Vivian Vigar
Representações em Psicanálise
quinta-feira, 29 de setembro de 2022
O ATO PSICANALÍTICO E O FETICHISMO DAS IDEIAS
sábado, 3 de setembro de 2022
O CONCEITO DE VERDADE NOS SEMINÁRIOS DE LACAN (le concept de vérité dans les séminaires de Lacan / The truth concept in Lacan's seminars)
(DISPONÍVEL PARA DOWNLOAD)
segunda-feira, 6 de junho de 2022
A RELAÇÃO DE OBJETO NA CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E O LUGAR DO ANALISTA NA INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA
AULA DE ABERTURA
SEMINÁRIO TEÓRICO PSICANÁLISE E PSICOSES06/06/2022
A vida se inicia antes mesmo do nascimento: é a partir do desejo e da possibilidade da parentalidade do ser humano que a vida tem o seu ponto de partida. Antes dos próprios pais nascerem, os avós já podem sonhar, desejar o nascimento dos netos. Porém, do outro lado, mesmo um nascimento que não tenha sido planejado, em algum momento, o bebê é pensado e nomeado por alguém. Aí começa a vida.
O que quero dizer é que a vida não se inicia com o nascimento, assim como não termina com a morte. Há um lastro de existência para aquém do nascimento e para além da morte. Há algo do ser que se antecipa à experiência do corpo orgânico e persiste após ela. Antes de nascermos já há algum saber sobre nós, e depois que morremos algo de nós continua vivo. Afinal, aquele que morre organicamente, deixa vestígios que se prolongam em quem fica. Ou seja, herdamos e realizamos os atos das referências que marcaram nossa memória, com conselhos, reprovações e projetos, seja do nosso convívio direto, nossos familiares e amigos, ou de contatos indiretos, como as nossas referências de vida na cultura.
Mas quero aqui, nos ater a um momento breve dessa existência cujo começo e o fim não é possível determinar com precisão. Quero destacar deste tempo o momento em que o ser entra no universo da linguagem. Quando este ser– desejado ou não, planejado ou não – passa a representar um significante para outro significante. Ou seja, quando o sujeito advém.
O significante é um elemento da linguística que Lacan usou para a psicanalise designar as representações que emergem do universo da linguagem, e cuja função, que só opera no encadeamento com outro significante, é significar a falta da completude entre o ser e o mundo. Assim, o significante na psicanálise não se limita a palavra como na linguística, mas uma marca que apenas quando em relação a outro significante produz efeito de significado.
O sujeito, por sua vez, é o efeito do atravessamento do significante no ser, estabelecendo, como castração, como índice de incompletude, o inconsciente e a mola do desejo deste ser.
Ao nascer o bebê não sabe que é. Ele apenas é, e dependente para sobreviver, disso que chamamos de função materna. Será tarefa desta pessoa, além de alimentar e limpar, dar contorno a este outro corpo para que ele possa advir como sujeito.
Este contorno é dado a partir de gestos e palavras – significantes - que nomeiam as necessidades ou, dito de outro modo, as demandas do bebê; organizando, a cima de tudo, as pulsões deste corpo. Podemos dizer, junto a Lacan, que a demanda é a posição subjetiva original, comandada pelas pulsões cuja fonte é o corpo, e cuja meta é se satisfazer. E, neste primeiro momento, a satisfação acontece por meio dos objetos oferecidos por aquele que cuida.
Disso, destaco a importância da relação de objeto na constituição do sujeito e do desejo abordando o conceito de objeto a para pensar a posição do analista em um momento ainda preliminar da constituição do sujeito: a infância e a adolescência.
O primeiro objeto de amor do bebê é a mãe (ou aquele que faz a função materna), ou melhor dizendo as partes da mãe que executam essa função, podendo haver um superinvestimento da meta em determinado objeto. É o que Freud chamou de objeto parcial; polo da pulsão sexual.
Este objeto faz marca, e as pulsões, que são a ponte entre o corpo e a mente, passam procurar por este objeto que será o ponto de organização do sujeito; o objeto é o meio de proporcionar satisfação a pulsão. Esta marca não se trata, ainda, de recalque, mas das organizações pré-genitais.
É com a chegada do significante, responsável pela castração, ponto de virada da alienação e separação e ponto de partida da constituição do eu, que o objeto passa a não ser mais apenas correlato da pulsão, destinado a ser consumido. É neste momento que o objeto passa a ser considerado na sua diversidade e riqueza de qualidades, na sua independência, na medida em que é progressivamente integrado e transformado em objeto de amor, determinando o que será a fantasia fundamental responsável por gerenciar a relação do sujeito com o mundo, lugar privilegiado da constituição do sujeito. Lacan descreve a fantasia fundamental com a fórmula S barrado punção de a, para demonstrar a condição de tensionamento entre o sujeito e o objeto. As vezes com mais intensidade, as vezes com menos intensidade.
A partir da entrada do significante que instaura a lei desde a função paterna, fazendo barreira ao objeto de amor – estamos falando da castração – constitui-se assim, a partir da falta, o desejo; e o objeto se transmuta em algo não especular, sem imagem, a fim de buscar representações que tamponem a falta por meio da fantasia. A introjeção é o mecanismo pelo qual o objeto parcial se transforma em objeto em si. Introjetar é ser e vir a ser desejo. Ao ser introjetado pelo eu, podemos dizer que o objeto passa a ter a função de antecipar o desejo, na medida em que a falta é da ordem do insuportável. Este objeto, Lacan conceituou como objeto a: objeto perdido causa do desejo. Ou seja, o objeto a não é a castração, o objeto a é efeito da castração, cuja função é substituir a falta deixada pelos objetos parciais, pelo objeto de amor, quando o significante da lei faz a sua função de barrar o livre acesso ao objeto.
Assim, a fantasia fundamental, aquela articulada como sujeito barrado punção de “a”, tentará garantir uma estrutura mínima para o suporte de desejo, criando, sugerindo com metáforas, outros objetos para tamponar a falta.
Na infância, vemos que esse objeto tem um caráter mais opaco e concreto. As crianças procuram sempre mais ou menos os mesmos objetos para se acalmarem. Está aí o cerne da noção de objeto transicional proposta por Winnicott, o que pode ser observado na capacidade das crianças assistirem o mesmo filme todos os dias, ou se agarrarem ao mesmo brinquedo por um longo período.
