quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

QUANTO VALE A FOTO?




COM SORRISOS E OLHAR COMPENETRADO, A ARTISTA PLÁSTICA ROSÂNGELA RENNÓ NÃO DISFARÇAVA A SATISFAÇÃO DE VER OS LOTES DA SUA OBRA SENDO LEILOADOS PRO PREÇOS QUE VARIAVAM DE R$ 5 MIL A R$ 50 MIL. ESSE FOI O GRAND FINALE DE SUA PARTICIPAÇÃO NA 29ª BIENAL DE SÃO PAULO ONDE EXPÔS A OBRA "MENOS-VALIA [LEILÃO]".

 O FINAL FELIZ DA OBRA DE ROSÂNGELA RENNÓ 

Com  uma instalação constiuída por 73 peças - sendo elas retratos, álbuns, câmeras e equipamentos de projeção de imagens obsoletos, todos garimpados em mercados de pulga - a artista propôs transfigurar os objetos e a imagens originalmente sem valor estético em obras de arte, por meio da apropriação. 

A idéia inicial de trazer um objeto comum para a instituição da arte pode não ser original: Duchamp fez a "Roda de Bicicleta", em 1912 e depois, a "Fonte", em 1917; ele criava, então, o conceito de ready made: um objeto pronto, sem conotação artística que pode passar a ser visto sob outro ponto de vista, e assim, transformar o seu significado. 


Depois, em 1964, era a vez de Andy Warhol, em sua primeira exibição de esculturas, apresentar as caixas de sabão em pó Brillo na Stable Gallery de Nova York, onde o artista simulou um mercado com réplicas dos itens que os americanos colocavam em suas sacolas de compras domésticas. Porém aqui, a intenção era outra da de Duchump: Wahol queria mostrar aos olhos poucos atentos como a propaganda feita nas prateleiras dos mercados poderiam ser vistas sob a aura das artes plásticas.

Já na fotografia, a apropriação de imagens teve destaque pela primeira vez durante o período dadaísta em Berlim quando, principalmente 5 artistas, entre eles John Heartfield, Hannah Höch, Johannes Baader, Raoul Hausmann, e George Grosz desenvolveram a técnica de fotomontagem. As fotos, recortadas de propagandas em mídias de massa e coladas de forma a causar estranhamento das proporções e contextos, formando criticas sociais.

No Brasil a arte por apropriação de imagens começou com Jorge Lima, um poeta e artista plástico (e médico) que, seguindo a escola dadaísta, nos anos 1940 fez algumas séries de fotomontagem.

Já Rosângela Rennó, trabalha com apropriação de imagens de outra forma. Ela não recorta revistas e tampouco faz fotomontagem. Ela procura fotografias em feiras e arquivos abandonados, e dá a elas outro significado. A ideia é trabalhar com memórias perdidas, e de acordo com Charles Merewether que escreveu sobre o trabalho da artista, "A experiência de ver é, por si própria, sujeita à força do esquecimento, e a tarefa de ler rastros é equivalente a apaziguar-se com o passado". [1] E assim ela o fez desde os anos 1990 quando usou fotografias de pessoas que trabalharam nas obras de construção de Brasília ("Revendo Brasília", 1994) e com fotografias de arquivos abandonados da antiga Penitenciária do Carandirú ("Série Vulgo", 1998).

A obra "menos-valia [leilão]" estava exposta no mezanino da Bienal entre duas paredes. Ao centro ficava um balcão com porta-retratos, luminárias, e todo o tipo de parafernália fotográfica antiga, e pendurados nas duas paredes dos lados ficavam molduras de vários tamanhos: algumas contendo álbuns de fotografia antigos, outras retratos, e outras as imagens acompanhadas da máquina fotográfica que as produziu. Havia também um espelho de corpo inteiro com resquícios de imagens bastante envelhicidas impressas nele.

A princípio, as pessoas que visitassem a Bienal poderiam manipular as peças, porém logo se viu que isso não seria uma boa ideia, tendo em vista que a exposição duraria mais de dois meses, e as peças acabariam sendo danificadas; o que colocaria em risco o objetivo final do projeto que era leiloar cada item, separadamente, e assim atribuir valor de arte.

