terça-feira, 26 de agosto de 2014

3 OBSERVAÇÕES EM PSICANÁLISE


FREUD: PRIMEIRAS IMPRESSÕES

FREUD, A ARTE (PRINCIPALMENTE, O CINEMA) E OS ESTUDOS CULTURAIS

NEUROSE OBSESSIVA NO FILME GAINSBOURG - O HOMEM QUE AMAVA AS MULHERES (JOANN SFAR, 2011)


Freud explica. Explica com clareza, com estilo, com riqueza de detalhes e exemplos. Parece não economizar palavras e saber escolhe-las como ninguém. Freud explica historicamente, contextualiza, depois repensa, corrige, ressalva, e anota em suas memoráveis notas de roda pé, cuja  importância da leitura é frequentemente destacada pelos orientadores do estudo da psicanálise. Freud explica através da arte e, principalmente, do mito. Mas acima de tudo, Freud explica com classe, e sua obra, ironicamente, nos hipnotiza. É fácil apaixonar-se por suas passagens marcantes, tanto devido ao poder de síntese, de máximas, como pela capacidade de desenvolver ideias não apenas abstratas como, também, complexas. Assim, seu estilo de escrita indutiva nos revela aos poucos, em suas palavras, "a construção de nosso arcabouço psicológico" (FREUD, [1900] 2001, p. 506). Veremos a seguir alguns exemplos que ilustram estas impressões.

Para iniciarmos, lembremos, então, de uma curiosa nota de rodapé, em O mal-estar na Civilização, sobre a procedência dos primeiros atos culturais da humanidade, valorizando, dentre eles, o domínio do fogo. Nesta nota Freud ensaia uma interpretação - "não inteiramente segura", o próprio adverte - do domínio do fogo como uma renúncia instintual, um prazer infantil, que seria apagar o fogo com um jato de urina. Freud, assim, assemelha a chama do fogo ao falo,  considerando a fruição do ato de apagar o fogo uma disputa homossexual:

Quem primeiro renunciou o fogo a este prazer, poupando o fogo, pode leva-lo consigo e coloca-lo ao seu serviço. Ao amortecer o fogo de sua própria excitação sexual, havia domado a força natural do fogo. Essa grande conquista natural seria então o prêmio por uma renúncia instintual. (FREUD, [1930a] 2010, p. 50)                                                                                                        

 A nota, que motivou outros psicanalistas a escreverem sobre o tema, levou Freud a retoma-la em um artigo, A conquista do Fogo (1932), para a Revista Imago, onde desenvolve esta "renúncia instintual tornada necessária" (FREUD, [1932] 2010, p. 405) relacionando-a com o mito de Prometeu, defendendo sua hipótese por meio de manobras interpretativas que levam em conta as "previsíveis distorções na passagem do fato para o conteúdo do mito" (FREUD, [1932] 2010, p. 401). Assim, demonstrou a eficácia de sua metodologia não apenas para casos clínicos, mas também para uma contribuição em direção ao entendimento mais amplo da humanidade, reafirmando a psicanálise como um estudo interdisciplinar, voltado não apenas para a medicina, mas para outras áreas.

Além do vasto emprego da mitologia para a construção da psicanálise (sendo Édipo e Narciso os mitos onipresentes nesta ciência), Freud debruçou-se também nas criações artísticas de diversos períodos. Em uma frase atribuída ao mestre, denota-se a supremacia da arte em relação a sua pesquisa e, mesmo faltando-nos a indicação exata do local e data da citação (e talvez a veracidade da atribuição), insistimos em usá-la pois podemos verifica-la por toda a obra do psicanalista: "Aonde quer que eu vá, eu descubro que um poeta esteve lá antes de mim". Caso a lacuna referencial venha prejudicar nossa constatação, podemos citar outra frase (esta confirmada bibliograficamente) do texto Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen (1907):
E os escritores criativos são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o ceú e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar. Estão bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da mente, já que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência. (FREUD [1907] 1924, p. 4-5)

Assim, confinando-se em leituras desde a infância, Freud dissecou a obra dos mais importantes artistas, conferindo a eles o mérito de conhecedores e reveladores do espírito humano, com um diferencial, se comparado a psicanálise: "é uma sutil economia da arte do poeta o fato de ele não deixar que seu herói exprima de forma aberta e integral todos os segredos de sua motivação" (FREUD, [1916] 2010, p. 260).

