segunda-feira, 20 de junho de 2016

SOBRE AS ETAPAS DA TÉCNICA PSICANALÍTICA


O estilo é o homem a quem eu me dirijo.
LACAN
1. INTRODUÇÃO

"Sobre a técnica psicanalítica" é o tema do ciclo V da formação no CEP (Centro de Estudos Psicanalíticos) e parte do título deste trabalho. Tema - desencadeado da lógica didática do curso - que parece ensejar os alicerces principais do que costumamos chamar de setting analítico.

Sobre o que contempla a lógica didática desse ciclo (se é que existe uma, assim como eu credito),  pude ler, principalmente, os seguintes tópicos:
·      primeiras entrevistas
·      transferência
·      elaboração
·      interpretação

Estes tópicos viabilizaram aulas marcadas pelo empenho dos professores e pela participação dos alunos mostrando que, entre muitas outras coisas, apesar de a técnica não se esgotar nos textos, o retorno a esses textos - fundamentais - são cruciais para o analista não se perder, principalmente no início de sua prática, em métodos distantes por demais da psicanálise, ocorrendo no risco de prejudicar um tratamento.

Dito isso, pretendo elucubrar acerca do estou entendendo por "etapas da técnica psicanalítica" pois, a partir da minha prática, percebo que essa "técnica", de fato, deve percorrer alguns pontos imprescindíveis, porém não parecem, necessariamente, articularem-se como técnica engessada, no sentido "mecânico" do termo. Para tanto, utilizarei, como apoio discursivo, três psicanalistas lacanianos contemporâneos,  J.-D. Nasio, Christian Dunker e Antônio Quinet, por ser esta a orientação que tenho me dedicado mais.

2. DO ELEMENTO SURPRESA NO PERCURSO: OS CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA PSICANÁLISE

Há pouco mais de dois anos, lembro-me como ouvi, com espanto, desde Ernesto Dudovitch, na minha primeiro aula no CEP, que os fundamentos principais da psicanálise eram no máximo seis: Inconsciente, Transferência, Resistência, Pulsões.... "e talvez mais um ou dois".... De todos, o único que eu achava que conhecia era o Inconsciente. Até então, para mim, psicanálise consistia em Ego, Id, Superego e Mal-Estar na Civilização.

3. DAS ETAPAS DA PSICANÁLISE

Em uma aula para o Instituto de Psicologia da USP, o professor Christian Dunker (2014) demonstra como Jacques Lacan tentou formalizar[1] o que acontece durante um tratamento psicanalítico, utilizando como mapa topológico a garrafa de Klein. Este modelo visava sintetizar três operações fundamentais envolvidas no percurso de uma análise, para além do que Dunker chama de "momentos diacrônicos", ou seja, entrevistas preliminares, entrada em análise, retificação da posição do sujeito em relação a realidade, implicação subjetiva, transferência, interpretação, meio do tratamento e final do tratamento.

Muito resumidamente, essas operações passam por três movimentos,  incorporando neles, três modelos topológicos:  

1º movimento topológico da garrafa de Klein: a identificação. Parte-se de uma superfície plana transformada em forma de toro (fig. 2), formalizando, a partir de uma necessidade inscrita, a relação entre demanda e desejo.

fig. 1 banda de Moebius
2º movimento topológico da garrafa de Klein: o sujeito. Assim como no toro, parte-se de uma superfície plana, porém torcendo-a, de forma assimétrica, para transforma-la em uma banda de Moebius; simbolizando o sujeito como intervalo (0;1); lógica do linguista Fregue (o sujeito é algo que está hora como
0, hora como 1).


3º movimento topológico: a desaparição do sujeito. A partir de um tubo forma-se uma garrafa de Klein que, pressupondo a plasticidade própria geometria, possibilitará a operação da "dupla perfuração"; em termos de tratamento analítico equivale a um atravessamento do outro sem cortá-lo. Seria já um momento de intervenção, onde o enígma está posto para o sujeito.

fig 2:  acima, o toro e abaixo, a garrafa de Klein
Na última parte dessa aula, Dunker expõe a ideia de "estrutura do mito", desenvolvida por Lévi-Strauss, para entender e formular os mitos universais; como estes nos influenciam até hoje: o seu valor semântico, o seu saber implícito, seu evento histórico, e o tipo de trabalho coletivo que eles nos facultam a fazer.

 Na fórmula de Lévi-Strauss[2], após o mito passar pelos três estágios apresentados acima (identificação, sujeito e desaparecimento de sujeito) e ficar preso na ambiguidade do terceiro movimento, sem evoluir em sua dialética do desejo, ele finalmente se converte, faz um novo sentido, uma reparação, uma ressignificação.

Essa topologia (garrafa de Klein) e formulação (estrutura do mito) nos levam a ideia de transformação e movimento. A superfície plana dá lugar a um toro, a uma banda de Moebius; depois temos a plasticidade da garrafa de Klein. São estruturas relacionadas.