Na adolescência, este objeto pode tomar a forma de ídolos, substituindo os pais ideias. Freud diz que é na puberdade que a vida sexual se configura de acordo com a escolha objetal. O problema é que na puberdade o cérebro ainda está em vias de desenvolvimento e, precário para algumas tomadas de decisão. De escolhas.
A diferença que me parece mais fundamental na observação da criança e do adolescente, é que para a criança, ainda que o objeto seja mais opaco e concreto, como eu disse antes, ela tem mais facilidade de transitar pelos objetos, na medida em que se oferecem outros que também possam constituir um meio de satisfazer as pulsões, pois as crianças não estão ainda tão fixadas ao objeto. Por exemplo, não é tão difícil fazer a criança trocar a mamadeira por um copo decorado com um personagem que ela goste. Ou a chupeta por um brinquedo novo, trazido, por exemplo, pelo papai noel.
O adolescente também troca facilmente de objetos, porém aí eu queria trazer um dado de fora do campo da psicanálise para pensar a adolescência. O cérebro adolescente ainda está em formação, e nele, a região chamada de córtex frontal, responsável pela avaliação racional dos atos, ainda não está plenamente desenvolvida e, por isso, os adolescentes tomam decisões com as amigdalas cerebrais, localizadas no lobo temporal do cérebro, que é a região responsável pelo processamento das emoções. Assim os adolescentes recorrem a escolhas que privilegiam o prazer e a recompensa imediata, o que os leva a, muitas vezes, optarem por objetos que podem coloca-los em risco. Por isso, ao meu ver, o atendimento de adolescentes exige um cuidado do psicanalista, pois não se trata mais tanto de oferecer recursos simbólicos, repertório cultural, pois isso eles têm de monte. Mas de acompanha-los com conversas sobre as consequências de suas atitudes, que ampliando o tempo de sustentar as frustrações por outras recompensas menos imediata.
A metáfora do psicanalista enquanto uma tela branca onde seus pacientes projetam suas emoções estabelece, no tratamento psicanalítico, o espaço de elaboração e sustentação do desejo, ainda que este espaço seja “preenchido” com falta e, consequentemente, angústia. O psicanalista não ocupa o lugar de objeto enquanto correspondente a demanda, mas sustenta o lugar do objeto a, enquanto lugar de falta, propiciando a busca por objetos e a produção de novos significantes.
A fantasia tem, portanto, dois aspectos: um salutar, agradável, de tamponar a falta e satisfazer a pulsão, mas outro patogênico, pois podemos ficar tão fascinados pelo objeto colocado no lugar da falta, que nos agarramos a ele e não queremos mais soltar. A fixação em objetos pode produzir sofrimento e sintomas, porque esse apego restringe, afunila o mundo do sujeito. Impede que o sujeito veja mais amplamente o que o cerca.
O Marco Antônio Coutinho, psicanalista carioca, faz uma interessante metáfora da fantasia fundamental. Quando estamos rigidamente fixados a um objeto é como estarmos em prisão domiciliar. Temos tudo o que precisamos, mas não podemos sair daquele pequeno espaço. Com análise nós podemos progredir para um regime semi-aberto, na medida em que trabalhamos o desapego do objeto, ainda que temporariamente, pois a fantasia fundamental, constituída pelos primeiros investimentos libidinais, ela é insubstituível.
Podemos, ainda, rapidamente citar o caráter de fetiche que o objeto adquire nas perversões, quando o sujeito recusa a castração. Ou o efeito de alienação quando o significante, que agora posso dizer, o significante do nome do pai instituído pela função paterna, é foracluído do inconsciente. Ou seja, quando a lei não incide como organizadora da estruturação simbólica do sujeito. Deixo essas perguntas para uma próxima oportunidade.
sexta-feira, 26 de novembro de 2021
COMO A PSICANÁLISE PODE EXPLICAR O FENÔMENO DA PÓS-VERDADE A PARTIR DA NOÇÃO DE APOFANIA COMO DESCRITA PELO PSIQUIATRA KLAUS CONRAD
Obs: uma outra versão deste artigo foi publicada na Revista Intercâmbio
RESUMO: Este artigo pretende demonstrar como a psicanálise pode compreender os mecanismos psíquicos que levam um sujeito a assentir ideias absurdas, disseminadas no contexto da pós-verdade. Para tanto, utilizaremos a noção de apofania: uma das fases do processo de desencadeamento da esquizofrenia, proposto e descrito, em 1958, pelo psiquiatra alemão Klaus Conrad. Acreditamos que a apofania pode colaborar, enquanto material de elaboração teórica, com a psicanálise, por apresentar, em sua nosografia, características semelhantes às observadas em sujeitos que aderem facilmente às informações falsas. Defendemos, também, que os meios de comunicação se apoiam nos estudos de fenômenos psicológicos, como a apofania, para se instrumentalizarem na construção de linguagens persuasivas, com fins políticos, nutrindo isso que denominamos “pós-verdade”.
O sistema não tem nenhuma necessidade de sentido. Mas nós, seres de fragilidade, que como tais voltaremos a nos encontrar no decorrer deste ano, nós temos necessidade de sentido.
Lacan, seminário 17, p. 13
26 de novembro de 1969
1. A pareidolia e apofania a serviço dos meios de comunicação
Sabemos que os meios de comunicação, principalmente os que se dedicam à publicidade, apoiam-se nos estudos da mente e do comportamento humano para criar estratégias de captura e direcionamento da atenção do público por meio de diversas formas de linguagens. Seja pela escolha de cores, de palavras, de imagens, de ritmos musicais ou da composição de todos esses.
A psicolinguística, abrangendo a inter-relação dos fatores linguísticos e dos aspectos psicológicos, é uma das principais fontes epistemológicas dos comunicadores na compreensão dos mecanismos pelos quais a linguagem é percebida, processada e representada na mente, ou seja, na compreensão do funcionamento da cognição humana a fim de criar linguagens, verbais ou não-verbais, que comuniquem determinadas ideias com finalidades específicas. Um exemplo da aplicação de saberes constituídos pela psicolinguística na publicidade é o logotipo da empresa Amazon.com.
