FEMINILIDADE: SdB & FREUD.
Vivian Vigar - Centro de Estudos Psicanalíticos
INTRODUÇÃO
A discussão em torno do
desenvolvimento da sexualidade feminina é, talvez, a mais polêmica de toda a
teoria psicanalítica, principalmente, freudiana. Para mim, até aqui, o é. Assim,
das feministas que acusam Freud de misógino, passando pelo anti-humanismo de
Foucault, depois pelo existencialismo de Simone de Beauvoir, seguido pelo gozo
feminino de Lacan e, mais recentemente, o gênero como performance indicado por
Judith Butler, traço aqui uma tentativa de posicionar-me perante a discussão.
No livro O Segundo Sexo (1949), Simone de Beauvoir (SdB) parafraseia seu
amigo: " A mulher não ultrapassa nunca o pretexto" e, em seguida, afirma
que a mulher investiga como nenhum homem: na observação, a mulher brilha;
descreve a natureza, a singularidade humana com "adjetivos saborosos"
e "imagens carnais"; assim, ela "revela sua experiência e seu
sonho". Porém elas "não contestam a condição humana porque mal começam
a poder assumi-la integralmente". (p. 912).
Penso que o feminismo possa
padecer na mesma imanência feminina, apontada por SdB: o feminisno ainda não
transcendeu seu pretexto. Segue, ao menos na generalidade (assim como as
mulheres exemplificadas por SdB), observando e adjetivando os seres humanos:
machistas, ousadas, sexistas, emancipadas etc. Assim, instigada pela leitura de
O Segundo Sexo, é utilizando a
feminista como contraponto que tecerei o presente trabalho sobre a feminilidade
para Freud.
Também, minha tentativa de
posicionar-me através deste ensaio é um pretexto: um estudo pretende um
pensamento, um fim, mas não o é. É um estudo. O que o pretexto pode, de fato, é
ser um caminho; às vezes sem volta ou sem fim, mas sempre implicado em um
objetivo. No caso do feminismo, o caminho pode não ter um retorno (assim
espero) ou um fim, porém é certo que, assim como a mulher, ele tem um objetivo,
o qual você pode imaginar: a liberdade. Já o objetivo deste trabalho é, como já
dito, posicionar-me, organizando algumas
ideias em relação ao feminino.
Um posicionamento exige um
repertório. Para se construir um repertório precisamos de tempo. Tempo este que
usamos de acordo com nossas "escolhas" subjetivas, nossos desejos e
possibilidades. Portanto o recorte que faço aqui é uma arbitrariedade dentro de
minha subjetividade. O que quero, dizendo isso, é assegurar-lhes que sei da
existência da imensa variedade registrada sobre esse assunto: um esclarecimento
em tom confessional que, acima de tudo, pede sua complacência.
DO TEXTO "FEMINILIDADE", DE FREUD
Começo expondo a teoria freudiana
a respeito do desenvolvimento sexual feminino. Tardiamente, em sua vida, Freud
escreve "Feminilidade", para as Novas conferências introdutórias à
psicanálise (1933). Nele, antes de dar
suas premissas para a investigação do desenvolvimento sexual feminino, são apresentadas
algumas dificuldades para desvendar tal "enigma". Primeiramente ele descreve a ambivalência e
inadequação, em termos anatômicos, das qualidades "passivas" e
"ativas" para o "feminino" e o "masculino";
depois aponta que "a supressão da agressividade, prescrita
condicionalmente e imposta socialmente à mulher, favorece o desenvolvimento de
fortes impulsos masoquistas (FREUD, [1933] 2010, p. 268); e, em seguida discute
a possibilidade da parcialidade do analista homem no desenvolver de teorias da
feminilidade (ibidem, p. 269). Tem, então, o início da investigação colocando
duas expectativas a priori. São elas:
1) "a constituição não se ajustará à função sem alguma relutância";
2) "as mudanças decisivas terão sido encaminhadas ou realizadas antes da
puberdade". (ibidem, p. 269). A base de sua teoria é calcada em dois fatores: Diferente do menino,
"a menina deve trocar de zona
erógena e de objeto" (ibidem,
p. 272). Ou seja, sobre a zona erógena,
"com a mudança rumo a feminilidade, o clitóris
deve ceder à vagina sua sensibilidade [...] o homem, tendo mais sorte, na
maturidade sexual precisa apenas dar continuidade ao que já praticou no período
da primeira florescência sexual" (ibidem, p. 271)
Quanto ao objeto, tanto o
menino como a menina, na fase pré-edípica, têm a figura da mãe como foco de
investimento amoroso. Porém, enquanto o menino assim permanecerá por toda a sua
vida, a menina está destinada a reverter este investimento objetal amoroso ao
pai.