Ou seja, o que a psicanálise freudiana nos demostra é, em grande parte, proveniente da arte, principalmente de artistas como Goethe, Schiller e Shakespeare. Este último, "o maior dos poetas", por exemplo, serve a Freud incontáveis vezes e, para citarmos uma, escolhemos o protagonista de Ricardo III, cujas atrocidades são motivadas por uma "desvantagem congênita", ilustrando o entendimento psicanalítico de  "exceção", no texto Alguns tipos de caráter encontrados na prática psicanalítica (1916).

Em relação a Goethe, Freud percebeu e declarou que sua obra produziu sentidos posteriormente confirmados pela psicanálise, como por exemplo as "primeiras inclinações [que] tomam por objeto pessoas de nosso próprio círculo familiar", expressada pelo poeta em uma nota para sua amante: "Ah, em tempos idos foste minha irmã ou esposa" (GOETHE apud FREUD, [1930b] 2010, p. 359); ou sua percepção a respeito do conteúdo da vida onírica, designados no poema À lua:
Aquilo que, não sabido
Ou não pensado pelos homens,
No labirinto do peito
Vaga durante a noite. (ibidem, p. 360)

Schiller nos aparece como outra de suas fontes de inspiração, muitas vezes citado de forma a expressar suas próprias angústias ou glórias. Por exemplo, ao defender a psicanálise das críticas, tanto da "multidão" como "dos círculos especializados", Freud argumenta com uma frase da trilogia Wallenstein: "Se a ideia não fosse tão danadamente esperta, seríamos tentados a dizer que é realmente estúpida" (SCHILLER apud FREUD, [1933] 2010, p.302). Já para justificar sua empreitada biográfica ao tratar de Leonardo DaVinci, por exemplo, é citado outro trecho do poeta alemão: "Não pretendo 'macular o radiante e arrastar na lama o sublime'". (FREUD, [1910] 2010, p. 114)

Mas, assim como Goethe e Shakespeare, também encontramos Schiller como uma espécie de aura percursora dos descobrimentos freudianos. Em A psicologia das Massas e Análise do Eu, Freud mostra como o dístico, Sprüche, descreve a "diminuição da capacidade intelectual, experimentada pelo indivíduo que se dissolve na massa" (FREUD, [1921] 2010, p. 25). Nas palavras de Schiller, "Cada um, olhado separadamente, é passavelmente arguto e sensato;/ Se estão in corpore, logo se revelarão uns asnos" (Ibidem, p. 25)

Antes de cessar a respeito das inferências e auxílio da arte na obra de Freud, citaremos uma última. Esta refere-se a empreitada citada anteriormente; uma investigação da vida de Leonardo Da Vinci. Nela, a partir de uma pequena seleção de indícios antes relevados por outros biógrafos, Freud desconstrói a formação neurótica obsessiva do gênio, fazendo uma incursão no universo da pintura com a análise estrutural de algumas da mais valiosas concepções de Da Vinci, produzidas quando sob o patrocínio do governador de Milão, Ludovico Mouro. Dentre elas, Freud lança seu olhar aguçado no misterioso sorriso de Monna Lisa, entrelaçando, então, algumas diferenças e semelhanças entre o retrato, o quadro de San'Anna com a Virgem e o Menino e o cartão de Londres[1]. O material utilizado por Freud para construir a complexa rede que nos ensina sobre esta personalidade, vai além da pintura, passando por uma cuidadosa análise da deusa Mut, da mitologia egípcia, e uma investigação a cerca de pequenos erros gramaticais encontrados nas anotações de Da Vinci. Assim, Freud mostra a relevância dos detalhes, afirmando, em uma lição para analistas iniciantes, que "nada é pequeno demais". (FREUD, [1910] 2010, p. 193)

