Trabalho apresentado para o
Simpósio da Rede de Atendimento do CEP (Centro de Estudos Psicanalíticos)
Agosto/2018
A triagem é um dispositivo clínico cujo uma das finalidades é organizar o pedido, que chega a partir da proposta social do CEP, de atender a comunidade da região metropolitana de São Paulo interessada (direta ou indiretamente) em iniciar um tratamento de escuta terapêutica, acolhendo também as dificuldades financeiras e geográficas, num contexto onde confronta-se o signo do elitismo, historicamente, designado à psicanálise.
Este trabalho pretende
refletir sobre os impasses que norteiam algumas decisões em triagem de barrar o
encaminhamento de um paciente para a Rede de Atendimento do CEP, levando em
consideração a implicação do sujeito, que supomos necessária no tratamento
psicanalítico, em uma intervenção que se pretende rápida e eficaz - na
contramão do que normalmente presenciamos na clínica -, apoiada pelas reuniões de triadores, com o
mesmo cuidado que escutamos o desejo do sujeito já em análise.
Ao refletir sobre este tipo
de intervenção, suscitamos três questões: Qual a origem da triagem na clínica?
Como diferenciar triagem e primeiras entrevistas? E finalmente, quais signos
devemos procurar que podem enunciar a implicação e o desejo para análise?
A palavra triagem vem do francês triage (verbo trier), que significa escolher, selecionar, separar. Deriva do
latim tardio trītāre, (moer), cujo radical é trītum (esmagar,
trilhar, pisar, debulhar), que por sua vez é cognato de tritĭcum (trigo). (HOUAISS,
2018)
De acordo com o
artigo "Triagem na Medicina" (ISERSON e MOSKOP, 2007), hoje o termo
triagem "é, normalmente, usado para referir a distribuição de recursos
médicos para pacientes" e nasceu durante as guerras do século 18, afim de
sistematizar o cuidado a soldados doentes e feridos. Antes disso, os soldados
recebiam pouca ou nenhuma assistência médica no campo de batalha, dependendo do
socorro dos colegas caso sofressem um ferimento.
Ao longo do tempo,
as triagens ganharam um caráter administrativo, uma forma de otimizar os
recursos hospitalares, classificando os casos de acordo com especialidades
médicas, urgência e pré-avaliando o paciente (medir a pressão, peso,
temperatura e outros procedimentos básicos) para que o médico foque o seu tempo
em diagnósticos e intervenções.
A triagem também
faz parte dos procedimentos de primeiros socorros em casos de grandes
desastres, onde as vítimas são classificadas e atendidas de acordo com a
gravidade de suas lesões. Por exemplo, (1) Aqueles
a quem não há auxílio possível; (2) Os feridos que necessitem de transporte
imediato; (3) Os feridos cujo transporte possa ser adiado; (4) Aqueles com
ferimentos leves, que não necessitem de cuidados urgentes.
Fora do âmbito
médico, encontramos o termo triagem, sendo usado para separar e eliminar
documentos de arquivos antigos ou sobrecarregados, ou até mesmo para seleção de
atletas para uma equipe.
Na psicologia,
o processo de triagem é bastante comum nas clínicas-escola, e "tem os
objetivos de coletar dados, levantar hipóteses diagnósticas e verificar qual
tipo de atendimento a pessoa necessita, a fim de encaminhá-la ao tratamento
adequado possível" (HERZBERG e CHAMMAS, 2009). Este momento também é
destinado para expor a proposta da instituição que oferece o atendimento, assim
como esclarecer dúvidas objetivas a cerca do tratamento e, no caso do CEP,
nunca é feita pelo analista que direcionará o tratamento.
