sábado, 23 de maio de 2015

FUNÇÃO DO CINEMA = TÉCNICA + IDEOLOGIA


por Vivian Vigar
REVISTA ESPAÇO ÉTICA: EDUCAÇÃO, GESTÃO E CONSUMO
Ano II, Número 04, janeiro/abril de 2015

RESUMO
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ESTE ARTIGO INVESTIGA, PELO VIÉS MARXISTA,  A FUNÇÃO SOCIAL DO CINEMA E SEU DESENVOLVIMENTO TÉCNICO, PROCURANDO ENTENDER TAMBÉM AS POSSIBILIDADES DE CONSTRUÇÃO E IDENTIFICAÇÃO DO ESPECTADOR ATRAVÉS DA PSICANÁLISE. O DESDOBRAMENTO EPISTEMOLÓGICO DESTA PESQUISA PARTE DO CRÍTICO DE ARTE FRANCÊS DO INÍCIO DO SÉCULO XX, ELIE FAURE; PASSA PELO TRABALHO TEÓRICO DO CINEASTA SOVIÉTICO, SERGEI EISENSTEIN, NO LIVRO A FORMA DO FILME (1936); EXAMINA ALGUMAS CONSIDERAÇÕES DO LIVRO/ENTREVISTA  HITCHCOCK/TRUFFAUT (2004), E INCIDE NAS LEITURAS LACANIANAS DO SUJEITO E DA SOCIEDADE EM RELAÇÃO AO CINEMA, TANTO ATRAVÉS DO FILÓSOFO CONTEMPORÂNEO SLAVOJ ZIZEK COMO DO ARTIGO DO PSICANALISTA JOÃO ANGELO FANTINI, NO LIVRO SEMIÓTICA PSICANÁLITICA (2014). AO FINAL, CONCATENA A TEORIA APRESENTADA COM A PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA RECENTE DE PERNAMBUCO, AFIM DE VALIDAR A HIPÓTESE DE QUE O MODO DE PRODUÇÃO É CORRELATA AO MOMENTO SOCIOCULTURAL,, OU SEJA, DO VÍNCULO INERENTE ENTRE FORMA E CONTEÚDO. 
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O cinema está estabelecido em nossos tempos como a arte mais acessível, mais completa e mais comunicativa. "O cinema, é sem dúvida a mais internacional das artes" (EISENSTEIN, 2002 p. 11). Suas possibilidades, ainda em descoberta e processo, continuam nos surpreendendo.

Apesar (e além) de abranger a poiesis de suas irmãs (a música, a pintura, a arquitetura, a dança, a literatura e a escultura), o cinema é uma arte em si, e não simplesmente uma fusão ou variante, pois constitui-se por sua própria técnica, a cinematografia, ou seja, a montagem sequencial de imagens estáticas, dando a impressão do movimento. Movimento este, já esboçado por outras linguagens, como, por exemplo, na obra do pintor Edgar Degas. A dança, por sua vez, puro movimento, só pôde ser fixada por meio do suporte cinematográfico.

Devido a indispensabilidade da máquina para a criação do cinema, custamos a aceitá-lo como uma arte e, assim, um dos primeiros pensadores a se dedicar a entende-lo e apreciá-lo foi Elie Faure. Autor de um dos mais importantes livros do tema, A História da Arte (1922), Faure preveu, no artigo "Da Cineplastia" (1922), o futuro do cinema como "sem dúvida, o ornamento espiritual mais unanimemente procurado - o jogo social mais útil ao desenvolvimento, entre as multidões, no que toca a necessidade de confiança , de harmonia e de coesão." (FAURE, 2010, p. 38)

Como historiador, Faure defende que a função da linguagem artística é exprimir o "ritmo espiritual" (ibidem, p. 49) das sociedades e, sendo o cinema contemporâneo das formas de produção em massa e mecanizada, seria ele o instrumento mais apto a refletir as correntes humanas do século XX. No ensaio "Introdução à mística do cinema" (1934), Faure situa a expressão como filha da produção, e apenas a expressão produzida coletivamente, como é o caso do cinema, seria capaz de erguer os monumentos que expressam sua época. Ao entender a arte como impulso místico do ser humano, Faure rejeita a pintura como manifestação de seu tempo devido seu caráter individualista, afirmando que a "esperança coletiva é uma aspiração impetuosa à unidade de Deus" (ibidem, p. 51).