Segue-se, então, a explicação
do complexo de castração, da inveja do pênis, do complexo de édipo masculino e
o feminino, e como a mulher é prejudicada, em comparação ao homem, durante a
determinação de sua sexualidade. Até, então, pouco temos a nos opor, pois
apesar da falha em dar a devida importância a posição cultural da mulher, seu
projeto, em termos psíquicos, é coeso, e como diz Simone de Beauvoir, "não
é um empreendimento fácil discutir a psicanálise" (BEAUVOIR, [1949] 2009, p.
71). Porém, no penúltimo parágrafo do texto de Freud somos surpreendidos com
opiniões que hoje nos soam até absurdas, tornando fácil entender porque tantas
feministas repudiam o pai da psicanálise. Assim, nos é revelada sua duvidosa
crença ("temos que admitir", ele diz) "que pouco senso de justiça
nas mulheres provavelmente se liga à preponderância da inveja na sua vida
psíquica", referindo-se à sua tese da inveja do pênis. E, como se não
bastasse, ele segue, no mesmo parágrafo, afirmando "que os interesses
sociais das mulheres são mais fracos e sua capacidade de sublimação é menor que
nos homens." (FREUD, [1933] 2010, p. 292).
SdB E A PSICANÁLISE
Uma das mais célebres
críticas da inveja do pênis é de Simone de Beauvoir. Em seu livro O Segundo Sexo, onde investiga o que é
uma mulher, ela apoia-se no existencialismo, demonstrando a insuficiência, não
apenas da psicanálise, mas também da biologia e do materialismo para dar
sentido ao seu objeto, a mulher: Em que, o fato de ser mulher, afeta a vida da
mulher? Que possibilidades foram oferecidas ou recusadas às mulheres? Que
destino devem esperar as irmãs mais novas e como orientá-las? (BEAUVOIR, [1949]
2009, p. 29)
A perspectiva que adotamos é a
da moral existencialista. Todo sujeito coloca-se concretamente através de
projetos como uma transcendência; só alcança a liberdade pela sua constante
superação em vista de outras liberdades; não há outra justificação da existência
presente senão sua expansão para um futuro indefinidamente aberto. Cada vez que
a transcendência cai na imanência, há degradação da existência em "em
si", da liberdade em facticidade; essa queda é uma falha moral, se
consentida pelo sujeito. Se lhe é infligida, assume o aspecto de frustração ou
opressão. Em ambos os casos, é um mal absoluto. Todo indivíduo que se preocupa
em justificar sua existência, sente-a como uma necessidade indefinida de se
transcender. Ora, o que define de maneira singular a situação da mulher é que,
sendo, como todo ser humano, uma liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se
num mundo em que os homens lhe impõem a condição do Outro. Pretende-se torná-la
objeto, votá-la à imanência, porquanto sua transcendência será perpetuamente
transcendida por outra consciência essencial e soberana. O drama da mulher é
esse conflito entre a reivindicação fundamental de todo sujeito que se põe
sempre como o essencial e as exigências de uma situação que a constitui como
inessencial. (ibidem, p. 30-31)
Assim, dada a abrangência
filosófica de seu empreendimento, escolhi dois capítulos do livro, escrito em
dois volumes, onde a autora dialoga diretamente com a psicanálise. São eles,
"O ponto de vista psicanalítico" (Volume
1: Fatos e Mitos) e "A narcisista" (Volume 2: Da experiência vivida).
No primeiro texto supracitado,
SdB examina as contribuições da psicanálise ao estudo da mulher, entendendo o
"imenso progresso" da ciência de Freud
ao "considerar que
nenhum fator intervém na vida psíquica sem ter revestido um sentimento
humano". Traduzindo esta afirmação em termos existencialistas, ela
continua, "não é o corpo-objeto descrito pelos cientistas que existe
concretamente e sim o corpo vivido pelo sujeito" (ibidem, p. 71). Assim,
dada esta introdução podemos passar entender a crítica do existencialismo
beauvoiriano em relação a teoria da sexualidade freudiana.