Um exemplo como este a cima nos remete a outra faceta dos textos de Freud. Além de fornecer conselhos ao leitor, Freud, muitas vezes, escreve em tom de desabafo, quase sempre defendendo a reputação de sua ciência contra ataques moralistas, formalidades acadêmicas e discordâncias dentro do seu círculo profissional. Este seu ímpeto "humano demasiado humano" de rebelar-se, mesmo que sempre cordialmente, pode suscitar no leitor certa afetividade e confiança. Ao valorizar as críticas e fracassos no meio psicanalítico, Freud faz transparecer sua modéstia, como que nos deixasse perceber (diferente de personalidades que colocam-se acima de qualquer suspeita) a importância conferida, a ponto de pesquisar e ler, sobre o que é dito a seu respeito e de sua ciência. Mesmo que, por vezes, negue sentir-se afetado pela oposição, como na ocasião em que comparou-se com Breuer ao receberem, de um conhecido neurologista, uma resenha pouco elogiosa da publicação dos Estudos de Histeria: "eu fui capaz de rir da crítica insensata, mas Breuer magoou-se e perdeu o alento" (FREUD, [1925] 2010, p. 98). Já em relação a Jung, após o rompimento, Freud demonstra uma certa crueldade cínica, como vemos ainda na "Autobiografia": "Para primeiro presidente favoreci a escolha de C. G. Jung, uma medida realmente infeliz, como depois se verificou" (FREUD, [1925] 2010, p. 136). Outras vezes, na maior parte, suas advertências são indiretas, aparentemente impessoais, porém bastante pontuais e com um toque de humor:
Ao longo desses anos, li cerca de uma dúzia de vezes, em informes sobre as atividades de certo congressos e encontros de sociedades científicas, que a psicanálise estava definitivamente liquidada! A resposta teria de ser como o telegrama que Mark Twain enviou ao jornal que erradamente noticiara a sua morte: "Notícia de meu passamento fortemente exagerada". Após cada uma dessas declarações de que havia morrido, a psicanálise adquiriu novos seguidores e colaboradores e fundou novos órgãos. Ser declarada morta não deixa de ser um progresso em relação a ser enterrada em silêncio! (FREUD, [1914] 2010, p. 283)

Enriquecido por essas passagens de menor importância científica, mas de enorme valor para quem estuda levando em conta a subjetividade do autor, do estudo dos primórdios da vida psíquica, até a relação do ser humano  com a morte e com guerra, Freud traça os parâmetros de uma ciência que permite uma análise individual dos meandros da formação da personalidade, enfrentando dogmas (assim como qualquer cientista que se preze) e abrindo caminho para um século cujos hábitos sociais sofreram grandes mudanças, muitas vezes ditadas a partir de suas ideia.

A importância de Freud é fundamental, pontuada diariamente nas diversas análises sociais; seja em colunas de jornais, livros, artigos, exposições de arte ou filmes. O interesse por Freud atinge todas as classes, mas, principalmente, a dos artistas e intelectuais. Dos cineastas mais escancaradamente freudianos, como Buñuel, Hitchcock, Bergman, Woody Allen e Lars Von Trier, até os filmes não autorais, blockbusters, que aparentemente nada pretendem "com Freud", dificilmente uma história passa ilesa pela psicanálise. As referências estão sempre lá, mesmo que o filme não trate de seres humanos.

Assim, após a fundação da psicanálise, não apenas a arte ganhou um novo tema (como o surrealismo, que talvez não tivesse existido sem ela), mas, também, a crítica literária ganhou uma nova ferramenta para analisar qualquer tema tratado pela poética. Ora, o próprio Freud cunhou a arte como uma das mais nobres atividades desenvolvidas pelo aparelho psíquico como forma de sublimação, logo qualquer concepção artística é passível pelo crivo da psicanálise.