Ora, não podemos separar a história da humanidade da história das técnicas, e o cinema, assim como as fábricas de produção em massa, evidencia não apenas a tendência ao coletivismo, mas também o nosso "automatismo intelectual", ou seja, "a subordinação da alma humana aos utensílios que cria e vice-versa. Revela-se entre o tecnicismo e afetividade, uma reversibilidade constante." (ibidem, p. 57). Em suma, Faure aponta para o equívoco em separarmos a "alma" e a "matéria". (ibidem, p.68)

Seria esta então, a suprema expressão das correntes humanas, a função do cinema? Um conteúdo socialmente relevante seria, portanto, o questionamento das marcas socioculturais, por meio de uma dialética crítica? Continuemos seguindo o caminho de Faure, desta vez, em um ensaio intitulado "Vocação do Cinema", onde o autor refere-se ao "valor estético das imagens" e as "virtudes educativas". A estes valores, Faure contrapõe o filme "sentimental" e "romanesco", atribuindo tais vertentes ao abandono dos diretores a um mecanicismo e uma excessiva preocupação com "a sincronização do som e da imagem e a guiar a imagem no labirinto do diálogo", esquecendo-se da cinematografia (ibidem, p. 82), ou seja, a montagem.

Faure aponta para a dicotomia do cinema autoral/indústria cultural - sem no entanto utilizar tais conceitos, ainda não difundidos em sua época - transparecida na comparação de uma produção cujas imagens são cuidadosamente escolhidas e seu valor estético traz "a demonstração objetiva da continuidade harmônica das formas e dos movimentos" (ibidem, p. 82) com a, então, nova produção do cinema sonoro que "lisonjeando a nossa preguiça, nos dispensa arbitrariamente e muitas vezes até abstratamente, sem exigir de nós o menor esforço" (ibidem, p. 81). É precisamente a diligência com o valor estético do primeiro cinema que reflete, nas palavras de Faure, as "virtudes educativas desta admirável máquina." (ibidem, p. 82)

Faure escreve sobre o cinema passionalmente, por vezes usando metáforas religiosas, evidenciando profunda gratidão pela arte, mas devemos levar em conta a temporalidade de sua obra. Falar sobre o cinema do início do século XX, não pode ser a mesma coisa do que falar sobre o cinema de cem anos depois. Além da evolução e modificação das técnicas de produção (câmeras, computadores, softers, financiamento etc), hoje o cinema da indústria cultural pode ser tão pujante e fecundo quanto o "cinema arte". O crítico de cinema, Ismail Xavier, nos lembra do risco da impreterível "associação da indústria com deserto estético" (XAVIER, 2004, p. 18) Esta ideia é desenvolvida no prefácio brasileiro de Hitchcock/Truffaut (2004), livro tido como a bíblia dos cineastas, onde foi registrada as cinquenta horas de entrevista concedida pelo mestre dos filmes de suspense  a um dos fundadores da Novelle Vague. Para tanto, Xavier remonta à heterogeneidade da filmografia de Hitchcock, que mesmo entranhada ao modelo holliwoodiano não abre mão da dimensão moral e metafísica do cinema, fossem seus filmes suspenses ou comédias. Assim, como diz o filósofo Slavoj Zizek, "for true Hitchcock aficionados, everything has a meaning", e este mesmo filósofo é um destes aficinados. As analogias significantes encontrada na obra de Hitchcock  por Zizek são expostas em 3 níveis de tríades relacionadas em seus momentos históricos. A primeira, proveniente da teoria literária de Frederic Jamenson; a segunda, de três períodos da obra hitchconiana; a terceira, de três momentos da economia capitalista do último século:




Tríades
Momento históricos
1. estilos de discurso propostos por Frederic Jameson
realismo: variações da trajetória edipiana

modernismo: subverte os códigos narrativos
pós-modernismo:
pela transferência da subversão dos códigos, os filmes engendram entre os intérpretes







2. três períodos da obra hitchconiana




Os filmes ingleses da segunda metade dos anos 1930: história edípica da jornada iniciática do casal: por à prova o amor do casal e então tornar possível sua reunião final.
O ‘período Selznick’: a história é, em geral, narrada do ponto de vista de uma mulher dividida entre dois homens: a figura mais velha de um vilão (seu pai ou seu marido mais velho, incorporando uma das típicas figuras hitchcockianas, o qual é consciente do mal em si mesmo e se esforça depois de sua destruição) e o mais jovem e um tanto insípido ‘bom moço’, a quem ela escolhe no final.





Os grandes filmes dos anos 1950 e início dos anos 1960: referências a ‘voyeurismo’ de Janela Indiscreta a Psicose, etc.), tematicamente centrada na perspectiva do herói masculino para quem o superego materno bloqueia o acesso à relação sexual ‘normal’


3. três momentos da economia capitalista do último século
capitalismo liberal: FirmEmente edificado sobre a ideologia clássica do sujeito autônomo reforçado através da provação

capitalismo estatal imperialista: declínio deste sujeito autônomo a quem se opõe o vitorioso, o insípido heterônomo.

capitalismo tardio pós-industrial: Características do 'narcisismo patológico', a forma subjetiva que caracteriza a chamada 'sociedade de consumo'.[1]


Esta analogia nos serve como exemplo para desenvolvermos nossa percepção de que não apenas a técnica está ligada a estética, como também, a ideologia de uma época e, portanto, a ética; esta inerente a estética, ou como poderíamos colocar, a ética e a estética são os dois lados da mesma moeda: conteúdo e forma ocupam o mesmo espaço. Lembremos da colocação do cineasta soviético, Sergei Eisenstein: "A base genuína da estética e o material mais valioso de uma nova técnica é e sempre será a profundidade ideológica do tema e do conteúdo." (EISENSTEIN, 2002, p. 13)

Sabemos que Eisenstein, defensor das revoluções populares, era praticante de um cinema engajado. Sua militância político-cultural, em uma União Soviética stalinista, estava ligada ao desejo da produção cinematográfica independente do governo (financeiramente e ideologicamente) e da libertação do cinema de formato convencional (tela horizontal e salas fechadas) para ser exibido publicamente e ao ar livre,  "numa tela vertical, para um público em pé e que pudesse reagir com indignação, fazer gestos políticos e entoar palavras de ordem durante a projeção" (MACHADO, 2012). Para Eisenstein, este seria o modelo de conteúdo e formato para um cinema socialmente relevante e apresentado objetivamente.

No entanto, levaremos em conta a dificuldade de praticarmos, hoje em dia, qualquer tipo de objetividade, lembrando como é a "forma subjetiva que caracteriza a chamada 'sociedade de consumo'", que vivemos atualmente. (ZIZEK, 1992): se no auge de sua produção, Eisenstein percebia o cinema sendo "chamado a incorporar a filosofia e  ideologia do proletário vitorioso" (EISENSTEIN, 2002, p. 25)  e para isso acontecer foi necessário transpor na tela, de forma sintética (inclusive sobrepondo imagens), a 'coletividade', "eliminando a concepção individualista do herói burguês, insistindo em uma compreensão da massa como herói" (ibidem, p. 24), atualmente nos deparamos com um cenário tramado na multiplicidade de interpretações, distinto da pureza de sentido vislumbrada pelo cineasta soviético do início do século XX.

É no cenário contemporâneo, chamado por muitos de pós-moderno, que emerge não somente uma disputa entre a "fidelidade das imagens e a subjetividade do olho " (FANTINI, 2013, p. 132), como também a necessidade de casar, em uma produção, o espírito sintético (como demonstrado pela eficiente cinematografia da obra de Eisenstein. principalmente em A Greve, de 1924, e o Encouraçado Potemkin, de 1925) com o espírito analítico. De acordo com Truffaut, no prefácio da publicação suas entrevistas com Hitchcock, sem a síntese o filme perde a qualidade rítmica, e por outro lado, se lhe faltar análise, perde-se em clareza, portanto o controle do filme; questões técnicas da alçada dos realizadores, colocadas em detalhe no livro.