O conhecido logotipo atual da Amazon, utilizado desde 2000, tem pelo menos dois conceitos por trás. Abaixo do nome, a seta amarela que parece um sorriso representa a ideia de que a empresa está feliz em entregar qualquer coisa ao consumidor, em qualquer lugar. As caixas, inclusive, têm o sorriso estampado em destaque.
Além disso, é possível perceber que a seta sai da letra A e aponta para a letra Z no nome. A ideia é indicar que a Amazon vende de tudo – produtos de A a Z –, atendendo a todas as necessidades das pessoas.
(CABRAL, 2019)
Considerando a seta/sorriso, podemos constatar no logotipo da Amazon, também, um fenômeno psicológico bastante explorado pela publicidade a fim de produzir mensagens subliminares e induzir o consumidor a compra: a pareidolia.
A pareidolia[1] consiste em um tipo de equívoco perceptivo sonoro ou imagético. No caso da sonora, trata-se da percepção de escutarmos mensagens de palavras em sons ou ruídos aleatórios como, por exemplo, entender uma frase em um disco tocado de trás para frente, ou escutar a palavra “bem-te-vi” no piado do passarinho. No caso da pareidolia imagética, percebemos rostos e formas humanas ou animais nos mais variados objetos e, principalmente, nas nuvens.
Pesquisadores, como os cientistas australianos Colin Palmer e Colin Clifford, atribuem o fenômeno da pareidolia a uma espécie de efeito colateral da evolução cerebral que nos faz buscar rostos e formas animadas em elementos que constituem os traços de objetos inanimados. Além de reconhecer os rostos e formas, devido a pareidolia, também interpretamos as emoções expressadas pelos objetos inanimados. Podemos, por exemplo, ter a impressão de que uma casa está assustada ou podemos sentir ternura ao olhar para o capacete com o aspecto de um rosto de coala (como nas imagens acima). No artigo, “Face Pareidolia Recruits Mechanisms for Detecting
Human Social Attention” (2020)[2], publicado na revista Psychological Science, para demonstrar dois experimentos com humanos reagindo a percepção de pareidolia imagética, os autores explicam:
O cérebro humano evoluiu para detectar, rapidamente, a presença de outras pessoas em nosso ambiente e fazer inferências, com base em pistas sensoriais específicas, sobre qualidades como identidade pessoal, estado emocional e direção da atenção (Adams, Ambady, Nakayama, & Shimojo, 2011). A pareidolia pode ser entendida como um notável falso positivo nesses sistemas, nos quais mecanismos visuais, especializados para detectar e extrair pistas sensoriais de rostos humanos, são recrutados espontaneamente na ausência de uma forma humana real. (COLLIN e COLLIN, 2020, tradução nossa)
Diante deste fenômeno, a publicidade percebeu que “humanizando” seus produtos ela pode causar um efeito de identificação nos consumidores, promovendo o potencial de venda.
Exemplos da publicidade usufruindo da pareidolia.
Porém, em caso de peças publicitárias mal planejadas, pode acontecer que a marca sofra consequências indesejadas de uma imagem que produza antipatia. (BARROS, 2021)
Neste caso, após ser comparado a imagem de Hitler, o logotipo da Amazon para o aplicativo de smartphone, teve que reformular a proposta.
Se a pareidolia nos faz buscar, involuntariamente, padrões que se assemelham a formas de seres animados e emoções humanas em imagens ou sons aleatórios, há outro fenômeno psicológico, a apofania, que apresenta manifestações mais amplas e mais sutis.
Em 1958, o psiquiatra alemão Klaus Conrad propôs, no texto La esquizofrenia Incipiente, uma descrição em quatro etapas do desencadeamento da esquizofrenia. Uma das etapas do processo, a segunda, Conrad denominou “apofania”, emprestando do grego a palavra αποφένια[3], que em português significa “se fazer manifesto”[4]. (CONRAD, 1963: 322). Segundo o psiquiatra, “a análise da topologia do campo vivencial apofânico é um dos objetos mais importantes de nosso estudo” (ibidem: 323). Mas, para entendermos o fenômeno da apofania, se faz necessário resumir a descrição, feita por Conrad, de todas as fases do processo, que tem início como uma espécie de angústia e culmina, nos casos mais graves, em uma condição catatônica.
1. Trema: Frente a sensação de que algo irá acontecer, o sujeito experimenta um “estreitamento do campo psíquico” (ibidem: 320). Nas palavras do psiquiatra, “o iminente impõe limites a nossa existência, dando origem a um aumento da tensão no campo” (ibidem)
2. Apofania: partindo desde uma descrição de delírio proposta por Jasper, como uma “consciência de significado anormal” - porém entendendo que a noção de delírio, nesta descrição, é aplicada para outros fenômenos psíquicos não relacionados a esquizofrenia - Conrad propõe que nesta fase, especificamente do desencadeamento da esquizofrenia, “o doente se comporta como um homem delirante frente a uma revelação. O significado se impõe de um modo manifesto (revelado)” (Ibidem: 322). O sujeito, segundo Conrad, percebe as situações em torno dele como signos de aviso dirigido a ele. Qualquer situação pode ser percebida enquanto concernente a sua realidade, até o ponto em que “seus pensamentos também são vivencias de modo apofânico, de tal maneira que se pode falar em uma apofania de todo o campo” (ibidem: 323). Conrad localiza, portanto, a apofania do espaço perceptivo, enquanto aquilo que acontece para fora de si, e a apofania do espaço interno, como “a representação que contém caráter apofânico” (ibidem).
3. Apocalípse: o sujeito que vivencia a fase apocalíptica experimenta uma descontinuidade de sentido das manifestações da fase apofância anterior. O campo interno do sujeito passa a interpretar as percepções de maneira assintática, fragilizando o nexo entre conteúdo e sentido. Seria um sintoma da ordem da anastrofe, ou seja, um recurso estilístico que consiste na inversão da ordem natural das palavras. “Essa fase pode aprofundar-se mais e mais, de maneira que fique impossível de experimentar nada com relação a fatos vivenciais configurados” (ibidem: 324). Na medida em que o pensamento perde a coerência de representação - ou seja, perde a capacidade de interpretar com alguma continuidade os fatos apresentados no espaço exterior do campo perceptivo - o sujeito é impelido à uma condição de catatonia.