Assim como Salvador Dali foi magnetizado pela teoria do sonho, hoje a psicanálise continua cativando novos adeptos e crescendo para diversas áreas de pesquisa. Frequentemente relacionada ao marxismo, um dos caminhos prosseguidos por essa ciência foi o da crítica social e dos estudos culturais - assim como Freud propôs tantas vezes como em A psicologia das massas e análise do Eu (1921), O mal-estar na civilização (1930a) ou na Revista Imago. Dentre os adeptos pode-se destacar o pensador (filósofo, psicanalista, sociólogo) esloveno, Slavoj Zizek. Partindo de uma leitura cuidadosa de Lacan (e consequentemente de Freud), Marx e Hegel, Zizek concentra o seu trabalho na análise da sociedade por meio dos discursos ideológicos que encontra em produções culturais, principalmente as mais populares. Suas análises, quase sempre inusitadas, atraem a atenção da mídia, e sem dúvida, na pior das hipóteses, fazem um bom trabalho de divulgação científica para o pai da psicanálise, através de uma linguagem bastante acessível.

Tendo colocado minhas primeiras impressões a respeito da psicanálise e, em seguida, afirmado a existência de uma relação praticamente insolúvel entre ela e a arte, devemos, agora, arriscar, mesmo que brevemente, extrair algum elemento da enorme construção de Freud para aplicá-lo a uma manifestação artística. Assim, como exemplo citamos a provocação do cantor francês, Serge Gainsbourg, a toda a sociedade ao gravar a música "Lemon Incest" (1984) junto com sua filha, Charlotte Gainsbourg. Como o próprio título da canção explicita, trata-se do amor incestuoso que, como se não bastasse para enfurecer os moralistas de plantão, foi acompanhada por um vídeoclip, onde pai e filha cantam em cima de uma cama: ela, com 12 anos, de camisa e calcinha; ele, com mais de 50 anos, apenas vestido com uma calça jeans. A letra, bastante sucinta, é suficiente para chocar semelhantemente como a sociedade vitoriana chocou-se com a teoria da sexualidade nas crianças na virada do século 18 para o 19.


Lemon Incest

Inceste de citron
lemon incest
Je t'aime, l'amour, je t'aime plus que tout
Naïf comme écran de Nierdoi Sseaurou
Tes baisers sont aussi ???
Inceste de citron
lemon incest
Je t'aime, l'amour, je t'aime plus que tout
L'amour que nous ???
C'est le plus beau, le plus violent
Le plus pur, plus ??
Il excuse, excuse
Délicieux enfant
Ma viande et mon sang
Oh mon bébé, mon âme
Inceste de citron
lemon incest
Je t'aime, l'amour, je t'aime plus que tout
Naïf comme écran de Nierdoi Sseaurou
Tes baisers sont aussi ???
Inceste de citron
lemon incest
Je t'aime, l'amour, je t'aime plus que tout
L'amour que nous ???
C'est le plus beau, le plus violent
Le plus pur, plus ???
Il excuse, excuse
Délicieux enfant
Ma viande et mon sang
Oh mon bébé, mon âme
Incest de citron
lemon incest

Incesto de Limão

Incesto de limão
Incesto de limão
Eu te amo, amo, te amo mais que tudo
Ingênuo como uma tela de Nierdoi Sseaurou
Os teus beijos são tão doces
Incesto de limão
Incesto de limão
Eu te amo, amo, te amo mais que tudo
O amor que nós nunca vivemos juntos
É o mais belo, o mais violento
O mais puro, o mais inebriante
Desculpe, desculpe
Deliciosa criança
Minha carne e o meu sangue
Oh meu bebê, minha alma
Incesto de limão
Eu te amo, amo, te amo mais que tudo
Ingênuo como uma tela de Nierdoi S[...]
Os teus beijos são tão doces
Incesto de limão
Incesto de limão
Eu te amo, amo, te amo mais que tudo
O amor que nós nunca vivemos juntos
É o mais belo, o mais violento
O mais puro, o mais inebriante
Desculpe, desculpe
Deliciosa criança
Minha carne e o meu sangue
Oh meu bebê, minha alma
Incesto de limão
Incesto de limão



Com uma personalidade forte e sedutora, esta não foi a primeira vez que Serge Gainsbourg provocou a opinião pública. Em 1969, junto com Jane Birkin, sua então amante e futura mãe de Charlotte, ele gravou a canção "Je t'aime... moi non plus". Apesar de ter sido um grande sucesso, a música foi proibida em diversos países devido ao seu conteúdo erótico. Originalmente escrita e gravada, em 1967, em parceria com outra de suas célebres amantes, Brigitte Bardot, não foi possível, então, lançar a música, pois Bardot era casada com outro homem, ficando famosa, portanto, após dois anos na voz de Birkin.