No dia 9 de dezembro, data marcada para o leilão, Rosângela Rennó esteve na Bienal para apresentar as peças e participar como observadora do leilão. Cerca de 50 pessoas se aglomeraram em volta da instalação, para ouvir artista que com a voz não muito alta, competia espaço sonoro com uma apresentação de Hip Hop acontecendo simultaneamente a cerca de 200 metros dali, na obra "O Outro, O Mesmo"  de Carlos Teixeira. Para acompanhar a apresentação ela distribuiu algumas folhas de papel onde estava descrito cada peça da exposição com o número do lote, o preço que ela pagou para produzir tal peça (por exemplo, valor pago no mercado de pulgas), e o lance inicial que o lote teria no leilão. Cada lote, além do número, tinha um nome, que ficavam numa etiqueta plástica anexada ao item.

Confortavelmente vestida numa saia escura, blusa de crochê, sapato de couro e um colar longo, Rosângela Rennó começou a falar sobre o que se tratava sua obra. Falou sobre a importância da memória e de alguns de seus trabalhos do passado. Seu tom era de quem, obviamente, respeitava cada item ali disposto, e dessa forma, mesmo que inconscientemente, atribuía seriedade e, consequentemente, valor à obra.

Após a introdução geral, falou mais sobre onde e como adquiriu aquelas peças. Contou que nem todos os aparelhos haviam sido comprados em pleno funcionamento, mas que ela havia feito os devidos reparos e que, agora, estavam em perfeito estado. Falou das particularidades de algumas peças como o "lote 16 - Apagamento por Empilhamento": uma peça constituída por 5 porta-retratos, alguns retangulares e outros ovais colados um em cima do outro. Conforme a artista ela havia encontrado essas peças, no Mercado de Rua da Cidade do México, dispostas exatamente como a víamos ali: sobrepostas. Nas palavras de Rosângela Rennó, "Era uma peça pronta. O meu único trabalho foi limpar e folhear as molduras a ouro opara dar uma aparência melhor". O lote 12, também conhecido pelo nome "Mickey Max" era uma escultura feita a partir de um aparelho de Viewmaster 3D em formato da cabeça do Mickey que havia sido, originalmente, distribuído na  inauguração da Euro Disney. Essa peça ela encontrou na feira da Rua Tristán Narvaja de Montevidéu.

Quanto aos equipamentos mais exóticos, ela mostrou como eles funcionavam e contou um pouco da história deles. O "lote 15 - Estereobinóculo Pornô", uma peça do século 19 feita a partir de um binóculo que podia se ver uma imagem 3D ao fundo,  era muito comum na casa das pessoas daquela época.
Fui ao leilão sabendo que os lances iniciavam a partir de R$ 200,00, e na minha ingênua ignorância, eu desejava arrematar algo ali, e quem sabe, começar minha própria coleção de arte. Aquela seria a ocasião perfeita para me entrosar com o seleto grupo de colecionadores de arte e ver como funcionava um leilão.

Às 20:30 hrs as pessoas que quisessem participar do evento deveriam estar no local arranjado - ao lado da lanchonete da Bienal - com cadeiras, um pequeno palanque e um telão. Minha amiga, que me acompanhava, e eu sentamos no meio da pequena platéia para não chamar atenção, mas ao mesmo tempo não correr o risco de não ser vista pelo leiloeiro. Chamei a mocinha que entregava as fichas de cadastro com um número nas costas que eu deveria levantar quando fizesse um lance. O meu número era o 281. Minha amiga (a quem eu carinhosamente costumava de minha "consultora particular para assuntos astrológicos", até descobrir que suas consultorias para assuntos shoppenhauerianos eram muito melhores) disse que na numerologia eu segurava o numero 11 (2+8+1=11) e que significava brilho pessoal. Fiquei entusiasmadíssima! Aos poucos chegavam mais e mais pessoas... Tantas que não havia mais cadeiras para sentarem, e elas foram se acomodando no fundo e nos cantos do espaço aparadas pela mureta do mezanino.