4. Consolidação: Todavia, segundo Conrad, “se produz, em geral, uma melhoria espontânea ao longo do tempo” (ibidem), podendo-se observar “um lento relaxamento do campo [psíquico]. A apofania cessa, pelo menos em domínios parciais, enquanto perdura em outros” (ibidem). Ainda que o sujeito possa continuar fazendo algumas conexões anormais como, por exemplo escutar vozes. Encontramo-nos, aqui, em uma fase de restituição, que Conrad chamará de consolidação. Trata-se de uma “fixação, que tem completamente o caráter de uma fixação neurótica” (ibidem). Para Conrad, nesta fase “nos deparamos com certas dúvidas de que aquilo que se pensava era realidade, como se supunha a princípio, que talvez haja ido longe demais, etc” (ibidem). Após a crise experimentada ao longo das fases de desencadeamento esquizofrênico, o sujeito “anuncia aqui aquela alteração característica da maneira de ser” (ibidem: 325), que Conrad chamará de resíduo: “Trata-se de signos residuais, ou, para ser mais preciso, dos signos de uma perda residual de impulso” (ibidem).
Tendo descrito brevemente a proposta de Conrad, nos ateremos na fase apofânica que, de fato, interessa a este trabalho. Porém, primeiramente, ressaltamos que, sendo Conrad um psiquiatra, a descrição acima foi formulada com base na fenomenologia, ou seja, nas manifestações observáveis do doente, e não na constituição da estrutura psíquica, assim como entendida na teoria psicanalítica lacaniana - teoria na qual pretendemos alicerçar o desenvolvimento deste trabalho daqui por diante.
Não obstante, a fenomenologia não é desprezada pelos psicanalistas, servindo como material para reconstrução dos caminhos percorridos pelo sujeito em sua constituição psíquica, ou seja, enquanto material para que a construção propriamente psicanalítica possa ser alcançada. Afinal - lembrando que é através da descrição dos fenômenos relatados pelos pacientes na clínica que temos a possibilidade de interpretações e construções em análise - o que seria da clínica psicanalítica sem a fenomenologia?
2. A noção de apofania e a realidade psíquica na neurose e na psicose
Assim, enquanto uma noção do fenômeno psíquico relatado na clínica de Conrad, a apofania – ou seja, o conjunto de sintomas manifestos – pode ser observada tanto no sujeito neurótico quanto no psicótico. Ainda que aquilo que a psiquiatria descreve como esquizofrenia se apresente tão somente nas estruturas psicóticas, pretendemos, neste texto, usar a noção de apofania – ou seja o conjunto de manifestações sintomáticas semelhantes, ainda que operados por mecanismos de defesa distintos - para ilustrar o quão longe pode ir uma fantasia neurótica, a ponto de colocar o óbvio em xeque.
Assim, para a psicanálise, a apofania - enquanto uma subcategoria daquilo que Jaspers descreveu como uma “consciência anormal de significação”, ou seja, enquanto uma recusa ou afrouxamento do Eu em relação a realidade do mundo exterior - é uma noção de constituição de realidade psíquica, escutada a partir do sintoma, e que pode acometer tanto neuróticos quanto psicóticos.
Basta-nos lembrar do texto “A perda da realidade na neurose e na psicose” (2011b), onde Freud explica a diferença entre fantasia e delírio. Nas palavras de Freud, “a neurose não nega a realidade, apenas não quer saber dela; a psicose a nega e busca substituí-la” (Ibidem: 218). Quanto mais o neurótico evitar (inconscientemente) saber dos fatos do mundo, mais força sua fantasia ganhará, mais distante ele ficará da realidade, e mais sua fantasia se assemelhará com um delírio. Freud conclui este texto afirmando que “tanto para a neurose quanto para a psicose há a considerar não apenas a questão da perda da realidade, mas também de uma substituição da realidade” (ibidem: 221)
Em “Neurose e Psicose” (2011a), escrito seis meses antes do texto que acabamos de citar, Freud nos explica que na neurose o conflito acontece entre o Eu e o Id, e na psicose, entre o Eu e o mundo exterior, sendo que, em ambos os casos, o Eu ocupa uma posição intermediária entre o mundo exterior e o Id, e se “empenha em fazer a vontade de todos os seus senhores ao mesmo tempo”. (ibidem: 177).
Resumidamente:
Na neurose: Após o Eu reprimir parte do Id, ele deve tentar compensá-lo por meio de um afrouxamento da relação com a realidade, que chamamos de fantasia.
Na psicose: Desolado por alguma situação intolerável decorrente no mundo exterior, o Eu desinveste da realidade e, consequentemente, “cria uma nova realidade, que não desperte a mesma objeção que aquela abandonada” (2011b: 217): o delírio.
Desta maneira, enquanto o adoecimento neurótico recai no enfraquecimento da repressão ao Id, podendo resultar em fantasias delirantes, na psicose o problema acontece quando o mundo exterior invade a subjetividade de maneira que o Eu não consegue evitá-la, ou seja, não consegue estar desinvestido deste mundo. Ele é atravessado por algo que ameaça sua construção delirante. Olhando por outro ângulo, podemos dizer que, enquanto as pulsões do Id mal reprimidas extrapolam o limite de uma fantasia possível de ser sustentada no laço social do neurótico, promovendo nele uma realidade psíquica impossível de ser compartilhada com outros, a realidade do mundo exterior perturba o delírio do psicótico, provocando o que chamamos, em ambos os casos, de surto ou de uma desorganização psíquica.