Este episódio da vida do cantor francês é contado no filme-biografia Gainsbourg - O Homem que amava as mulheres (Joann Sfar, 2011), e, tendo em vista a dificuldade em acessar o real, o verídico da vida do cantor, e o objetivo deste artigo (uma aplicação da teoria psicanalítica e não o desvelamento de uma personalidade histórica), é a partir deste filme que verificaremos as possibilidades de fazer uma análise, não factual, mas da representação, do Gainsbourg personagem do cinema.

O filme, baseado em fatos reais, mistura-se com a experiência do diretor que, por sua vez, antes de estrear no cinema, era (e continua sendo) autor histórias de ficção em quadrinhos. Bastante autoral, desta forma, ele não propõe uma biografia fidedigna, mas uma homenagem ao cantor, o que é justificado por Joann Sfar em um depoimento escrito ao término do filme, antes dos créditos rolarem: "Amo demais Gainsbourg para trazê-lo à realidade. Não são as verdades dele que me interessam, são suas mentiras".

Podemos, então, listar algumas perspectivas para análise do personagem Gainsbourg no filme: a) O surgimento de um "amigo imaginário" na infância  para lidar com o trauma da guerra, atribuído a um menino judeu habitando a Paris invadida pelos nazistas; b) Como este "amigo imaginário" ganhou proporções de um superego (ou alterego? fica a dúvida) que,  paradoxalmente, através de uma intensa pulsão de vida, catexizava um comportamento autodestrutivo; c) Como sua constituição edipiana favoreceu o seu fortalecimento artístico e comprovou que este "amigo imaginário" não é sintoma de uma patologia psicótica, mas sim, uma compensação diante de frustrações e traumas.










O amigo imaginário de Gainsbourg na infância e na maturidade

 

Sabemos da possibilidade de outras perspectivas interessantes para análise, mas no momento, ficaremos com essas. E para este texto, por uma razão de limites (conhecimento, espaço e tempo) focaremos apenas na última, c), defendendo uma formação de sintomas neuróticos perante traumas sociais e frustrações familiares.

Filho de um pianista e uma dona de casa, Gainsbourg (nascido Lucien Ginsburg) era artisticamente dotado e aos 11 anos estava matriculado na Academia de Pintura de Montmatre. Ainda nesta idade, rebelou-se contra o seu pai quando viu-se obrigado a tocar piano. Em uma virada edipiana bem sucedida aproveitou o "amigo imaginário" que havia criado para lidar com o nazismo (caricatura dos judeus, com a cabeça imensamente maior que o corpo, quatro braços e quatro pernas), transformando-o em outro monstruoso, porém elegante, amigo que, na sua imaginação tocava piano nos bares parisienses, assim com seu pai. E foi através deste "amigo" que Gainsbourg encontrou o caminho para identificar-se com a figura paterna. Após esta disputa, vencida de forma terna pelo filho, os dois alcançaram uma relação saudável de admiração, onde o papel da mãe foi o de proteger o filho dos eventuais ímpetos, considerados por ela, agressivos do pai, sem no entanto sair de seu lugar de esposa.