Esta linha de raciocínio a respeito do cenário pós-moderno, nos leva a outras dimensões, sendo uma delas a "reflexividade programada (o cinema que, enquanto se faz, discute o próprio cinema)" (XAVIER, p. 18).  Este tipo de consideração nos permite perceber, além da função meta do cinema, a falsa neutralidade da imagem técnica, tendo em mente que quando uma máquina produz uma imagem, ela o faz a partir de um ponto de vista escolhido pelo operador.

Conjecturando o cinema por esta perspectiva, suspeitamos não ser factível uma forma objetiva de mostrar um conteúdo socialmente relevante, visto que mesmo o que pressupomos "socialmente relevante" dependerá da identificação do espectador, seja para um indivíduo ou um grupo, disposto a levantar uma bandeira em praça pública.

A arte em geral, e o cinema com mais alcance, está sempre tentando por em pauta um assunto "importante". Seja tratando da miséria, do racismo, da corrupção, da eutanásia, da guerra, da obesidade etc. Com mais ou menos eficiência, com mais ou menos profundidade, os filmes abordam e trazem a baia assuntos que "precisam" ser discutidos pela sociedade.  Podemos citar filmes que repercutiram, mais ou menos, no âmbito nacional e internacional. Por exemplo, o filme Brokeback Mointain (Ang Lee, 2005), uma produção holliwoodiana, que evidenciou e buscou tratar, pelo novo paradigma politicamente correto de sua época, a questão da homossexualidade; o filme Bicho de Sete Cabeças (Laís Bodansky, 2000), através da retrospectiva, tentou tratar das instituições de saúde mental; Tropa de Elite (José Padilha, 2007), lançou olhar pretenciosamente ambiguo no sistema policial carioca; Jogo das Decaptações (Sérgio Bianchi, 2013), através de um discurso pessimista e supostamente apartidário, falou sobre o desenrolar do movimento esquerdista brasileiro; etc. Podemos acrescentar aqui toda uma produção brasileira dos anos 1960 e 1970 que foi sumariamente censurada, não apenas no cinema como em outras arte, com destaque para o teatro e a música. Realçamos que toda criação parte de um ponto de vista subjetivo e a partir do  momento em que um filme reputa-se  socialmente relevante e objetivo, ele corre o risco de transformar-se em propaganda ideológica, como o Encouraçado Potemkin veio a ser considerado.

Em qualquer caso, seja nos filmes em torno da "reflexividade programada", nos filmes de temas em evidência ou "importantes", nos filmes propagandistas e até mesmo nos "romanestos", o diretor utiliza técnicas de identificação quando precisa atrair o espectador. Na maioria dos casos a intenção de atrair o espectador  é de ordem financeira: gerar bilheteria e lucro. Porém em alguns casos, o filme visa denunciar e, de alguma forma, convencer sua plateia, seu espectador, dando som e formas à ideologia.   

Em um artigo, sobre a invenção do espectador e as novas subjetividades, para o livro Semiótica Psicanalítica (2010), o psicanalista João Angelo Fantini, infere, através do lacanismo, na constituição do espectador, no processo de identificação e nas técnicas do cinema para o "assujeitamento". Para ele, o espectador do cinema é correlato ao sujeito da psicanálise que "está regulado por processos enunciativos nos quais o que ele considera realidade é sempre um recorte que lhe é dado a ver,  num processo de identificação que se inicia desde seus primeiros momentos de vida" (FANTINI, 2013, p. 134). Ao fator do recorte da realidade, Fantini acrescenta a disposição física do cinema: uma sala escura equipada com uma gigantesca tela que toma para si toda a atenção do sujeito que senta-se imóvel em uma confortável cadeira.