Em 2006, o psicanalista Antônio Teixeira, escreveu o artigo, “Entre o signo e o significante: a esquizofrenia incipiente segundo Conrad”, a fim de “destacar a abordagem estrutural do desencadeamento psicótico ali inaugurada antes mesmo de Lacan estender a perspectiva estruturalista à fenomenologia da clínica” (2006: 107). Nesse contexto, o psicanalista considera “Conrad como um estruturalista avant la lettre” (ibidem: 108). Na leitura de Teixeira - e agora entramos em uma teorização propriamente lacaniana - “a verdade apofânica é uma verdade desligada da cadeia significante” (ibidem: 113) No artigo, Teixeira afirma, seguindo Conrad, que “o fenômeno essencial [da esquizofrenia] já se apresenta desde a experiência da apofania”. A apofania (isso que se faz manifesto para o sujeito no processo esquizofrênico) “se revela no signo e não no significante” (ibidem). O psicanalista explica:
Quando se diz que o significante é o que representa o sujeito para outro significante, supomos que o significante enquanto tal nunca se apresenta isolado; fora da cadeia significante. O signo é, na verdade, um significante desencadeado, e é por se apresentar desencadeado que ele suscita a necessidade de se produzir, a seu redor, uma nova cadeia que lhe dê sentido, ou seja, uma interpretação. Para saber o que o signo quer dizer é necessário re-encadeá-lo numa nova cadeia significante. O delírio seria então uma tentativa de re-encadear um signo, de modo a que ele possa produzir um sentido para o sujeito. Ele engaja o sujeito nessa composição.
Afirmamos, portanto, que o sujeito procura o signo quando se encontra diante de uma verdade que ele suspeita existir de forma não articulada na cadeia significante. É por isso que o ciumento é ávido por signos: ele pressente uma verdade não encadeada numa declaração significante, como bem sabia o sórdido personagem de Iago, da peça Otelo, de Shakespeare, ao fazer surgir o lenço de Desdêmona nos aposentos de Cássio. Mas vale lembrar, junto a Lacan, que a fumaça não é necessariamente signo do fogo, ela pode antes ser signo do fumante. E que quem cala nem sempre consente, o silêncio é muitas vezes signo do não. Ou seja: o valor do signo não é nem de longe unívoco, ele só significa se veiculado a uma cadeia que cada sujeito em torno dele compõe.
Na vivência apofânica descrita por Conrad, o sujeito se encontra diante de um signo que toma a forma, descrita por Lacan, de uma intuição plena sobre a qual irá se tecer a interpretação delirante. Ele se encontra inundado pela certeza de que esse signo lhe concerne, sem que seu valor possa lhe ser dado de antemão. (ibidem)
Sabemos que a questão da verdade, enquanto um dos temas centrais tanto da Ciência como da Filosofia, é amplamente discutida tanto por Freud quando por Lacan, se tornando um dos eixos principais de discussão da teoria psicanalítica, resultando em diversos trabalhos a respeito do tema.
3. Verdade e psicanálise
Um desses trabalhos está apresentado no livro Estilo e verdade em Jacques Lacan(2013), onde psicanalista Gilson Ianini percorre, o “fanatismo obstinado do fato enquanto tal” (ibidem: 30) de Freud, comentando também a continuidade que Lacan dá à questão da verdade.
Em Freud, desde o Entwurf (1895), passando por uma carta para Fliess (1897), o texto de 1920, “Para além do princípio de prazer”, até um de seus últimos textos, “Esboço de psicanálise” (1938), Iannini localiza momentos em que a verdade é interrogada, principalmente, a respeito de como este conceito opera na clínica e teoria psicanalítica, ressaltando que, a obsessão de Freud pelo “fato enquanto tal” (ibidem: 31), refere-se a um fato clínico, um fato linguístico, um fato discursivo. Lacan, por sua vez, promove a verdade, não apenas como um efeito da linguagem, mas a um ser falante - “Eu, a verdade, falo”, ou mais adiante em sua construção teórica, “a verdade fala, Eu”. Ele forçou a verdade, dando a ela uma estrutura de ficção – “a verdade tem estrutura de ficção” – que, no entanto, nunca pode ser dita por inteiro – “a verdade é semi-dita, um semi-dizer”.
Por isso, desde Lacan, entendemos que a verdade, diferente das certezas, está sempre submetida a críticas, parâmetros e avaliações, e por isso, sempre é questionável. Segundo o psicanalista Paulo Beer, que escreveu sua tese de doutorado sobre a verdade, A questão da verdade na producã̧o de conhecimento sobre sofrimento psíquico: consideracõ̧ es a partir de Ian Hacking e Jacques Lacan (2020), a verdade é composta por, principalmente, dois elementos: (1) a “decidibilidade da pertinência de saberes e proposições” (BEER, 2020: 11), ou seja a justificativa de algo como verdadeiro, e (2) o “espectro normativo e disruptivo” (ibidem), ou seja, a possibilidade de estabelecer uma norma ou uma crítica a uma norma a respeito de um objeto. Porém, segundo o psicanalista, ”a definição de objeto também depende do modo como estruturamos as possibilidades de conhecimento” (ibidem) sobre ele. Assim, “a verdade abarca a relação entre o conhecimento e seus objetos, carregando um potencial de justificação e de normatividade (e disrupção)” (ibidem). Desta forma, Beer define alguns parâmetros de verdade que nos possibilitam estudá-la: os quatro primeiros parâmetros (epistemológicos, ontológicos, éticos e políticos) como elementos-ferramentas para o estudo da verdade, e os dois últimos (justificação e normatividade) como elementos constituintes da verdade manifesta pela linguagem.
4. Apofania e pós-verdade
Isso nos leva a pensar como a apofania nos permite, de certo ângulo, entender o que leva uma pessoa a aderir a ideias absurdas, disseminadas no contexto da pós-verdade, onde questões do campo da ciência e da história - que achávamos já ter superado por consenso adquirido por meio de parâmetros estabelecidos cientificamente - retornam enquanto uma objeção ao que está posto, em nome de um “relativismo total que permitiria recusar estudos científicos pela acusação de que eles seriam desenhados para produzir os resultados desejado” (BEER, 2021)[5], não passando de distorções de fatos, que esgarçam o conceito de realidade, a fim de antepor o desejo ao fato.