Este viés
burocrático/gerencial da triagem é o que, principalmente, a diferencia das
entrevistas preliminares, quando o encontro já se caminha para uma relação
transferencial e construção de demanda. Lembrando que o termo "entrevistas
preliminares" (1955-1956) foi usado por Lacan, enquanto Freud descreveu
este momento, em seu texto "Sobre o Início de Tratamento" (1913),
como um "início", "experiência" e "sondagem". Nele,
Freud pontua algumas justificativas para este tipo de precaução prévia ao
tratamento como, por exemplo, poupar "ao paciente a impressão aflitiva de
uma tentativa de cura que falhou" (p.164), estabelecer limites em relação
ao tempo das sessões, fixar os honorários do analista, instituir regras sobre
faltas e escutar o tipo de afecção do paciente para decidir se o caso é
elegível para análise. Vale ressaltar o caráter de
"recomendação" proposto por
Freud:
Penso estar sendo prudente,
contudo, em chamar estas regras de ‘recomendações’ e não reivindicar qualquer
aceitação incondicional para elas. A extraordinária diversidade das
constelações psíquicas envolvidas, a plasticidade de todos os processos mentais
e a riqueza dos fatores determinantes opõem-se a qualquer mecanização da
técnica; e ocasionam que um curso de ação que, via de regra, é justificado
possa, às vezes, mostrar-se ineficaz, enquanto outro que habitualmente é
errôneo possa, de vez em quando, conduzir ao fim desejado. Estas
circunstâncias, contudo, não nos impedem de estabelecer para o médico um
procedimento que, em média, é eficaz. (ibid)
No caso da
Rede de Atendimento do CEP, o triador procura garantir que o candidato ao
tratamento saiba que deve estar disposto a investir com algum valor, de acordo
com sua possibilidade, e dispor de alguma flexibilização na sua rotina para
comparecer às sessões. Porém não cabe a ele estabelecer ou indicar a quantia do
tempo e dinheiro. Essas são condições objetivas de encaminhamento e, algumas
vezes, não são acatadas por candidatos que procuram atendimento gratuito ou com
horários muito específicos.
Os dois anos como triadora do
CEP me permitiram a oportunidade de escutar uma variedade próxima de 500
sujeitos, em sua grande maioria encaminhados para os analistas. No entanto, o
triador depara-se, frequentemente, com casos que nos parecem pedidos de outra
ordem, não de análise. Para essas pessoas a terapia é condição para outro fim,
que não a retificação subjetiva. Nesses casos usamos a expressão "análise por
decreto", pois não escutamos o desejo de análise do candidato, mas um
decreto proveniente de outros lugares. Algumas dessas situações são
apresentadas repetidamente nas construções de caso das reuniões de triadores e
podem ser, por exemplo, aqueles que nos procuram pois foram encaminhados por
outros dispositivos de saúde para complementar um tratamento psiquiátrico; psicólogos e estudantes de psicologia que procuram
a terapia "porque é importante" nas suas práticas profissionais;
pessoas cujos laços familiares estão ameaçados caso não "se tratem";
etc. São casos que, muitas vezes, resistem a entrar em contato com o seu
sofrimento ou não estão implicados nele.
Um caso:
Uma senhora de 60 anos agenda
sua triagem. No caminho entre o metrô e o CEP ela cai e machuca o joelho. Chega
atrasada e sangrando. O porteiro do CEP a socorre com antisséptico e atadura,
enquanto eu, tomada pelo ato, decido atende-la no andar térreo para poupa-la da
escada. "Pisei em falso várias vezes", ela diz, e apesar da
dificuldade de locomoção se esforçou para chegar.
Encaminhada pelo neurologista
que trata o Parkinson que a comete ainda levemente as mãos, já está em
tratamento com fisioterapeuta, fonoaudiólogo e psicólogo, mas acredita que as
conversas com o psicólogo a levam a nada e agora procura alguém que a ajude sem
toda aquela conversa, uma terapia comportamental. "Não quero nada que tenha
a ver com Freud", diz. Explico, então, do se trata o CEP e os analistas da
rede. Ela surpreende-se e diz que talvez tenha "algo a resolver com Freud".
