", onde SdB faz uma seleção de artistas, focando em traços característicos das mulheres neuróticas, infantilizadas, buscando entender suas "experiências vividas", como sugere o título de seu volume 2.

Narcisismo é um termo, hoje, bastante utilizado no cotidiano e tem ganhado cada vez mais espaço para tentar explicar as patologias sociais do século 21[5]. No uso comum, narcisista é aquele que pensa mais em si e coloca-se sempre a frente de todos; seja em relações de classe, amorosas, trabalho ou até família: os interesses do narcisista são sempre preponderantes. Na sociologia, que entende a sociedade contemporânea hedonisticamente doente e fomentada pelo capitalismo, verifica-se a subjetivação do indivíduo através de um desvio narcisista, este ratificado no comportamento generalizado nas mídias sociais que, por sua vez, como uma ferramenta propagadora, contribui com a ideia. A auto promoção do sujeito nas redes sociais (como, por exemplo, os selfies) apontam para uma formação narcísica que implica o ter e não o ser.

O termo narcisismo ganhou conotação psicanalítica através de Freud, em 1910, para entender os homossexuais ("invertidos"), pois estes tomam a si mesmos como objetos sexuais. Logo em seguida, Freud passa a considerar o narcisismo como uma fase do desenvolvimento sexual "normal", marcada pela passagem do auto-erotismo para o amor de objeto. Porém em um segundo momento, o narcisismo passa a ter também o caráter de regressão, quando há um desequilíbrio na distribuição de libido entre os objetos de amor e a si mesmo ou, na terminologia de Freud, ao Eu ideal.
O narcisismo parece deslocado para esse novo Eu ideal, que como o infantil se acha de posse de toda preciso perfeição. Aqui, como sempre no âmbito da libido, o indivíduo se revelou incapaz de renunciar à satisfação que uma vez foi desfrutada. Ele não quer se privar da perfeição narcísica de sua infância, e se não pôde mantê-la, perturbado por admoestações durante seu desenvolvimento e tendo seu juízo despertado, procura readquiri-la na forma nova do ideal do Eu. O que ele projeta diante de si como seu ideal é o substituto para o narcisismo perdido da infância, na qual ele era seu próprio ideal (FREUD, [1914] 2010,p. 40)

Já SdB apropria-se do termo para introduzir o texto "A narcisista", um capítulo um pouco mais amigável com a teoria psicanalítica. Ela diz:
Na realidade, o narcisismo é um processo de alienação bem definido: o eu é posto como uma fim absoluto e o sujeito nele foge em si. [...] A verdade é que as circunstâncias convidam a mulher , mais do que o homem, a voltar-se para si mesma e a dedicar-se a seu amor. (BEAUVOIR, [1949] 2009, p. 817)

É fato que 60 anos se passaram desde a publicação do "tratado feminista", de SdB, e hoje, estamos, homens e mulheres, caminhando em direção a igualdade sexual. Porém me parece que ao mesmo tempo que a mulher dá alguns passos, no ritmo dois para frente e um para trás, o homem reposiciona-se lentamente, porém, na direção oposta. Arrisco tal afirmação levando em conta o diagnóstico popular do narcisismo ser uma patologia do nosso século, e de minha interpretação de que os tipos narcísicos -apresentados por SdB, defendendo a dificuldade da mulher transcender como ser humano - mostram-se também nos homens de hoje.
A mulher é levada ao narcisismo por dois caminhos convergentes. Como sujeito, ela se sente frustrada; em menina viu- se privada desse alter ego que o pênis é para o menino; mais tarde sua sexualidade agressiva permaneceu insatisfeita. E, o que é muito mais importante, as atividades viris lhe são proibidas. Ela se ocupa, mas não faz nada; através de suas funções de mãe, esposa, dona de casa, não é reconhecida em sua singularidade. A verdade do homem está nas casas que constrói, nas florestas que arroteia, nas doenças que cura: não podendo realizar- se através de projetos e objetivos, a mulher se esforçará por se apreender na imanência de sua pessoa. (ibidem, p. 817)

Antes de continuar, insisto, novamente, que 60 anos se passaram desde que essas palavras foram registradas, e acredito que alcançamos certa "evolução", porém também insisto na existência de um longo caminho até inteirarmos um novo paradigma, repensado até mesmo dentro do universo masculino.

