segunda-feira, 21 de outubro de 2019

O QUE O DEPENDENTE QUÍMICO DESEJA?

Texto apresentado no CICLO DE CONHECIMENTO, PALESTRAS E DEBATES na CPC/USP/Casa da Dona Yayá. 
Dependência química: origens e destinos, 27/09/2019


Nesta pesquisa tentei encontrar, na psicanálise, um fundamento comum para as diferentes formas de dependência química, entendendo este fenômeno tanto a partir das alterações identificadas por exames no cérebro como pelas evidências corporais externas, mais ou menos sutis,  seja na aparência surrada do drogado, no corpo marcado (no excesso ou na falta) pelos chamados distúrbios alimentares, no corpo tenso do jogador, etc. Cigarro, álcool, sexo, likes, compras, são alguns dos objetos que passam a conduzir o ritmo e a rotina de uma pessoa viciada, e ainda que a oferta por essas substâncias ou hábitos sedutores e potencialmente viciantes vem aumentando ao longo da história, acredito que haja alguns fatores psíquicos comuns nos dependentes químicos que nos aproxime de uma resposta etiológica para este tipo de saída subjetiva que  causa tanto prazer quanto sofrimento para muitas pessoas.

Proporcionalmente ao crescimento desta oferta, cresce também o debate a cerca do tema, sendo possível classificar diversos tipos de abordagens à questão da dependência química, dentre elas: o discurso político, abrangendo a tensão entre as práticas coletivas e as práticas individuais; o discurso moral, que tenta instaurar um modo de agir de acordo com certo conjunto de valores e costumes em um determinado contexto; o discurso médico, alertando a população sobre uma epidemia a ser combatida; o discurso ético, apontando as motivações que levam o comportamento humano a ser atravessado por vícios; ou até mesmo o discurso estético, aquele que lida com a percepção diante das consequências sociais da dependência química, acarretando em ações de higienização, como temos visto na Cracolândia, e cada uma dessas abordagens podendo desdobrar-se em diversos subtemas a serem discutidos minuciosamente. 

Já o discurso que parte dos psicanalistas irá falar da dependência a partir da relação singular desenvolvida entre o sujeito e a substância e/ou hábito, e cito aqui Jaques Alain Miller a esse respeito. “Talvez na experiência analítica nos perguntemos menos pela toxicomania que pela droga em sua relação com o sujeito” (1992, p. 16).

Ainda assim, o discurso da psicanálise, assim como os demais que citei anteriormente (politico, ético, moral, etc), pode também desdobra-se em diversos subtemas também a serem explorados em suas particularidades, como por exemplo, a loucura, a precarização do laço social, a repetição, a dependência química como sintoma das relações de poder na cultura, etc.

Eu, particularmente, me interesso aqui por fatores psíquicos comuns na  dependência química e escolhi, como ponto de partida, o verbete “adicção” do Vocabulário Básico da Psicanálise (Jacques André, 2015), que além de estar modulado por uma certa liberdade de interpretação, abrange alguns conceitos psicanalíticos chave para uma compreensão das causas e consequências de uma vida psíquica tomada, em alguma extensão, pelo vício.

ADICÇÃO

A origem da palavra evoca a escravidão, a de um corpo escravo de uma dívida: com a particularidade de o escravo e o senhor encontrarem-se ambos, dessa vez, na mesma situação complicada. Beber, comer, fumar, viajar ou alucinar sob o efeito de drogas... a lista das adicções ameaça se estender ao infinito para se confundir com a dos “hábitos mórbido”, quando já não é possível se desfazer deles, mesmo que prejudiquem ou destruam. Nada mais, na adicção, parece distinguir o desejo da mais primitiva das necessidades. Mas o que caracteriza uma necessidade, quando ela é vital é apaziguar-se uma vez satisfeita; enquanto a garrafa do alcóolico ou o tubo digestivo da bullímica são poços sem fundo. A adicção é mais uma exigênciaque uma necessidade. O primeiro sentido de “exigir” é fiscal: reivindicar imperativamente aquilo que é devido. A exigência reivindica muito; a satisfação, em vez de apaziguá-la, a faz crescer. Impossível de contentar, tirânica, a exigência faz com que os desejos se tornem ordens. Quem é que dá a ordem? O corpo, à primeira vista, à imagem da célula na impaciência de sua dose de nicotina. Mas no fundo do inconsciente, o issoé o verdadeiro senhor, quer transpire de angústia, quer transborde de excitação. Talvez a mais primordial fonte de todas as adicções seja a dependência do outro, que torna sua presença tão indispensável quanto sempre decepcionante, e que faz repetir ao infinito: “Você me ama? Você me ama?...” 