Transformação é uma palavra chave na prática psicanalítica, e Dunker apresenta um grupo de psicanalistas de Boston, nos Estados Unidos, que pesquisaram como entender  a transformação psicodinâmica na clínica, publicando o resultado no livro Change in Psychotherapy: A Unifying Paradigm (2010). Para a pesquisa, o grupo isolou quatro dimensões da transformação operada pela psicanálise. São elas:

1. Transformações no horizonte semântico: sentido, significações, efeitos de discurso. "Como leio o mundo, como leio a mim, como leio-nos"

2. Construção de padrões de construções mútuas: saber implícitos. O que é uma relação. Sentidos compartilhados. Diz respeito a uma espécie de acumulação feito durante o tratamento. Um consenso, mesmo que não nomeado.

3. Now Moments: Momentos em que a relação analítica é experimentada como um acontecimento, um encontro. Ela é marcada, pontuada por eventos que destroem a estrutura da transferência e reformulam completamente o suposto saber, constituindo um momento de indeterminação. Tudo muda.

4. Reconstrução/Reparação: luto encadeado, que refaz outros lutos. Sejam eles narcísicos, amorosos, edipianos, relacionais ou não.

Esta é uma ideia que se relaciona com os processos que são apresentados com a garrafa de Klein. Os Now Moments são os momentos de ruptura de identificação, de suspenção da identificação, até o ponto limite em que o now moment é o over moment, ou seja, em que o analista sai da posição de objeto que articula a demanda com a transferência. Esse seria um dos temas mais constantes no que diz respeito a noção de final de análise na tradição lacaniana. "O que a gente quer fazer?" O que a gente quer fazer é um conjunto de transformações sobre transformações, de metatransformações (DUNKER, 51:00, 2014)

Outro psicanalista que fala sobre o etapas da técnica psicanalítica é J.-D. Nasio, em seu livro Como se trabalha um analista. Diferente de Christian Dunker, que apresentou uma topologia de Lacan, uma fórmula de Lévi-Strauss e uma pesquisa do grupo de Boston, Nasio fala em nome próprio, usando sua clínica como exemplo e fazendo um passo-a-passo de como receber e analisar um paciente no setting analítico. Ele diz sobre a "técnica":

Ela não é apenas um fundo estável que se decanta em cada analista, a cada dia, historicamente há oitenta anos, isto é, desde o nascimento da psicanálise. O divã, a poltrona, a regra fundamental, todos os elementos característicos do processo analítico se tornaram, com o tempo, uma espécie de constante invariável com a qual se identificou o analista (NASIO, p. 10, 1999)

Logo no início do seu livro, uma transcrição de um seminário do final dos anos 1980, ele faz um resumo intitulado "As diferentes fases do tratamento: retificação subjetiva, sugestão, neurose de transferência e interpretação".

A primeira fase, da retificação subjetiva, ocorre na primeira ou primeiras entrevistas quando o analista deve observar a relação do paciente (o Eu) com seus sintomas e distinguir a demanda implícita. Nasio diz que na sua clínica ele tem o hábito de restituir ao paciente a teoria que ele tem sobre o seu sofrimento.

A segunda fase, quando inicia o tratamento, da sugestão, é quando Nasio coloca em prática os dois Atos psicanalíticos. Primeiro, explicitando sua relação ética com a psicanálise e segundo enunciando a regra fundamental.

A terceira fase, da neurose de transferência, é caracterizada pela emergência dos recalques e dos significantes ligados às pulsões. É neste momento fecundo que o analista deve silenciar para fazer surgir o Grande-Outro.

A quarta fase, da interpretação, é a última. É nela onde o analista interpreta a transferência.

Nasio diz, no entanto, que essas fases não são necessariamente separadas, mas podem se sobrepor umas nas outras e que novos sintomas se formam na medida que outros desaparecem ou não.

O que podemos destacar até aqui é que apesar de nomeadas e apresentadas de formas distintas pelas diversas experiências que vimos, me parece mesmo haver um fundo "constante invariável" nessas etapas da técnica analítica. O que não podemos responder ainda é o que seria esse "constante invariável", que pode aparecer até mesmo na repetição do número das etapas dos processos - até então sempre quatro - presente também no título do próximo e último analista utilizado como referência para este texto, Antônio Quinet.

Em seu livro As 4+1 condições para psicanálise, Quinet, interroga as "normas" da psicanálise, tomando como base o texto de Freud, "O início do tratamento". O autor entende o tratamento não pode estar submetido a um contrato regulamentado por um Outro (exemplo, o modus operandi do IPA), já que o sujeito na análise é levado, justamente, a se confrontar com a falta do Outro. 