Continuando... SdB parte então para definir alguns tipos narcisistas encontrados em suas "irmãs" a partir de uma seleção de artistas que deixaram suas impressões sobre a experiência vivida da mulher. Dentre elas destacamos Marie Bashkirtseff, Anna de Noailles, Dorothy Parker, Isadora Duncan, Mabel Dodge e Anne Louise Germaine de Staël. A vida e obra dessas mulheres ilustram, para SdB, por vezes a imanência do gênero feminino no âmbito social, econômico e psicológico e, outras vezes, contradizendo a grande falácia de Freud citada no início deste trabalho, a possibilidade da transcendência feminina através da sublimação. Citemos algumas condições femininas que, como já dito, acreditamos abranger também nossos parceiros machos contemporâneos para, enfim, fecharmos, pelo momento, nossa exposição. Por uma questão didática, organizaremos em tópicos algumas "práticas" narcisistas identificadas nas mulheres por SdB:
·      No para si "em si": a mulher que se vê autosuficiente. Deseja-se. "Vou me amar", "Vou me possuir", "Vou me fecundar".
·      Na boneca: Como o para si "em si" pode ser somente sonhado, a menina materializa suas mais fantasias de si mesma em suas bonecas. Identifica-se com ela nas brincadeiras e cuida delas como se fossem personificações de suas fantasias.
·      No espelho: "É principalmente no caso da mulher que o reflexo se deixa assimilar ao eu. A beleza masculina é indicação da transcendência, a da mulher tem a passividade da imanência: só a segunda é feita para deter o olhar e pode portanto ser pegada na armadilha imóvel do espelho; o homem que se sente e se quer atividade, subjetividade, não se reconhece em sua imagem parada." (ibidem, p. 819).
·      No interior, imaginário: Seria uma espécie de entidade interior, imaginária, a qual a mulher recorre, em pensamento, para dialogar sobre suas fantasias.
·      Na infância: a nostalgia da infância, típica na mulher. Nostalgia de "um futuro livre que se abria", em contrapartida de seu presente decadente, "fadada à imanência e a repetição" (ibidem, p. 822)
·      Na excentricidade: "Buscam convencer-se de que seus gestos, suas ideias, seus sentimentos conservam um insólito frescor" (ibidem, p. 822). Característica que nos parece simetricamente inversa ao que Freud entende por carácter de "exceção". Enquanto a exceção seria uma "desvantagem congênita"[6], a excentricidade seria uma característica única e original que a torna especial.
·      Na personagem: Uma personagem que faz a mulher sentir-se parte de um romance. Identificam-se, frequentemente, com heroínas trágicas ou cômicas das artes, e murmuram: "Minha vida é uma novela" (ibidem, p. 823).
·      No mistério: Como não lhes é conferido ou reconhecido um destino concreto e objetivo, sua verdade é impalpável, impossível de exprimir-se na ação cotidiana, ela se acredita, incompreendida e habitada por um mistério. (ibidem, p. 825)
·      No cenário: Enquanto um jovem, ao deixar a casa de seus pais para cumprir seu destino de homem, aluga qualquer "cafofo", a jovem procura "um cantinho seu", que reflita sua personalidade através da decoração.
·      No exibicionismo: Performa suas histórias de vida, quando não ao público (no caso da artista), à uma amiga, médico, psicanalista ou vidente. "Não é porque acredite nisso", dizia uma starlet a respeito de suas consultas com um místico, "mas gosto que falem de mim, para mim" (ibidem, p.826)
·      Na musa:  "Muitas mulheres, imbuídas de sentimento de superioridade, não são entretanto, capazes de manifestá-la aos olhos do mundo; sua ambição será então utilizar, como instrumento, um homem a quem convencerão dos seus méritos; [...] na esperança de se identificar com eles, fazendo-se musas, inspiradoras, egérias" (ibidem, p. 829)

Para SdB, a mulher - generalizando a mulher dos anos 1940 - fica no pretexto. Não consegue passar à ação, pois está sempre explicando-se, entendendo-se, aprovando-se como ser humano, bloqueando, assim, a passagem ao ato de ser. Interdita-se na onipotência do narcisismo, e sente-se ameaçada pela aprovação alheia, já que ela é o Outro, o segundo sexo, em um mundo masculino. Porém, olhando para estes exemplos, identifico muitos homens do século 21 que se encaixam nos padrões acima.

Poderíamos aplicar os tópicos acima a realidade humana (sim, machos e fêmeas), porém precisamos fechar este texto e para tanto, citaremos o caminho feminista que não vale-se apenas da capenga teoria psicanalítica da sexualidade; um caminho que entende a mulher não como um ser que hesita entre "virilóide" e "feminina", mas "entre o papel de objeto, de Outro, que lhe é proposto, e a sua reivindicação de liberdade" (ibidem, p. 85)
Libertar a mulher é recusar encerrá-la nas relações que mantém com o homem, mas não as negar; ainda que ela se ponha para si, não deixará de existir também para ele: reconhecendo-se mutualmente como sujeito, cada um permanecerá entretanto um outro para o outro; a reciprocidade de suas relações não suprimirá os milagres que engedra a divisão dos seres humanos em duas categorias separadas: o desejo, a posse, o amor, o sonho, a aventura; e as palavras que nos comovem: dar, conquistar, unir-se conservarão seus sentidos. Ao contrário, é quando for abolida a escravidão de uma metade da humanidade e todo o sistema de hipocrisia que implica, que a “seção” da humanidade revelará sua significação autêntica e que o casal humano encontrará sua forma verdadeira. (ibidem, p. 935)

Esta citação implica situações práticas, encontradas em nossa sociedade, representadas pelo conservadorismo, resultado deste medo de perder o sentido.


BIBLIOGRAFIA

FREUD, Sigmund. "Introdução ao narcisismo" [1914]. Obras Completas - volume 12. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo; Companhia das Letras, 2010.

__________. "Feminilidade" [1933]. Obras Completas - volume 18. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo; Companhia das Letras, 2010.

BEAUVOIR, de Simone. O Segundo Sexo. [1949]. Tradução Sérgio Milliet. 2 ed. 2 v. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.








[1] No entanto, devemos lembrar o reconhecimento de Freud ao citar a possibilidade de parcialidade do analista homem, quase admitindo a fragilidade de seu ponto de vista.
[2] Termo cunhado por Heidegger para capturar a característica humana do "ser com outro". São significados e situações compartilhadas no mundo das referências.

[4] Elisabeth Roudinesco, Jacques Lacan, trans. Barbara Bray, Columbia University Press, New York, pp. 168-9.

[5] cf. "Narcisismo – Uma Patologia do Nosso Tempo",  Ernesto Dudovich.


[6] cf. FREUD, "Alguns tipos de caráter encontrados na prática psicanalítica" (1916).