Destaco a seguir os conceitos escolhidos para, como pretendi no princípio desta fala, elucidar alguns fatores psíquicos comuns nos dependentes químicos que nos aproxime de uma resposta etiológica para este tipo de saída subjetiva, causa de prazer e sofrimento para muitas pessoas. São eles: Desejo, necessidade primitiva, satisfação, inconsciente, Outro, e Isso. A estes, adiciono conceito de pulsão, entendendo ser imprescindível para a formulação que virá a seguir:

O que o dependente químico deseja? Para Freud o desejoé inconsciente, fundado a partir de uma sensação primitiva que, por sua vez, constrói a memória perceptiva da satisfação a qual um bebê é exposto diante de uma necessidade fisiológica, ou seja, diante de uma tensão interna e orgânica possível de ser satisfeita através de um objeto real, como por exemplo o alimento para a fome. O desejo, desejo inconsciente, produto de traço psiquico, se realiza apenas simbolicamente em sonhos, sintomas, atos falhos e representações, já que aquela primeira experiência de satisfação vivida pelo bebê nunca se repetirá. Além de marcar o inconsciente com o que depois, Lacan, a partir da Linguística chamará de Significante, tais necessidades primitivasfazem os contornos do corpo da criança produzindo zonas erógenas e, portanto, constituindo a sexualidade infantil. Desta forma, o toque, o olhar e a voz de quem cuida do bebê, terão suma importância na constituição do aparelho psíquico e consequente organização pulsional deste, sendo a pulsão uma força que liga o corpo a psique, impulsionando associações de representações inconscientes, cuja meta é  restabelecer um estado do corpo que fora perturbado por uma tensão como a dor ou o medo. Mais a frente voltaremos a falar sobre o funcionamento da pulsão e sua relação com o Isso, que como observou o autor do verbete, é o “verdadeiro senhor” do inconsciente.

Tendo exposto brevemente o que entendemos por desejo, volto a perguntar o que deseja o dependente químico? No início do verbete citado anteriormente, o autor, após descrever o adicto como um corpo escravo de uma dívida, faz a enigmática afirmação de que, no caso da adicção, há uma particularidade: o escravo e o senhor encontram-se na mesma situação. O que isso quer dizer? Está aqui uma alusão à dialética do Senhor/Escravo, desenvolvida pelo filósofo Hegel, no livro a Fenomenologia do Espírito, para entender a formação da consciência e o desejo humano como desejo de reconhecimento. Nesta dialética, o escravo e o senhor funcionam como elementos alegóricos, figuras assimétricas que existem separados e dependentes do reconhecimento um do outro. O escravo, abdicando de sua liberdade para poder viver, deixa de ser entidade autônoma para ser objeto de trabalho de seu amo, o senhor, que por sua vez, abdica de sua capacidade de criação para poder exercer sua liberdade, dependendo do escravo para sua própria sobrevivência (pois não trabalha). Assim, nesta dialética ambos se posicionam separadamente de maneira a ter consciência de suas vidas e desejar o reconhecimento de seus lugares/valores em relação ao outro para poderem continuar a existir. Lacan utiliza-se desta parábola (descrita superficialmente aqui) para designar a operação de alienação que funda o sujeito desejante, aquele alienado no desejo de reconhecimento do outro. Afinal, se para Freud, o desejo é esta marca primitiva impressa pelo cuidado que vem está fora, para Lacan, o desejo é desejo do desejo do outro. 

Assim entendermos o que significa a afirmação de que o dependente químico encontra-se na posição consolidada de Senhor/Escravo: ele é ao mesmo tempo, e no mesmo lugar, prisioneiro e carcereiro, vivendo a totalidade da experiência, em um ciclo isolado, onde o desejo se aproxima de forma vertiginosa da necessidade, remanescendo pouco espaço para elaboração do outras formas de realização do desejo-marca-de-satisfação. 

Podemos dizer que esta aproximação entre desejo e necessidade acontece porque a adicção subverte a pluralidade pulsional em troca deste objeto imperioso, conduzindo o dependente àquela experiência imediata de totalidade, onipotência e satisfação que porém, como bem sabemos, é efêmera e limitante. Esta experiência de totalidade é a mais próxima que o sujeito consegue reviver daquela satisfação primitiva, anterior a formação do Ego.

“Subverter a pluralidade pulsional” significa aqui que a pulsão deixa de servir como uma força afim de recrutar recursos psíquicos inconscientes diversos, capaz de sublimar e substituir as faltas psíquicas, para ligar-se sempre ao mesmo objeto, no caso a droga, o cigarro, o jogo.. Sua fonte de energia, a libido, é originada pelo Isso (Id), a instância que ignora a moral, a razão, a contradição e até mesmo o tempo. Lá vivem os desejos, incluindo os proibidos, e é para lá que a pulsão volta, incapaz de simbolizar outras formas satisfação: “Isso é mais forte que eu”, “Isso me escapou”. O objeto (substância ou hábito) fica muito maior que o sujeito e o dependente químico, por sua vez não é capaz de desejar mais nada além de obedecer a exigência repetitiva e intolerante do Isso. Ou seja, algo deseja por ele, nele.  


BIBLIOGRAFIA

ANDRÉ, Jacques. Vocabulário Básico da Psicanálise. Trad. Marcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: editoranWMF Martins Fontes, 2015.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 1992.

LACAN, Jacques. (1964) O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985. 

MILLER, Jacques Alain. “Para una investigación sobre el goce autoerótico”. In: SINATRA, Ernesto; SILLITTI, Daniel; TARRAB, Mauricio (comp). Sujeto, Goce y Modernidade : Fundamentos de la Clínica. Buenos Aires: Atuel-TyA, 1992. vol. I.