A leitura feita por SdB
entende que Freud estuda a mulher não em sua origem, "em si mesma",
mas a partir do homem, sendo ele absoluto e ela a incompletude de uma fuga
inautêntica, resultado da inversão a ela destinada pela "mutilação"
e, consequentemente, inveja do pênis. Para ele, a libido feminina é um
"desvio complexo da libido humana em geral" (ibidem, p. 73)[1].
Referindo-se ao complexo de
Elektra (termo sabidamente rejeitado por Freud), ao complexo de Édipo e ao
complexo de castração, SdB assinala uma rigidez descabida. Para ela, enquanto a
psicanálise "supõe que a mulher se sente um homem mutilado", (..)
"muitas meninas só tardiamente descobrem a constituição masculina", e
ainda, quando descobrem - a feminista continua com uma pequena dose de ironia
-, "esse frágil caule de carne só pode inspirar indiferença e até
repugnância". Ou seja, a inveja do pênis não deve, invariavelmente,
originar da "simples confrontação anatômica", mas de "uma
valorização prévia da virilidade" (ibidem, p. 74-75). A crítica vale para
os meninos também: "a presença de um complexo de Édipo de ordem
propriamente genital está longe de ser geral" (ibidem, p. 75)
Assim como Jung (porém,
obviamente, em um caminho diferente), SdB entende que nem tudo é sexo. Na
ontologia do ser, nos encontramos, nos definimos no confronto com valores dados
às significações criadas pelos sujeitos, "pela realidade humana que é mitsein[2]
ao mesmo tempo que separação" (ibidem, p. 80). Vemos aqui, uma tendência
de SdB para uma psicanálise nos moldes mais lacanianos[3],
atribuindo a um Outro a constituição
do sujeito, refletindo sobre o paradoxo mitsein/separação:
Essa perspectiva permite-nos,
por exemplo, compreender o valor geralmente dado ao pênis. É impossível
explicá-lo sem partir de um fato existencial: a tendência do sujeito para a
alienação. A angústia de sua liberdade conduz o sujeito a procurar-se nas
coisas, o que é uma maneira de fugir de si mesmo; é uma tendência tão
fundamental que logo após a desmama, quando se acha separado do Todo, a criança
esforça-se por apreender nos espelhos, no olhar dos pais, sua existência
alienada. Os primitivos alienam-se no mana, no totem; os civilizados em sua
alma individual, em seu eu, em seu nome, em sua propriedade, em sua obra: é a
primeira tentação da inautenticidade. (ibidem, p. 80-81)
Lembremos que é no mesmo ano
da publicação de O Segundo Sexo que
Lacan comunica, pela segunda vez a concepção do estádio do espelho, no XVI
Congresso Internacional de Psicanálise. É sabido, também, através da biografia
de Lacan[4],
que a filósofa recorreu ao psicanalista antes de publicar O Segundo Sexo, porém a parceria não rendeu frutos. Assim, SdB cita,
Lacan e seu texto, "Complexos familiares na formação do indivíduo",
apenas em uma nota de roda pé sobre a constituição de identidade.
Voltando-nos a crítica da
teoria da sexualidade, SdB afirma que a
fraqueza da psicanálise reside não apenas na recusa da noção de valor - dado do
mundo das significações do mitsein -,
mas também a noção de escolha, interditada pela contingência psíquica,
resultado do que conhecemos como banquete totêmico. Aqui, ao meu ver, SdB
desliza na compreensão da teoria psicanalítica, subtraindo a importância da
proibição do incesto para nosso arcabouço psicológico. Ela diz:
Tendo desligado impulsos e proibições da escolha
existencial, Freud malogra em
explicar-lhes a origem: toma-os por todos. Tenta substituir a noção de
valor pela de autoridade; mas, em Moisés
e seu Povo, ele convém em que não há meio de explicar essa autoridade. O
incesto, por exemplo, é proibido porque o pai o proibiu: mas por que essa
proibição? Mistério. O superego interioriza ordens e proibições emanando de uma
tirania arbitrária; as tendências instintivas existem não se sabe por quê; as
duas realidades são heterogêneas porque se considerou a moral alheia à
sexualidade; a unidade humana apresenta-se quebrada, não há passagem do
indivíduo à sociedade; Freud é obrigado a inventar estranhos romances para
reuni-los (ibidem, p. 78)
Sabemos, no entanto, que Freud,
no texto Totem e Tabu, apoia-se no
darwinismo, para remontar a proibição do incesto a partir do
"assassinato" do pai primitivo por seus filhos, e são estes (os
filhos, irmãos) que, ao perceberam a necessidade de estarem juntos para dar
continuidade a horda, instituem a proibição do incesto. Ainda assim, Freud
aponta para a dificuldade em adotar mitos tão distantes no intuito de dar
sentido à sobrevivência infantil. Portanto, aqui julgamos injusta ou ingênua a leitura de SdB.