Podemos dizer que, diante de um acontecimento, o sujeito molda o contexto - dito de outro modo, que o sujeito se vale dos significantes disponíveis de acordo com sua vontade -, embaralhando os dados perceptivos, construindo uma “verdade sua” de acordo com o seu interesse, e transpondo a narrativa ao domínio da crença que, enquanto tal, se torna inquestionável: uma “certeza delirante” (TEIXEIRA, 2006: 114)
Já sabemos que o conceito de apofania foi criado, por um psiquiatra, a fim de descrever um dos estágios do processo do desencadeamento esquizofrênico. Porém, defendemos aqui que, a manifestação característica deste estágio, enquanto uma noção empírica, é possível de ser observada em estruturas não-psicóticas, devido a possibilidade de erro no aparelho perceptual. Erro que visa “corrigir” realidade do mundo exterior de acordo com realidade desejada, ou possivelmente sustentável, pelo sujeito. Algo semelhante ao que acontece na pareidolia e na apofania, onde a mente cria um sentido onde não há.
o que se encontra subjacente ao aspecto apofântico da certeza delirante é que um traco do objeto percebido̧ se converte, para o enfermo, na própria essência da significação. É como se houvesse nos objetos uma nuvem de propriedades essenciais que se liberam no delírio, escreve Conrad, valendo-se de uma imagem que nos evoca claramente o enxame de S1 de que nos fala Lacan em Encore (LACAN, 1975: 130). (ibidem, grifo nosso)
Entendemos que a maneira como Teixeira se remete ao funcionamento do campo perceptivo nos auxilia em responder sobre as conclusões precipitadas e incorretas produzidas a partir de elementos aleatórios[6] que, desde um estreitamento do campo psíquico – como vemos na fase do trema - passam a ser signos de validação para uma ideia qualquer.
Mas, então, o que se passa para que haja esse estreitamento coletivo do campo psíquico,cujo efeito possibilita que informações absurdas sejam disseminadas em larga escala, ao ponto em que órgãos governamentais, a partir da demanda de entidades civis, passem a debater a respeito de legislações reguladoras dos meios de comunicação, a fim de combater isso que chamamos de fake news, um dos principais corolários da pós-verdade, ao lado das teorias conspiratórias e do negacionismo científico e histórico?
Para podermos delimitar algumas impressões, e alicerçar nossa construção teórica, recolhemos alguns artigos e ensaios de psicanalistas brasileiros, nos último quatro anos, a respeito do tema da pós-verdade[7]. Consideramos esta margem de tempo porque foi em 2016, há cinco anos, que o termo pós-verdade, ganhou notoriedade durante as eleições presidenciais dos Estados Unidos daquele ano. A partir da constante repetição do termo “pós-verdade” na mídia mundial, principalmente, referindo-se as estratégias políticas, do então candidato Donald Trump, o Dicionário de Oxford elegeu “pós-verdade” como a palavra daquele ano, incluindo-a como verbete. Segundo o Oxford Dictionaries (2016), o termo “se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais” (OXFORD, 2016).
Apesar de a palavra passar a circular largamente apenas em 2016, ela apareceu pela primeira vez em 1992, pelas mãos do dramaturgo Steve Tesich, ao comentar o caso Watergatena revista norte-americana The Nation, (KREITNER, 2016).
Nós estamos nos tornando, rapidamente, protótipos de pessoas que os monstros totalitários sempre sonharam. Até agora, todos os ditadores trabalharam duro para suprimir a verdade. Por nossas ações, estamos dizendo a eles que isso não é mais necessário, que nós adquirimos um mecanismo espiritual capaz de desnudar qualquer verdade. De maneira muito fundamental, nós, como pessoas livres, decidimos que queremos viver em um mundo de pós-verdade. (TESICH apud KREITNER, 2016, tradução nossa)[8]
Assim, como podemos testemunhar neste arquivo histórico, antes de ramificar o seu “mecanismo espiritual capaz de desnudar qualquer verdade” para outras searas do pensamento, como para a ciência e para história, a pós-verdade nasceu, e se estabeleceu enquanto um problema social, na política. O que nos parece um consenso quando retomamos os textos dos psicanalistas aqui citados. Para Christian Dunker, ainda que defina a pós-verdade como uma “jornada filosófica e cultural” (2017: 11), ou uma “segunda onda do pós-modernismo” (ibidem: 13), o marco da pós-verdade está situado no atentado de 11 de setembro de 2001, quando “a verdade das armas químicas que justificaram o ataque ao Iraque mostrou-se uma ficção” (ibidem: 17), e ao mesmo tempo institui “o cinismo como discurso básico do espaço público e da vida laboral” (ibidem), prescindido da verdade histórica. (ibidem: 18).
Vladimir Safatle aborda a questão da pós-verdade, não por sua causalidade, mas sim, enquanto índice para a tarefa de regular conflitos e práticas institucionais diante da variedade de línguas, entendendo “língua” enquanto “o conjunto de valores, a gramática que organiza a minha sintaxe, a compreensão do que é um enunciado válido ou não”. (SAFATLE, 2017: 128). Ou seja, o psicanalista aponta que, devido a não existência de “uma gramática comum no interior da vida cotidiana” (ibidem) para definirmos conceitos complexos como, por exemplo, “liberdade” ou “justiça”, ficamos obstruídos no alcance de um acordo (para “regular conflitos e práticas institucionais”) pela via da argumentação, propondo, para tanto, a via da persuasão. Para Safatle, se o diálogo visa universalizar critérios e sistemas de regras, a persuasão estabelece um acordo não a partir de uma proposição verdadeira, mas a partir do circuito de afetos (pathos) que constitui o sujeito. (ibidem: 134-135).
Já o psicanalista Tales Ab’Sáber, refuta o uso do termo “pósverdade”. Para ele, trata-se de um eufemismo cujo resultado é a legitimação da mentira política, através de “uma espécie contemporânea de processo de gestão psíquica do poder” (AB’SÁBER, 2021: 41), “como se a verdade histórica não existisse” (ibidem: 53).
Tania Coelho dos Santos fala da pós verdade a partir da desonestidade intelectual a qual líderes políticos, tanto da esquerda quanto da direita, se entregaram. Para ela, esses políticos recusam seus fracassos e evidências de corrupção e, a fim de defender suas posições, constroem “narrativas fantasiosas, varrendo para debaixo do tapete os fatos que refutam suas ideias” (SANTOS, 2016: 6). Tal comportamento, caracterizado por Santos enquanto “cinismo” (ibidem) e “fanfarronice” (ibdem) é resultado do espaço conquistado pela lei de mercado e pela propaganda política que desprezam a razão e a tradição (ibidem:15-16), produzindo uma pluralização de grandes Outros, “em nome do direito de minorias excluídas” (ibidem: 8) que, por sua vez, faz com que “todo fato não passa de uma versão ou uma ficção” (ibidem). Este é um efeito da lei de mercado que, para que o capital gire o máximo, todas as demandas devem estar acessíveis para consumo. Nada é restrito. Tudo é possível, mesmo que apenas enquanto promessa.