Além do Parkinson, sofre
também de diabetes e artrite reumatoide, doenças estas que, conforme ela me
contou, de acordo com um famoso médium do
rádio, estão relacionadas a rigidez nas relações e falta de doçura na vida,
respectivamente. "Fui muito dura comigo e com os outros, por isso o
endurecimento das juntas". Sua mãe morreu de câncer no pulmão, o que, de
acordo com o médium é reflexo de tristeza. Na infância foi espancada pela mãe, depois
abusada pelo ex-marido alcoólatra e os filhos só dão desgosto. Mas ela perdoa a
todos (apesar de manter uma distância segura) e agradece várias vezes a minha
compreensão do seu atraso, repetindo "Deus a abençoe, minha filha". Digo
a ela que converse com seu psicólogo sobre sua vontade de iniciar outro
tratamento e marque um retorno para decidirmos sobre seu encaminhamento. Ela
não retornou.
O motivo pelo qual eu escolhi
por não encaminha-la, pelo menos naquele dia, residia no percebi como um acting-out,
velando por demais minha possibilidade de escuta-la: a mobilização causada na
sala de espera do CEP, o encaminhamento do médico, a repulsa a Freud e
subsequente identificação, o sofrimento tão concretamente somatizado, a
resiliência ao divino e a sobreposição de terapias. Será que ela estava sendo
levada pela impulsividade? Seria prudente provocar uma pausa, um obstáculo,
entre sua chegada ao CEP e o seu encaminhamento ao analista?
Segundo Lacan, o ato é sempre um ato significante, que permite ao
sujeito transformar-se a posteriori. O acting-out, ao contrário, não é um ato,
mas uma demanda de simbolização que se dirige a um outro. É um disparate
destinado a evitar a angústia. (RODINESCO e PLON, 1998, p.6)
Talvez pareça simples, porém
muitas vezes o candidato tem dificuldade tanto em nomear o sofrimento, como
atravessar a resistência para investir. Nesses momentos o triador pode ser capturado
a acreditar que não há desejo de análise, porém perguntamos ao candidato: "Conte-me
sua história. O que te trouxe aqui?", "Quais são suas expectativas
com análise?" É possível que estes depoimentos tragam uma pista para um
conflito neurótico e, então, fazemos nosso "apontamento", uma espécie
de tradução, ou se preferirmos, uma nomeação do sentido do sofrimento. "O
que você pretende fazer com isso?"
Seria muita pretensão do analista querer que o candidato tenha essa
resposta, afinal é a impotência, o não saber, que muitas vezes o leva ao pedido
de socorro, porém tentamos (e essa é uma das funções da triagem) escutar e
apostar se o sujeito está disposto a renunciar ao seu gozo afim de ter outros ganhos menos penosos para
sua subjetividade.
Bibliografia
FREUD, S. "Sobre
o início do tratamento" (Novas recomendações sobre a técnica da
psicanálise I) (1913). In: O caso Schreber, artigos sobre técnica e outros
trabalhos (1911-1913). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
HERZBERG, E., & CHAMMAS D. "Triagem estendida:
serviço oferecido por uma clínica-escola de Psicologia" In: Revista Paidéia, vol.19, n.42, pp.107-114. Ribeirão Preto, 2009.
HOUAISS, A. "Triagem". Dicionario Online
Houaiss. Disponível em: <https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-3/html/index.php#2>.
Acesso: 02 ago, 2018.
ISERSON,
KV, MOSKOP,
JC. "Triage in medicine: Concept, history, and types". In: Annals
of Emergency Medicine. vol. 49, p. 275–281. The American College of Emergency Physicians, 2007.
LACAN, J. "De uma questão preliminar a todo tratamento
possível das psicoses" (1955-1956). In: Escritos. Tradução de Vera
Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
ROUDINESCO E. & PLON M. "Acting-Out".
Dicionário de Pisicanálise. Trad. Vera Ribeiro, Lucy Magalhães; supervisão da
edição brasileira Marco Antônio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
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