A impotência motora do espectador lembra o processo de constituição imaginária do eu, antecipando sua unidade corporal e consolidando precocimente sua organização visual. Lacan (1998), em sua formulação sobre o 'Estádio do Espelho'. expõe a ideia de um primeiro movimento dos processos identificatórios, que funcionam como um primeiro esboço do eu: é o olhar (mãe) que reflete o olhar do olhado (criança), antecipando a constituição imaginária de um corpo, biologicamente prematuro, ainda em processo de mielinização de seus neurônios, que não domina seus movimentos e depende de outro para alimentá-la etc." (ibidem , p. 134-135)

No mesmo processo da construção do eu, constrói-se também o outro, com quem o eu irá disputar objetos de uma realidade permeada por percepções e estímulos externos.

A tela como moldura que isola um objeto exclui o sujeito: a imagem que vejo é aquilo em que não estou e onde me insiro pelo outro (personagem,olhar). Como na constituição do eu (a dialética eu/outro, perceber/ser percebido), o "eu" permanece objeto separado, como quando falamos com nós mesmos: o sujeito da enunciação é sempre um não-dito que só pode se presentificar ausentando-se no enunciado. No processo de enunciação do filme, este enunciador - mesmo que identificado a uma voz ou personagem, por exemplo - apresenta-se como ausência, isto é, como um lugar vago onde o sujeito se coloca como centro do processo  de significação , numa troca de sentidos pré-construídos por cada um (Machado, 1996): nos sentidos que os realizadores  do filme tentam representar, nos sentidos que o sujeito traz ao entrar na sala de cinema. (ibdem, p. 135) 

Esta construção do espectador através de um processo psíquico pressupõe que quando entra-se no cinema a realidade é suspensa, viabilizando a identificação com a narrativa. Descontextualizados de nossas vidas que acontecem do lado de fora do cinema, somos, dentro da sala, novamente "assujeitados" na trama dada e, persuadidos pelas imagens, participamos emocionalmente da história; associamos, intercalamos e incorporamos nossas fantasias e desejos; finalmente, enunciamos nosso próprio sentido à aquele dado pelo diretor.

Truffaut, ainda em seu prefácio, elogia a maestria de Hitchcock ao construir cenas onde "a evidência e a força persuasiva da imagem são tamanhas que o público não pensará" (TRUFFAUT, 2004, p. 25). Podemos nos orientar nesta colocação, mais uma vez, pela psicanálise: pensemos no abismo existente entre um bebê e a vida autônoma, fazendo com que as pequenas tarefas exercidas pelos pais, principalmente, a mãe, pareçam de uma complexidade gigantesca e inquestionável aos olhos do bebê, que receberá incondicionalmente qualquer afeto ou atributo vindo de seus pais, sem lhes perguntar o que "tudo isso" lhe custará no futuro ou interpretar as metáforas dos cuidados mais básicos, como os da higiene e amamentação.

Porém, diferente de nossos bebês que poderão questionar os pais apenas após 3 anos (se tiverem sorte), supomos, neste texto, espectadores minimamente maduros, criaturas que há muito superaram a prematuridade imposta pelos primeiros meses de vida, e agora requerem manobras criativas para engolir uma ideia - neste caso uma narrativa - que poderia ser bastante indigesta se não elaboradas eloquentemente. Assim, no cinema, com cálculo, planejamento e premeditação (funções estas dispensadas por nossos inexperientes bebês em troca  da pura e simples devoção materna), aplica-se uma carga dramática sutilmente misturada a montagem de, por exemplo, uma cena de um homem apressado para pegar um trem. A dramatização do material - podem utilizar cortes rápidos de cena, closes no relógio, suor escorrendo etc - permite que mesmo sem o homem dizer "Meu Deus! Que horror! Vou perder o trem!", a plateia saberá que ele está atrasado.