Dias, por sua vez, não usará o termo pós-verdade, porém tangencia a questão referindo-se aos “absurdos”, às “farsas” e às “fake news”. Para o psicanalista estes são elementos que irão operar no funcionamento de um tipo de discurso, que ele nomeará como “o discurso da estupidez”. Segundo Dias, diante da ameaça provocada pela diversidade sexual (ou seja, a diferença), o estúpido (operador deste discurso) visa manter o outro a serviço de um constante processo de produção e consumo, transformando-o em “ser abjeto sem voz” (DIAS, 2020:14). Assim, para que esse circuito da sujeição ao consumo, ou à morte da voz, se sustente, “é preciso que a farsa compareça como elemento que recobre, lá onde a verdade poderia se manifestar” (ibidem: 16). A farsa tampona o espaço de elaboração subjetiva onde a verdade pode fazer o sujeito falar. Espaço este, que quando vivido enquanto falta, pode gerar angústia, mas é também o espaço que corrobora com a diversidade subjetiva, com a fala.
Para Heloísa Caldas e Leonardo Miranda, a pós-verdade é compreendida a partir da “ligação entre os ditos que fazem sentido e os afetos sentidos no corpo” (CALDAS; MIRANDA, 2021: 566), e de noções filosóficas trazidas desde Hannah Arendt e Gilles Lipovetsky. Para Arendt, “a verdade factual é política por natureza” (ibidem) enquanto passível de ser “manipulada pelos detentores do poder com a finalidade de produzir mentiras estratégicas” (ibidem: 565). Para Lipovetsky, a questão da “hiper-modernidade” indica “modificações nas normas sociais e, com isso, um novo arranjo simbólico” (ibidem). Os psicanalistas entendem que o registro simbólico está relacionado a verdade, enquanto a hiper-modernidade irá designar a pós-verdade.
Ainda segundo Caldas e Miranda, a política atual, através da “prática econômica neoliberal” (ibidem), passa a ser sustentada pelo “casamento, histórico, aliás, da religião com o Estado” (ibidem), que aliados à ciência, constroem uma “normativa através do excesso de sentido. Como se existisse uma verdade absoluta e, assim, o simbólico pudesse cobrir todo o real” (ibidem)[9]. Assim, “as fake news apresentam-se como produção de sentido, ilusão da representação do significante pelo significado” (ibidem: 570), explicando “que, em busca de uma imagem total danificada pela invasão do real podemos dizer que nós, seres de fragilidade, não temos necessidade da exatidão da verdade, ‘nós temos necessidade de sentido’ (Lacan, 1969-70/2008b: 14)” (ibidem).
Entendemos, portanto, alicerçados em análise prévias compartilhadas por nossos colegas psicanalistas que, a pós-verdade, enquanto um fenômeno social, cujos efeitos são percebidos na política e na mídia, pode ser compreendida a partir da noção do fenômeno, desta vez psicológico, nomeado por Conrad como apofania.
Se Lacan é patente ao afirmar que somos seres em busca de sentido, Caldas e Miranda complementam de maneira contundente, que, diante da angústia provocada pelo Real, pouco nos importa a exatidão da verdade. Queremos preencher o “buraco”. Não seria justamente esse o motivo que nos leva a construir fantasias e delírios, assim como nos propôs Freud?
5. A tríplice aliança: do estreitamento psíquico ao empobrecimento simbólico
Da mesma maneira como a publicidade se instrumentalizou da compreensão dos mecanismos pelos quais a linguagem é percebida, processada e representada e dos seus efeitos psíquicos (como os fenômenos retomados neste artigo), a fim de criar técnicas de persuasão, sabemos – principalmente, desde o que a História nos conta sobre a propaganda nazista – que a política se apropriou das técnicas da publicidade como meio de “gestão psíquica de poder” (AB’SÁBER, 2021: 41).
No Brasil, vivemos uma situação degradante (para dizer o mínimo) em relação ao espaço de debate público. Estamos há muitos anos (se não desde semrpe) reféns das narrativas totalmente maquiadas (ou mascaradas) a respeito de nossos representantes políticos que, recusando a possibilidade do fracasso eleitoral - em nosso precário contexto democrático tão submetido às leis de mercado - constroem “narrativas fantasiosas, varrendo para debaixo do tapete os fatos que refutam suas ideias” (SANTOS, 2016: 6). Inclusive, quando conveniente, calam as manifestações culturais divergentes, por meio de linchamentos virtuais, originados em todos os pontos do espectro ideológico, proferindo-se todo tipo de absurdo, que despreza o bom-senso, ironicamente, em nome da “liberdade de expressão”.
Há, ainda, um paradoxo que podemos apontar como sendo o do estreitamento psíquico promovido pelo medo diante do excesso de sentido, oferecido pelo casamento - indicado anteriormente por Caldas e Miranda - entre a religião, o Estado e a ciência, que chamaremos aqui de “tríplice aliança”.
Entendemos que - da mesma maneira como um sujeito excessivamente protegido em sua infância pela função materna terá dificuldade em lidar com a frustração - o cidadão ou o crente - para quem as instituições acima prometem responder a todas as demandas através de verdades absolutas - se recusará em haver-se com os furos da verdade, da verdade assim como a entendemos desde a psicanálise: aquela que é sempre semi-dita, que inclui os enigmas próprios de nossa existência e, principalmente, nunca é inteiramente alcançável.
Trata-se da tese lacaniana, segundo a qual Ianini edifica seu livro, em que “não há a verdade sobre a verdade” (2013: 19). Dito de outro modo, estamos barrados do encontro com a verdade e, o que faz essa barra – a castração – é a função paterna, ao ser responsável pelo corte de acesso do sujeito à promessa de completude alienante – constituinte do registro imaginário - da função materna, uma força sedutora que, no caso da pós-verdade, age pela via da trípice aliança, prometendo aplacar a angústia frente ao encontro com o Real, ou seja, frente aos furos da verdade.