[...] Lacan introduz o conceito de ato analítico, retirando a psicanálise do âmbito das regras para situá-la na esfera da ética. É o analista com o seu ato que dá existência ao inconsciente, promovendo a psicanálise no particular de cada caso (QUINET, p.8, 2009)

Apesar de percorrer o desenrolar da análise, Quinet discute o 4+1 não como etapas, mas sim como condições para haver tratamento, a partir de um conjunto de dispositivos entendidos pelos freudianos como pressupostos de um setting. São elas, as quatro condições: tratamento de ensaio, uso do divã, a questão do tempo e a questão do dinheiro. Quanto ao +1, seria o elemento que mantém as quatro condições unidas como uma, em um sentido único. Nas palavras de Quinet,

O +1 é o elemento que pertence ao conjunto, tendo a função de constituí-lo e de fazê-lo funcionar. Pode-se também  ecvocar aqui a fórmulaborromeana do cartel: x + 1, em que ao se retirar o +1 do nó borromeano se obtém a individualização completa dos elementos. (QUINET, p. 11, 2009)

Para ele, outro ponto importante a ser considerado no ato analítico é que as condições não devem ser eregidas artificialmente em regras, pois a única regra da psicanálise está do lado do paciente: a associação livre.

Assim, Quinet parece imanente ao caráter irredutível e singular do Ato analítico, sendo até mesmo, talvez, impossibilitado de colocar em tópicos, etapas quase herméticas de uma técnica dita psicanalítica, como o fez Christian Dunker para explicar a garrafa de Kein, o Grupo de Boston e J.-D. Nasio.

4. DO QUE RETORNA PARA MINHA CLÍNICA

Mais uma vez constatamos a diversidade no discurso teórico/clínico analítico advindo de lugares razoavelmente próximos. Se algumas falas se cruzam, outras pesam em lugares opostos. Por exemplo, quando leio Nasio fico com a impressão que a direção do tratamento pesa mais para o analista, ao contrário da impressão que fico de Quinet.

Ao olhar para minha clínica, que tem passando por experiências no consultório particular, no hospital, em ONGs, e nos atendimentos pela rede do CEP, posso perceber as singularidades dos casos e por isso escolhi como epígrafe deste texto: "O estilo é o homem a quem me dirijo".

O retorno da fala do paciente será o lugar do meu inconsciente como analista. A "escolha" do estilo, a partir da qual a linguagem sempre aparece, na medida em que permito minha escuta flutuar. Desde este ato avanço pela ética: não converso com sintomas, o que retorna para mim, levo para supervisão, para análise, construo a demanda com o paciente sem ter medo de transparecer um não saber, confio em um suposto saber, estudo.

E assim, as etapas da técnica da psicanalítica trazem as surpresas não apenas para o analisando, mas também para o analista, e talvez esta seja a nossa única certeza. Construir etapas é nossa tarefa. A desconstrução é nossa sorte.


REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Mauro William Barbosa de. "A fórmula canônica do mito". (Versao corrigida do texto publicado originalmente  em Queiroz, Ruben C. de & Nobre, Renarde F. (eds.).  Lévi-Strauss. Leituras Brasileiras.  Belo Horizonte,  Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 2008, pp. 147-182. Esta versão corresponde ao texto em italiano, no prelo e corrige erros da edição brasileira.). Disponível em: < https://mwba.files.wordpress.com/2010/03/almeida-2009-a-formula-canonica-do-mito-_corrigida.pdf>. Acesso: 18/05/2016.

DUNKER, Christian Ingo Lenz. Seminário sobre a Obra de Lacan: A Garrafa de Klein e a dialética entre demanda e desejo na análise. Transmitido ao vivo em 10 de abrIL de 2014 pelo Instituto de Psicologia da USP. Disponível em: < TclqvdEC8xg>. Acesso:  18/05/2016.


NASIO, J. -D. Como Trabalha um Psicanalista? tradução: Lucy Magalhães; revisão técnica Marco Antônio Coutinho Jorge.  Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

QUINET, Antonio. As 4+1 condições da análise. 12. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

The Boston Change Progress Study Group. Change in PSYCHOTHERAPY: A unifying paradigm. W.W. Norton & Company Publisher, 2010.


[1] na aula 11 (março de 1965) do Seminário 12, "Problemas Cruciais da Psicanálise". (não publicado no Brasil)
[2] Podemos usar como exemplo uma das variantes algébricas  similares de Levi-Strauss, apresentadas por Dunker, "O mito de Édipo com a fórmula canônica", onde, Fx(a) ≈ Fy(a) :: Fy(b) ≈Fb-1(x)
A fórmula pode ser lida assim:
a superestimação de relações (de parentesco) Fx(a) está para a subestimação de relações de parentesco Fy(a) assim como a negação de relações com monstros autóctones Fy(b) está para o caráter-autóctone-invertido (caráter anti-autóctone) da função exagero Fb-1(x).
(ALMEIDA, 2008)



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