A princípio esta ideia nos parece contrária daquela dita anteriormente sobre o espectador enunciar seu próprio sentido, porém, o espectador, que por mais sujeito, suspenso, vulnerável e entregue àquele momento, absorvido pela projeção na tela, ao assistir a cena, associará inconscientemente com uma experiência própria e, através do sistema de transferência, mergulhará no filme, inferindo subjetivamente na narrativa preconcebida. Ou seja, o cineasta montador atua como o pai ou mãe, envolvendo o bebê numa nova experiência subjetiva, e quanto mais bagagem vivida o espectador tiver, mais complexa será a interpretação do conteúdo pela forma.

O sistema de transferência causará no espectador uma inquietação moral, que poderá ser expressa somente no término da sessão, devido as convenções da sala de cinema - muito diferente daquelas que Eisenstein almejou (cinema em praça pública com o povo gritando palavras de ordem). Essa inquietação moral, quando identificada como socialmente relevante, poderá procurar espaço para debate e precisará ter força suficiente para atrair uma pequena multidão.

Hoje é muito difícil imaginar que um filme, nacional ou internacional, venha a antecipar um evento público tão intensamente que faça mobilizar a discussão popular de forma efetiva, até porque, como sabemos, o espaço físico está perdendo sua significância. Se ontem os encontros para trocar informações e ideias  aconteciam em bares, cafés, teatros, grêmios ou cinema, hoje são nas redes sociais. O preço a ser pago por isso é a efemeridade, quando não a superficialidade, das pautas. Também devemos lembrar que este novo palco virtual de discussão, além de bastante heteregôneo,  sobrecarregado de signos e, por isso, sujeito a interpretações diversificadas, com a incrível tendência de evidenciar, maquiar ou encobrir dados, manipulando a agenda ideológica com facilidade.

É possível que a força motriz de uma discussão venha de um filme, mas, mesmo que isso aconteça, ela logo tomará a forma de rede, assim como os filmes ocuparão outros suportes para prolongar seu tempo de atividade no circuito comercial. Até que os temas esvaziem-se de significantes (o que pode demorar milênios), as associações serão feitas, os estandartes serão eleitos, os grupos serão montados e, muitas vezes, logo dissolvidos, esquecidos na eternidade.

O cinema como instituição - isto é, o filme, as críticas, os festivais etc - pode (se é que não deve) denunciar, educar, mostrar, refletir e ampliar nossa realidade, e talvez por isso, o cinema pernambucano tenha se revelado como referência de produção brasileira.

Com um histórico que ganhou mais força nos anos 1990, a produção pernambucana acompanhou as possibilidades técnicas de seu tempo, utilizando-se do valor da coletividade quando abriram-se algumas portas para a produção cinematográfica nacional. Com experiência adquirida pelo contato com cineastas dos anos 1970 e 1980, com a possibilidade da formação universitária e técnica, um grupo de apaixonados por cinema em Recife, organizavam mostras regionais, escreviam críticas e pressionavam o poder público para galgar mais espaço e financiamento. O resultado desta empreitada vivida por cineastas como Lírio Ferreira, Paulo Caldas, Claudio Assis, Adelina Pontual, Marcelo Gomes entre outros, é um cinema de representação mundial. Estes cineastas conseguiram, juntos, mostrar os dois lados da moeda - a ética e a estética - de uma região fora do principal eixo brasileiro (Rio - São Paulo), muito devido ao clima de cooperação que eles captaram.

Essa geração de cineastas pernambucanos dos anos 1990, divide espaço com uma nova geração, despontando na segunda década do século XXI, que continua produzindo em grande escala. Hoje, devido as evolução tecnológica, a coletividade não se vê mais tão necessária, sendo possível até produzir um filme de orçamento baixíssimo, utilizando apenas uma câmera digital e um computador, como no caso de A misteriosa morte de Pérola (Guto Parente, 2014), curta-metragem exibido no Festival Janela de Cinema de Recife.

Esta nova forma de fazer cinema, pode ser entendida como análoga a pintura burguesa do século XIX, rejeitada por Elie Faure. O século XXI trouxe consigo novas técnicas de produção voltadas para customização de bens e abandono da massificação. E é para este lado também que observamos o desdobramento do comportamento e das relações humanas, cada vez mais individualista. Porém, o clima de colaboração ainda ressoa no cinema de Pernambuco, mesmo porque nesses casos extremos de produção individual, o cineasta ainda depende de um impulso coletivo, como festivais e mostras, para divulgar o seu trabalho.