Mas minha decepção chegou a cavalo e foi sincrônica com a satisfação da artista. O leiloeiro anunciou que  o primeiro lote, Caixa Brownie - 9th Ward, previsto para iniciar com R$ 670, já tinha um lance de mil reais. Logo recebeu outro lance de R$ 1.200, e outro de R$ 1.500, e outro, e outro... Até que chegou no seu valor final que já passava de R$ 5 mil e eu não quis mais nem ouvir. Percebi que não seria aquele dia que eu iniciaria uma coleção de obras de arte... Fustrações minhas a parte, a obra foi única, e um acontecimento original. O leiloeiro falou que nunca, na história do Brasil havia tido um leilão de um artista só.

Alguns dias antes, eu havia entrado em contato com Rosângela Rennó por e-mail para marcar um encontro e conversar sobre sua obra, mas como ela estava extremamente ocupa com os preparativos da Bienal, se desculpou por não poder me atender prontamente, e pediu que eu enviasse as perguntas por email. As respostas voltaram para minha caixa de entrada alguns dias depois, com toda a atenção e simpatia que ela demonstrou na ocasião do leilão. Segue a entrevista do jeito que chegou:

- 1 - Na obra 'mais-valia', consigo enxergar pelo menos três aspéctos diferentes: o social (através da descrição das imagens), o histórico (resgate de imagens, molduras e equipamentos do passado) e o estético (a manipulação e disposição das peças expostas). Isso condiz com a sua proposta? Existe algum outro aspecto que não está contemplado nesta pergunta?

RR: MENOS-VALIA, não mais-valia. Cuidado...
eu diria que há mais um questionamento da ordem econômica da arte. O aspecto social, sinceramente, não é relevante. Histórico e estético, sim, pois trata-se de revalorizar e revitalizar objetos destinados ao lixo.  Agora, a questão econômica sobre o valor daquilo que se atribui o valor de 'artístico', é  o mais importante.

- 2 - Por que você sugere que estes objetos sejam recolocados em circulação e "resimbolizados" como objetos de arte? 

RR: porque são objetos que se tornaram obsoletos e são encontrados aos montes, nos mercados de pulgas. Eles já estão em circulação, não sou eu quem os traz pra circulação. Só proponho deslocá-los do m pulga pro mercado da arte, via exposição na bienal.
resignificar esse tipo de imagem e de objeto é parte integrante da minha poética, nada mais natural, pra mim, do que fazer isso. Se vc conhece meu trabalho, nem precisa perguntar... :-)

- 3 - Como vc relaciona a sua obra com a arte contemporânea? Você diria que ela questiona a arte, ou tenta responder a alguma pegunta da filosofia da arte?

RR: Como VC relaciona a minha obra com a AC? Essa pergunta é pra vc, não pra mim. Eu faço objetos, exponho em exposições de arte e os vendo em galerias de arte.  às vezes as ações se entrecruzam mas isso já está bem absorvido pela AC. a 2a pergunta, acho que já foi respondida mais acima.
Vivian, sei que meu trablaho incomodou muita gente mas era pra ser exatamente assim. E é ao mesmo tempo complexo e tremendamente simples e óbvio. E tb acho que é pra ser exatamente assim, nessa medida...

Depois do leilão, mandei outro e-mail a ela dizendo que havia gostado da experiência de participar do leilão que ela promoveu mas que, infelizmente, eu não consegui comprar nada.... Ela me responde dizendo que nem tudo fora em vão para mim. As pessoas que se cadastraram, receberiam pelo correio uma publicação referente a obra! Veja só! Perguntei também se ela havia ficado com satisfeita com o resultado, e sua resposta não poderia ser mais honesta:

TOTALMENTE satisfeita. Tenho consciência de que fiz um trabalho conceitualmente bem amarrado, questionador e ousado e que, ainda por cima, me deu dinheiro. Melhor, impossível!  Já soube que andam até falando mal de mim, que fui oportunista, vendida, etc...  :-)

Com certeza nada ali foi em vão. Gostando (e gastando) ou não, memórias foram recuperadas, signos foram transformados e pensamentos foram impulsionados.

[1] MEREWETHER, Charles. “Archives of the Fallen // 1997”. In The Archive: Documents of Contemporary Art. London [Londres] e Cambridge, Massachusetts: Whitechapel e MIT Press, 2006. P. 160- 162. Disponível em: < http://www.rosangelarenno.com.br/obras/sobre/19> Acessado em: 16 dez, 2010.

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