Evoluindo do banquete
totêmico ao narcisismo (onde a filósofa sai-se melhor), pudemos constatar, um
ponto de congruência entre nossos dois pensadores: ela reconhece o maior risco
da mulher em não "atingir o termo de sua evolução sexual, a permanecer no
estágio infantil e, consequentemente, a desenvolver neuroses" (ibidem, p.
73), devido a necessidade de troca de zona erógena, do clitóris para a vagina. Porém,
como já vimos, há muito para ser investigado além da anatomia, e esta tese será
demonstrada no segundo texto aqui estudado, "A narcisista", onde SdB
faz uma seleção de artistas, focando em traços característicos das mulheres
neuróticas, infantilizadas, buscando entender suas "experiências
vividas", como sugere o título de seu volume 2.
Narcisismo é um termo, hoje,
bastante utilizado no cotidiano e tem ganhado cada vez mais espaço para tentar
explicar as patologias sociais do século 21[5].
No uso comum, narcisista é aquele que pensa mais em si e coloca-se sempre a
frente de todos; seja em relações de classe, amorosas, trabalho ou até família:
os interesses do narcisista são sempre preponderantes. Na sociologia, que
entende a sociedade contemporânea hedonisticamente doente e fomentada pelo
capitalismo, verifica-se a subjetivação do indivíduo através de um desvio
narcisista, este ratificado no comportamento generalizado nas mídias sociais
que, por sua vez, como uma ferramenta propagadora, contribui com a ideia. A
auto promoção do sujeito nas redes sociais (como, por exemplo, os selfies) apontam para uma formação
narcísica que implica o ter e não o ser.
O termo narcisismo ganhou
conotação psicanalítica através de Freud, em 1910, para entender os
homossexuais ("invertidos"), pois estes tomam a si mesmos como
objetos sexuais. Logo em seguida, Freud passa a considerar o narcisismo como
uma fase do desenvolvimento sexual "normal", marcada pela passagem do
auto-erotismo para o amor de objeto. Porém em um segundo momento, o narcisismo
passa a ter também o caráter de regressão, quando há um desequilíbrio na
distribuição de libido entre os objetos de amor e a si mesmo ou, na
terminologia de Freud, ao Eu ideal.
O narcisismo parece deslocado para esse novo Eu ideal,
que como o infantil se acha de posse de toda preciso perfeição. Aqui, como sempre no âmbito da
libido, o indivíduo se revelou incapaz de renunciar à satisfação que uma vez
foi desfrutada. Ele não quer se privar da perfeição narcísica de sua infância,
e se não pôde mantê-la, perturbado por admoestações durante seu desenvolvimento
e tendo seu juízo despertado, procura readquiri-la na forma nova do ideal do
Eu. O que ele projeta diante de si como seu ideal é o substituto para o
narcisismo perdido da infância, na qual ele era seu próprio ideal (FREUD, [1914]
2010,p. 40)
Já SdB apropria-se do termo
para introduzir o texto "A narcisista", um capítulo um pouco mais
amigável com a teoria psicanalítica. Ela diz:
Na realidade, o narcisismo é um processo de alienação
bem definido: o eu é posto como uma fim absoluto e o sujeito nele foge em si.
