FREUD: PRIMEIRAS IMPRESSÕES
FREUD, A ARTE (PRINCIPALMENTE, O CINEMA) E OS ESTUDOS CULTURAIS
NEUROSE OBSESSIVA NO FILME GAINSBOURG - O HOMEM QUE AMAVA AS MULHERES (JOANN SFAR, 2011)
Freud explica.
Explica com clareza, com estilo, com riqueza de detalhes e exemplos. Parece não
economizar palavras e saber escolhe-las como ninguém. Freud explica
historicamente, contextualiza, depois repensa, corrige, ressalva, e anota em suas
memoráveis notas de roda pé, cuja importância
da leitura é frequentemente destacada pelos orientadores do estudo da
psicanálise. Freud explica através da arte e, principalmente, do mito. Mas
acima de tudo, Freud explica com classe, e sua obra, ironicamente, nos
hipnotiza. É fácil apaixonar-se por suas passagens marcantes, tanto devido ao
poder de síntese, de máximas, como pela capacidade de desenvolver ideias não
apenas abstratas como, também, complexas. Assim, seu estilo de escrita indutiva
nos revela aos poucos, em suas palavras, "a construção de nosso arcabouço psicológico"
(FREUD, [1900] 2001, p. 506). Veremos a seguir alguns exemplos que ilustram
estas impressões.
Para iniciarmos,
lembremos, então, de uma curiosa nota de rodapé, em O mal-estar na Civilização,
sobre a procedência dos primeiros atos culturais da humanidade, valorizando,
dentre eles, o domínio do fogo. Nesta nota Freud ensaia uma interpretação -
"não inteiramente segura", o próprio adverte - do domínio do fogo como
uma renúncia instintual, um prazer infantil, que seria apagar o fogo com um
jato de urina. Freud, assim, assemelha a chama do fogo ao falo, considerando a fruição do ato de apagar o
fogo uma disputa homossexual:
Quem primeiro
renunciou o fogo a este prazer, poupando o fogo, pode leva-lo consigo e
coloca-lo ao seu serviço. Ao amortecer o fogo de sua própria excitação sexual,
havia domado a força natural do fogo. Essa grande conquista natural seria então
o prêmio por uma renúncia instintual. (FREUD, [1930a] 2010, p. 50)
A nota, que motivou outros psicanalistas a
escreverem sobre o tema, levou Freud a retoma-la em um artigo, A conquista do Fogo (1932), para a
Revista Imago, onde desenvolve esta "renúncia instintual tornada
necessária" (FREUD, [1932] 2010, p. 405) relacionando-a com o mito de
Prometeu, defendendo sua hipótese por meio de manobras interpretativas que
levam em conta as "previsíveis distorções na passagem do fato para o
conteúdo do mito" (FREUD, [1932] 2010, p. 401). Assim, demonstrou a
eficácia de sua metodologia não apenas para casos clínicos, mas também para uma
contribuição em direção ao entendimento mais amplo da humanidade, reafirmando a
psicanálise como um estudo interdisciplinar, voltado não apenas para a
medicina, mas para outras áreas.
Além do vasto
emprego da mitologia para a construção da psicanálise (sendo Édipo e Narciso os
mitos onipresentes nesta ciência), Freud debruçou-se também nas criações
artísticas de diversos períodos. Em uma frase atribuída ao mestre, denota-se a
supremacia da arte em relação a sua pesquisa e, mesmo faltando-nos a indicação
exata do local e data da citação (e talvez a veracidade da atribuição),
insistimos em usá-la pois podemos verifica-la por toda a obra do psicanalista:
"Aonde quer que eu vá, eu descubro que um poeta esteve lá antes de
mim". Caso a lacuna referencial venha prejudicar nossa constatação, podemos
citar outra frase (esta confirmada bibliograficamente) do texto Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen (1907):
E os escritores
criativos são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta
conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o ceú e a
terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar. Estão bem
adiante de nós, gente comum, no conhecimento da mente, já que se nutrem em
fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência. (FREUD
[1907] 1924, p. 4-5)
Assim, confinando-se
em leituras desde a infância, Freud dissecou a obra dos mais importantes
artistas, conferindo a eles o mérito de conhecedores e reveladores do espírito
humano, com um diferencial, se comparado a psicanálise: "é uma sutil
economia da arte do poeta o fato de ele não deixar que seu herói exprima de
forma aberta e integral todos os segredos de sua motivação" (FREUD, [1916]
2010, p. 260).
Ou seja, o que a
psicanálise freudiana nos demostra é, em grande parte, proveniente da arte,
principalmente de artistas como Goethe, Schiller e Shakespeare. Este último,
"o maior dos poetas", por exemplo, serve a Freud incontáveis vezes e,
para citarmos uma, escolhemos o protagonista de Ricardo III, cujas atrocidades são motivadas por uma "desvantagem
congênita", ilustrando o entendimento psicanalítico de "exceção", no texto Alguns tipos de caráter encontrados na
prática psicanalítica (1916).