O criador do Festival Janela é Kleber Mendonça Filho, diretor de  O Som ao redor (2013), filme que, além de marcar sua estreia em longa metragem, conseguiu agradar tanto o público, quanto a crítica e os curadores de festivais. Tendo iniciado sua carreira como jornalista especializado em cinema (assim como Truffault) passou a realizar seus próprios filmes e, há quase dez anos, organiza o festival. Referência no cinema brasileiro, por efeito de sua experiência profissional, Kléber Mendonça Filho domina as três principais instâncias da instituição (produção/crítica/festivais) e o segredo de seu êxito em O Som ao redor pode estar também em sua capacidade de formatação, fazendo um recorte da classe média recifense, a partir de seu próprio contexto de vida, e ao mesmo tempo que monta planos de tela clássicos, também cria cenários de "realismo social" (pia suja, atores sem maquiagem etc). Pensamos que seja este um exemplo da junção do espírito sintético e analítico, presente na obra de Hitchcock.

Porém dificilmente Kleber Mendonça Filho poderia empreender tal missão se a arqueologia não se prestasse para sua função. Esta construção, da qual O som ao redor faz parte, é erguida há décadas por um cinema regional que almeja sempre mais: uma linguagem que pesquisa a universalidade, a coesão e a acessibilidade. Talvez seja esta a função social do cinema hoje: se não a fagulha para a discussão e mobilização pública, com certeza, uma ferramenta útil para expressar e registrar, através da subjetividade e criatividade (que só podem ser humanas), o nosso momento histórico e desejos que escapam da rotina.
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REFERÊNCIAS

EISENSTEIN, Sergei. A Forma do Filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002

FANTINI, João Angelo. A invenção do espectador e as novas subjetividades: da Renascença ao cinema 3D, dos games ao ciberespaço". In: SANTAELLA, Lucia e HISGAIL, Fani. (org.). Semiótica Psicanalítica. São Paulo: Iluminuras, 2013

FAURE, Elie. "Da cineplastia". In: Função do cinema e outras artes. Trad. Maria de Conceição Nobre. Lisboa: Edições Texto & Grafia Ltda, 2010.

__________ "Introdução à mística do cinema". In: Função do cinema e outras artes. Trad. Maria de Conceição Nobre. Lisboa: Edições Texto & Grafia Ltda, 2010.

__________ "Vocação do cinema". In: Função do cinema e outras artes. Trad. Maria de Conceição Nobre. Lisboa: Edições Texto & Grafia Ltda, 2010.


MACHADO, Arlindo . Cinema e Arte Contemporânea. Revista Z Cultural (UFRJ), v. 8, p. 1-10, 2012. Disponível em: <http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/cinema-e-arte-contemporanea-de-arlindo-machado/>. Acesso: 03 mar, 2015.

MENDONÇA FILHO, Kleber. "Mostra Novíssimo Cinema Brasileiro 2013". [debate com Kléber Mendonça Filho, realizado em 18 de março, 2013]. Publicado  em 18/03/2014. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=iIawTiAxlzU>. Acesso: 03 mar, 2015.


TRUFFAUT, François. Hitchcock/Truffaut: entrevistas, edição definitiva. Trad. Rosa Freire d'Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

XAVIER, Ismail. "Prefácio a edição brasileira". In:TRUFFAUT, François. Hitchcock/Truffaut: entrevistas, edição definitiva. Trad. Rosa Freire d'Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

ZIZEK, Slavoj. "Alfred Hitchcock, or, The Form and its Historical Mediation". In: Everything you wanted to know about Lacan (but were afraid to ask Hitchcock). London & New York, Verso, 1992.




[1] Esta tabela é formatada a partir do texto introdutório de Slavoj Zizek para livro Everything you wanted to know about Lacan (but were afraid to ask Hitchcock) (Verso, 1992)



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