[...] A verdade é que as circunstâncias convidam a mulher , mais do que o
homem, a voltar-se para si mesma e a dedicar-se a seu amor. (BEAUVOIR, [1949]
2009, p. 817)
É fato que 60 anos se
passaram desde a publicação do "tratado feminista", de SdB, e hoje, estamos,
homens e mulheres, caminhando em direção a igualdade sexual. Porém me parece
que ao mesmo tempo que a mulher dá alguns passos, no ritmo dois para frente e
um para trás, o homem reposiciona-se lentamente, porém, na direção oposta. Arrisco
tal afirmação levando em conta o diagnóstico popular do narcisismo ser uma
patologia do nosso século, e de minha interpretação de que os tipos narcísicos -apresentados
por SdB, defendendo a dificuldade da mulher transcender como ser humano -
mostram-se também nos homens de hoje.
A mulher é levada ao narcisismo por dois
caminhos convergentes. Como sujeito, ela se sente frustrada; em menina viu- se
privada desse alter ego que o pênis é
para o menino; mais tarde sua sexualidade agressiva permaneceu insatisfeita. E,
o que é muito mais importante, as atividades viris lhe são proibidas. Ela se
ocupa, mas não faz nada; através
de suas funções de mãe, esposa, dona de casa, não é reconhecida em sua
singularidade. A verdade do homem está nas casas que constrói, nas florestas
que arroteia, nas doenças que cura: não podendo realizar- se através de
projetos e objetivos, a mulher se esforçará por se apreender na imanência de
sua pessoa. (ibidem, p. 817)
Antes de continuar, insisto,
novamente, que 60 anos se passaram desde que essas palavras foram registradas, e
acredito que alcançamos certa "evolução", porém também insisto na
existência de um longo caminho até inteirarmos um novo paradigma, repensado até
mesmo dentro do universo masculino.
Continuando... SdB parte
então para definir alguns tipos narcisistas encontrados em suas
"irmãs" a partir de uma seleção de artistas que deixaram suas
impressões sobre a experiência vivida da mulher. Dentre elas destacamos Marie
Bashkirtseff, Anna de Noailles, Dorothy Parker, Isadora Duncan, Mabel Dodge e
Anne Louise Germaine de Staël. A vida e obra dessas mulheres ilustram, para
SdB, por vezes a imanência do gênero feminino no âmbito social, econômico e psicológico
e, outras vezes, contradizendo a grande falácia de Freud citada no início deste
trabalho, a possibilidade da transcendência feminina através da sublimação. Citemos
algumas condições femininas que, como já dito, acreditamos abranger também nossos
parceiros machos contemporâneos para, enfim, fecharmos, pelo momento, nossa
exposição. Por uma questão didática, organizaremos em tópicos algumas
"práticas" narcisistas identificadas nas mulheres por SdB:
·
No para si "em si": a mulher que se vê autosuficiente. Deseja-se.
"Vou me amar", "Vou me possuir", "Vou me
fecundar".
·
Na boneca:
Como o para si "em si" pode ser somente sonhado, a menina materializa
suas mais fantasias de si mesma em suas bonecas. Identifica-se com ela nas
brincadeiras e cuida delas como se fossem personificações de suas fantasias.
·
No espelho:
"É principalmente no caso da mulher que o reflexo se deixa assimilar ao
eu. A beleza masculina é indicação da transcendência, a da mulher tem a
passividade da imanência: só a segunda é feita para deter o olhar e pode
portanto ser pegada na armadilha imóvel do espelho; o homem que se sente e se
quer atividade, subjetividade, não se reconhece em sua imagem parada." (ibidem,
p. 819).
·
No interior, imaginário: Seria uma espécie de entidade interior, imaginária,
a qual a mulher recorre, em pensamento, para dialogar sobre suas fantasias.
·
Na infância:
a nostalgia da infância, típica na mulher. Nostalgia de "um futuro livre
que se abria", em contrapartida de seu presente decadente, "fadada à
imanência e a repetição" (ibidem, p. 822)
·
Na excentricidade: "Buscam convencer-se de que seus gestos, suas ideias, seus
sentimentos conservam um insólito frescor" (ibidem, p. 822).
Característica que nos parece simetricamente inversa ao que Freud entende por
carácter de "exceção". Enquanto a exceção seria uma "desvantagem
congênita"[6], a
excentricidade seria uma característica única e original que a torna especial.
·
Na personagem: Uma personagem que faz a mulher sentir-se parte de um romance.
Identificam-se, frequentemente, com heroínas trágicas ou cômicas das artes, e
murmuram: "Minha vida é uma novela" (ibidem, p. 823).