Em relação a Goethe,
Freud percebeu e declarou que sua obra produziu sentidos posteriormente
confirmados pela psicanálise, como por exemplo as "primeiras inclinações
[que] tomam por objeto pessoas de nosso próprio círculo familiar",
expressada pelo poeta em uma nota para sua amante: "Ah, em tempos idos
foste minha irmã ou esposa" (GOETHE apud FREUD, [1930b] 2010, p. 359); ou
sua percepção a respeito do conteúdo da vida onírica, designados no poema À lua:
Aquilo que, não sabido
Ou não pensado pelos homens,
No labirinto do peito
Vaga durante a noite. (ibidem, p. 360)
Schiller nos aparece
como outra de suas fontes de inspiração, muitas vezes citado de forma a
expressar suas próprias angústias ou glórias. Por exemplo, ao defender a
psicanálise das críticas, tanto da "multidão" como "dos círculos
especializados", Freud argumenta com uma frase da trilogia Wallenstein: "Se a ideia não fosse
tão danadamente esperta, seríamos tentados a dizer que é realmente estúpida"
(SCHILLER apud FREUD, [1933] 2010, p.302). Já para justificar sua empreitada
biográfica ao tratar de Leonardo DaVinci, por exemplo, é citado outro trecho do
poeta alemão: "Não pretendo 'macular o radiante e arrastar na lama o
sublime'". (FREUD, [1910] 2010, p. 114)
Mas, assim como
Goethe e Shakespeare, também encontramos Schiller como uma espécie de aura
percursora dos descobrimentos freudianos. Em A psicologia das Massas e Análise do Eu, Freud mostra como o dístico, Sprüche, descreve a "diminuição da
capacidade intelectual, experimentada pelo indivíduo que se dissolve na massa"
(FREUD, [1921] 2010, p. 25). Nas palavras de Schiller, "Cada um, olhado
separadamente, é passavelmente arguto e sensato;/ Se estão in corpore, logo se revelarão uns asnos" (Ibidem, p. 25)
Antes de cessar a
respeito das inferências e auxílio da arte na obra de Freud, citaremos uma
última. Esta refere-se a empreitada citada anteriormente; uma investigação da
vida de Leonardo Da Vinci. Nela, a partir de uma pequena seleção de indícios
antes relevados por outros biógrafos, Freud desconstrói a formação neurótica
obsessiva do gênio, fazendo uma incursão no universo da pintura com a análise
estrutural de algumas da mais valiosas concepções de Da Vinci, produzidas
quando sob o patrocínio do governador de Milão, Ludovico Mouro. Dentre elas,
Freud lança seu olhar aguçado no misterioso sorriso de Monna Lisa, entrelaçando, então, algumas diferenças e semelhanças
entre o retrato, o quadro de San'Anna com
a Virgem e o Menino e o cartão de Londres[1].
O material utilizado por Freud para construir a complexa rede que nos ensina
sobre esta personalidade, vai além da pintura, passando por uma cuidadosa análise
da deusa Mut, da mitologia egípcia, e uma investigação a cerca de pequenos
erros gramaticais encontrados nas anotações de Da Vinci. Assim, Freud mostra a
relevância dos detalhes, afirmando, em uma lição para analistas iniciantes, que
"nada é pequeno demais". (FREUD, [1910] 2010, p. 193)
Um exemplo como
este a cima nos remete a outra faceta dos textos de Freud. Além de fornecer
conselhos ao leitor, Freud, muitas vezes, escreve em tom de desabafo, quase
sempre defendendo a reputação de sua ciência contra ataques moralistas, formalidades
acadêmicas e discordâncias dentro do seu círculo profissional. Este seu ímpeto
"humano demasiado humano" de rebelar-se, mesmo que sempre cordialmente,
pode suscitar no leitor certa afetividade e confiança. Ao valorizar as críticas
e fracassos no meio psicanalítico, Freud faz transparecer sua modéstia, como
que nos deixasse perceber (diferente de personalidades que colocam-se acima de qualquer
suspeita) a importância conferida, a ponto de pesquisar e ler, sobre o que é dito
a seu respeito e de sua ciência. Mesmo que, por vezes, negue sentir-se afetado
pela oposição, como na ocasião em que comparou-se com Breuer ao receberem, de
um conhecido neurologista, uma resenha pouco elogiosa da publicação dos Estudos de Histeria: "eu fui capaz
de rir da crítica insensata, mas Breuer magoou-se e perdeu o alento" (FREUD,
[1925] 2010, p. 98). Já em relação a Jung, após o rompimento, Freud demonstra
uma certa crueldade cínica, como vemos ainda na "Autobiografia":
"Para primeiro presidente favoreci a escolha de C. G. Jung, uma medida
realmente infeliz, como depois se verificou" (FREUD, [1925] 2010, p. 136). Outras
vezes, na maior parte, suas advertências são indiretas, aparentemente
impessoais, porém bastante pontuais e com um toque de humor:
Ao longo desses anos, li cerca de uma dúzia de vezes,
em informes sobre as atividades de certo congressos e encontros de sociedades
científicas, que a psicanálise estava definitivamente liquidada! A resposta
teria de ser como o telegrama que Mark Twain enviou ao jornal que erradamente
noticiara a sua morte: "Notícia de meu
passamento fortemente exagerada". Após cada uma dessas declarações de
que havia morrido, a psicanálise adquiriu novos seguidores e colaboradores e
fundou novos órgãos. Ser declarada morta não deixa de ser um progresso em
relação a ser enterrada em silêncio! (FREUD, [1914] 2010, p. 283)
Enriquecido por
essas passagens de menor importância científica, mas de enorme valor para quem
estuda levando em conta a subjetividade do autor, do estudo dos primórdios da
vida psíquica, até a relação do ser humano
com a morte e com guerra, Freud traça os parâmetros de uma ciência que
permite uma análise individual dos meandros da formação da personalidade,
enfrentando dogmas (assim como qualquer cientista que se preze) e abrindo
caminho para um século cujos hábitos sociais sofreram grandes mudanças, muitas
vezes ditadas a partir de suas ideia.