Assim, quando atravessados por um outro que demanda algum tipo de renúncia do sujeito, afim de viabilizar a convivência coletiva que leva em consideração a diferença e o desejo do outro, o sujeito sente-se ameaçado em sua completude imaginária, passando a experimentar um estreitamento psíquico, diante do medo de ter que se haver com frustrações, implicações e exigências comuns em uma sociedade que pretende funcionar - ainda que existam diferenças culturais – de maneira equilibrada para todos e todas. Ceder espaço, dinheiro ou qualquer tipo de representação de conforto, se torna sinônimo de aniquilação para um sujeito apoiado na suposta onipotência da completude imaginária.
Instrumentalizados pelo medo - por este estreitamento psíquico - provocado pela ameaça de aniquilação da constituição imaginária diante da diferença, os agentes que buscam poder político, introduzem um tipo de discurso que enlaça o sujeito a partir de seu pathos, elegendo um signo que será a isca do anzol no qual o sujeito será fisgado. Este signo é portado por vozes encarnadas das instituições, e encerrará nele a promessa (ilusória) de solução para todos os problemas que ameaçam a imagem deste sujeito.
O sujeito “fisgado” se identifica com o portador deste signo, padecendo, consequentemente, de um empobrecimento simbólico pois, uma vez conformado ao universo de sentidos determinados pela instituição na qual aderiu, o sujeito tende a isolar-se de outros ambientes culturais, reduzindo, assim, o seu repertório simbólico e debilitando, enfim, sua capacidade de pensar criticamente. Assim, em decorrência dessa “armadilha identificatória”, o sujeito torna-se mais suscetível a crer em qualquer ideia proposta pelo “portador”[10].
Podemos dizer que este “portador” é o representante de um desses muitos Outros advindos da pluralização do grande Outro, decorrente de uma sociedade altamente seguimentada e desagregada, onde, de maneira generalizada, todos se consideram minoria ou exceção, como proposto por Santos (2016).
Para finalizar, a pós-verdade, enquanto um produto da tríplice aliança, pode ser compreendida como um fenômeno que oferece sentidos, mesmo que absurdo, para tamponar a falta de sentido da existência no qual, “nós seres de fragilidade”, estamos inseridos. Mas, também, a pós-verdade é um efeito da possibilidade de, ao excluirmos o outro de nosso espaço de convivência por meio da recusa da diferença, rearranjarmos os elementos de nossa realidade segundo a nossa vontade, quando sustentados por uma instituição que garanta nossa sensação de onipotência, na contrapartida de sermos operadores do ciclo de produção que nutrirá, tão somente, o interesse desta instituição e de seus representantes.
Assim, a pós-verdade – acompanhada pelos avanços na tecnologia digital – se tornou uma “realidade”, um contexto histórico, provocado por artifícios narrativos que vem sendo aperfeiçoados pelos meios de comunicação a partir da apropriação da compreensão dos mecanismos de identificação e desta espécie de falha constituinte do aparelho perceptual humano, semelhante ao que foi nomeado por Conrad como apofania, ao descrever o processo de desencadeamento da esquizofrenia.
REFERÊNCIAS
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[1] Segundo nossas pesquisas, a pareidolia foi descrita para primeira vez pelo psiquiatra alemão Karl Ludwig Kahlbaum, no artigo Die Sinne Delirien und ihre verschiedene Formen (1866), que podemos traduzir livremente como O delírio sensorial e suas várias formas. Porém, devido as limitações de tempo e espaço, não poderemos nos aprofundar na etiologia do fenômeno, e tão pouco na biografia do psiquiatra, mesmo porque abordamos a pareidolia neste texto, não enquanto tema central mas apenas para fins introdutórios de nosso objetivo.
[2] Podemos traduzir este título como “Pareidolia facial recruta mecanismos de detecção de atenção social humana”. Aproveitamos a nota de rodapé para ressaltar que de acordo com o artigo de Palmer a pareidolia é presente não apenas em humanos, tendo sido constatada, em pesquisas com macacos rhesus, uma espécie encontrada na Ásia. Na medida em que nos aprofundamos no assunto, vemos que o fenômeno é muito mais complexo do que aparenta, mas devido ao escopo do presente trabalho, nos restringiremos a apenas poucas facetas do fenômeno que de fato nos interessam.
[4] A palavra “apofania” foi cunhada por Klaus Conrad em alemão como Apophänie, derivando do prefixo grego, “-apo“, que significa “asfantamento“, “separação“ ou “fora”, mais o sufixo “-fania“, que significa “manifestação“.
[5] Tradução sugerida por Paulo Beer, mas ainda não publicada em português.
[6] Assim como por exemplo na pareidolia, onde duas janelas e uma porta são interpretadas como um rosto, quando, na verdade, sempre se tratou e, nunca intencionou ser nada além de uma casa; ou na apofenia, quando um sujeito em processo de descadeamento esquizofrênico interpreta um trovão como signo de mau presságio, quando na verdade é, tão somente, signo de tempestade.
[7] Os textos escolhidos para tal finalidade são: “Subjetividade em tempos de pós verdade” (DUNKER, 2017), “É racional parar de argumentar” (SAFATLE, 2017), “Ilusão, convicção e mentira – Linguagem e psicopolítica da pós-verdade” (AB’SABER, 2021), “Desmentido ou a inexistência do Outro: a era da pós-verdade” (SANTOS, 2016), “O discurso da Estupidez” (DIAS, 2020) e, por último, “Considerações psicanalíticas sobre a pós-verdade e as malditas fake news” (CALDAS e MIRANDA, 2021)
[8] “We are rapidly becoming prototypes of a people that totalitarian monsters could only drool about in their dreams. All the dictators up to now have had to work hard at suppressing the truth. We, by our actions, are saying that this is no longer necessary, that we have acquired a spiritual mechanism that can denude truth of any significance. In a very fundamental way we, as a free people, have freely decided that we want to live in some post-truth world” (TESICH apud KREITNER, 2016).
[9] Chamaremos este casamento de “aliança tríplice”, e voltaremos a ele um pouco a diante deste texto.
[10] Uma ideia semelhante a esta foi abordada de maneira concisa, através a frase “O meio é a mensagem”, que se tornou uma espécie de paradigma da teoria da comunicação, desde o livro Understanding Media: The extensions of man (1964), do filósofo canadense Marshall McLuhan.