·
No mistério:
Como não lhes é conferido ou reconhecido um destino concreto e objetivo, sua
verdade é impalpável, impossível de exprimir-se na ação cotidiana, ela se
acredita, incompreendida e habitada por um mistério. (ibidem, p. 825)
·
No cenário:
Enquanto um jovem, ao deixar a casa de seus pais para cumprir seu destino de
homem, aluga qualquer "cafofo", a jovem procura "um cantinho
seu", que reflita sua personalidade através da decoração.
·
No exibicionismo: Performa suas histórias de vida, quando não ao público (no caso da
artista), à uma amiga, médico, psicanalista ou vidente. "Não é porque
acredite nisso", dizia uma starlet a respeito de suas consultas com um
místico, "mas gosto que falem de mim, para mim" (ibidem, p.826)
·
Na musa: "Muitas mulheres, imbuídas de sentimento
de superioridade, não são entretanto, capazes de manifestá-la aos olhos do mundo;
sua ambição será então utilizar, como instrumento, um homem a quem convencerão
dos seus méritos; [...] na esperança de se identificar com eles, fazendo-se
musas, inspiradoras, egérias" (ibidem, p. 829)
Para SdB, a mulher -
generalizando a mulher dos anos 1940 - fica no pretexto. Não consegue passar à
ação, pois está sempre explicando-se, entendendo-se, aprovando-se como ser
humano, bloqueando, assim, a passagem ao ato de ser. Interdita-se na
onipotência do narcisismo, e sente-se ameaçada pela aprovação alheia, já que
ela é o Outro, o segundo sexo, em um
mundo masculino. Porém, olhando para estes exemplos, identifico muitos homens do
século 21 que se encaixam nos padrões acima.
Poderíamos aplicar os tópicos
acima a realidade humana (sim, machos e fêmeas), porém precisamos fechar este
texto e para tanto, citaremos o caminho feminista que não vale-se apenas da
capenga teoria psicanalítica da sexualidade; um caminho que entende a mulher
não como um ser que hesita entre "virilóide" e "feminina",
mas "entre o papel de objeto, de
Outro, que lhe é proposto, e a sua
reivindicação de liberdade" (ibidem, p. 85)
Libertar a mulher é recusar encerrá-la nas relações
que mantém com o homem, mas não as negar; ainda que ela se ponha para si, não
deixará de existir também para ele: reconhecendo-se mutualmente como sujeito,
cada um permanecerá entretanto um outro
para o outro; a reciprocidade de suas relações não suprimirá os milagres que
engedra a divisão dos seres humanos em duas categorias separadas: o desejo, a
posse, o amor, o sonho, a aventura; e as palavras que nos comovem: dar, conquistar,
unir-se conservarão seus sentidos. Ao contrário, é quando for abolida a
escravidão de uma metade da humanidade e todo o sistema de hipocrisia que
implica, que a “seção” da humanidade revelará sua significação autêntica e que
o casal humano encontrará sua forma verdadeira. (ibidem, p. 935)
Esta citação implica situações
práticas, encontradas em nossa sociedade, representadas pelo conservadorismo,
resultado deste medo de perder o sentido.
BIBLIOGRAFIA
FREUD, Sigmund. "Introdução ao narcisismo"
[1914]. Obras Completas - volume 12.
Tradução Paulo César de Souza. São Paulo; Companhia das Letras, 2010.
__________. "Feminilidade" [1933]. Obras Completas - volume 18. Tradução
Paulo César de Souza. São Paulo; Companhia das Letras, 2010.
BEAUVOIR, de Simone. O Segundo Sexo. [1949]. Tradução Sérgio Milliet. 2 ed. 2 v. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
[1] No entanto, devemos lembrar o
reconhecimento de Freud ao citar a possibilidade de parcialidade do analista
homem, quase admitindo a fragilidade de seu ponto de vista.
[2] Termo cunhado por Heidegger para
capturar a característica humana do "ser com outro". São significados
e situações compartilhadas no mundo das referências.
[4] Elisabeth
Roudinesco, Jacques Lacan, trans. Barbara Bray, Columbia University
Press, New York, pp. 168-9.
[5] cf. "Narcisismo – Uma Patologia do Nosso Tempo", Ernesto Dudovich.
[6] cf. FREUD, "Alguns tipos de caráter encontrados na
prática psicanalítica" (1916).
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