Dentro deste cenário, Gainsbourg consegue delinear uma neurose obsessiva, recalcando o ódio pelo seu pai através da formação substitutiva de seus representantes  instintuais - a identificação - que não se sustentará na medida em que a vida avança, levando-o a deslocar este afeto negativo e colocando "em jogo uma mecanismo de fuga por meio de proibição e escapatórias" (FREUD, [1915] 2010, p. 136). No caso de nosso personagem, a "escapatória" levaram-no a uma intensa dedicação à arte e à  compulsão por cigarro e álcool, tornando-o não apenas um maravilhoso artista mas, também, um alcólatra; um obsessivo compulsivo. Porém não podemos deixar de levar em conta, como motivo da sublimação e compulsão, a intensa pulsão de vida, provocada pelo trauma da guerra. Ora, paradoxalmente, até mesmo a autodestruição é sintomática do excesso da pulsão de vida, pois quando brinca-se com a morte, depara-se com a vida. Mas não é apenas através deste paradoxo que enxergamos a predominância de Eros nesta narrativa errante: Eros, a pulsão de vida, está presente também no óbvio, no lado erótico que marcou a figura do cantor, um mito da cultura pop francesa e do romance.

Em um artigo mais extenso e dedicado, seria interessante analisar com mais afinco, toda a formação psíquica do cantor ou de sua representação, seja no cinema ou na literatura. Vale lembrar, para finalizar, que Serge Gainsbourg interessava-se por psicanálise[2] e, provavelmente, estava consciente de sua relação provocadora frente a sociedade, mesmo porque o entendemos aqui, hipoteticamente, como um neurótico (que entende as "regras") e não um psicótico (que não consegue estabelecer um vínculo com a realidade).


BIBLIOGRAFIA (ORDEM CRONOLÓGICA ORIGINAL)

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. [1900]. Trad. Walderedo Ismael de Oliveira. Rio de janeiro: Imago Ed., 2001.

__________ "Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen" [1907]. In: Freud, Sigmund. Obras Completas volume IX (1906-1908): "Gradiva" de Jensen e outros trabalhos. Trad. James Strachey (inglês). Disponível em: < http://www.ebah.com.br/content/ABAAABnW0AA/vol-9-gradiva-jensen-outros-trabalhos>. Acesso: 22 de agosto, 2014.


__________ "Uma recordação de infância de Leonardo Da Vinci" [1910]. In: Freud, Sigmund. Obras Completas volume 9: Observações sobre um caso de neurose absessiva [o homem dos ratos], Uma recordação de infância de Leonardo Da Vinci e outros textos (1909-1910). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.



__________ "Contribuição à historia do movimento psicanalítico" [1914]. In: Freud, Sigmund. Obras Completas volume 11: Totem e tabu, Contribuição a Historia do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

__________ "A Repressão" [1915]. In: Freud, Sigmund. Obras Completas volume 12: Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.


__________ "Alguns tipos de caráter encontrados na prática psicanalítica" [1916]. In: Freud, Sigmund. Obras Completas volume 12: Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

__________ "Psicologia das Massas e Análise do Eu" [1921]. In: Freud, Sigmund. Obras Completas volume 15: Psicologia das Massas e Análise do Eu e outros textos (1920-1923). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

__________ "Autobiografia" [1925].  In: Freud, Sigmund. Obras Completas volume 16: O eu e o id, Autobiografia e outros textos (1923-1925). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

__________ "O mal-estar na civilização" [1930a]. In: Freud, Sigmund. Obras Completas volume 18: O mal-estar na civilização, Novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.


__________ "Prêmio Goethe" [1930b]. In: Freud, Sigmund. Obras Completas volume 18: O mal-estar na civilização, Novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

__________ "A conquista do fogo" [1932].  In: Freud, Sigmund. Obras Completas volume 18: O mal-estar na civilização, Novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

__________ "Novas conferências introdutórias" [1933]. In: Freud, Sigmund. Obras Completas volume 18: O mal-estar na civilização, Novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.






[1] O cartão de Londres, também chamado de "cartão da casa de Burlington", é um desenho de Leonardo da Vinci, encontrado em uma das folhas dos seus diários. Está no acervo do London National Gallery.

[2] De acordo com a biografia Serge Gainsbourg - Um Punhado de Gitanes (Sylvie Simmons, 2004, editora Barracuda), o cantor era fortemente influenciado pelo amigo Dali, que, por sua vez, era obcecado por psicanálise.

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