A importância de
Freud é fundamental, pontuada diariamente nas diversas análises sociais; seja
em colunas de jornais, livros, artigos, exposições de arte ou filmes. O
interesse por Freud atinge todas as classes, mas, principalmente, a dos
artistas e intelectuais. Dos cineastas mais escancaradamente freudianos, como
Buñuel, Hitchcock, Bergman, Woody Allen e Lars Von Trier, até os filmes não
autorais, blockbusters, que
aparentemente nada pretendem "com Freud", dificilmente uma história
passa ilesa pela psicanálise. As referências estão sempre lá, mesmo que o filme
não trate de seres humanos.
Assim, após a
fundação da psicanálise, não apenas a arte ganhou um novo tema (como o surrealismo,
que talvez não tivesse existido sem ela), mas, também, a crítica literária
ganhou uma nova ferramenta para analisar qualquer tema tratado pela poética.
Ora, o próprio Freud cunhou a arte como uma das mais nobres atividades
desenvolvidas pelo aparelho psíquico como forma de sublimação, logo qualquer
concepção artística é passível pelo crivo da psicanálise.
Assim como
Salvador Dali foi magnetizado pela teoria do sonho, hoje a psicanálise continua
cativando novos adeptos e crescendo para diversas áreas de pesquisa.
Frequentemente relacionada ao marxismo, um dos caminhos prosseguidos por essa
ciência foi o da crítica social e dos estudos culturais - assim como Freud
propôs tantas vezes como em A psicologia
das massas e análise do Eu (1921), O mal-estar
na civilização (1930a) ou na Revista Imago. Dentre os adeptos pode-se
destacar o pensador (filósofo, psicanalista, sociólogo) esloveno, Slavoj Zizek.
Partindo de uma leitura cuidadosa de Lacan (e consequentemente de Freud), Marx
e Hegel, Zizek concentra o seu trabalho na análise da sociedade por meio dos
discursos ideológicos que encontra em produções culturais, principalmente as
mais populares. Suas análises, quase sempre inusitadas, atraem a atenção da
mídia, e sem dúvida, na pior das hipóteses, fazem um bom trabalho de divulgação
científica para o pai da psicanálise, através de uma linguagem bastante
acessível.
Tendo colocado
minhas primeiras impressões a respeito da psicanálise e, em seguida, afirmado a
existência de uma relação praticamente insolúvel entre ela e a arte, devemos,
agora, arriscar, mesmo que brevemente, extrair algum elemento da enorme
construção de Freud para aplicá-lo a uma manifestação artística. Assim, como
exemplo citamos a provocação do cantor francês, Serge Gainsbourg, a toda a
sociedade ao gravar a música "Lemon Incest" (1984) junto com sua
filha, Charlotte Gainsbourg. Como o próprio título da canção explicita,
trata-se do amor incestuoso que, como se não bastasse para enfurecer os
moralistas de plantão, foi acompanhada por um vídeoclip, onde pai e filha cantam em cima de uma cama: ela, com 12
anos, de camisa e calcinha; ele, com mais de 50 anos, apenas vestido com uma
calça jeans. A letra, bastante sucinta, é suficiente para chocar semelhantemente
como a sociedade vitoriana chocou-se com a teoria da sexualidade nas crianças
na virada do século 18 para o 19.
Lemon Incest
Inceste
de citron
lemon incest
Je t'aime, l'amour, je t'aime plus que tout
Naïf comme écran de Nierdoi Sseaurou
Tes baisers sont aussi ???
Inceste de citron
lemon incest
Je t'aime, l'amour, je t'aime plus que tout
L'amour que nous ???
C'est le plus beau, le plus violent
Le plus pur, plus ??
Il excuse, excuse
Délicieux enfant
Ma viande et mon sang
Oh mon bébé, mon âme
Inceste de citron
lemon incest
Je t'aime, l'amour, je t'aime plus que tout
Naïf comme écran de Nierdoi Sseaurou
Tes baisers sont aussi ???
Inceste de citron
lemon incest
Je t'aime, l'amour, je t'aime plus que tout
L'amour que nous ???
C'est le plus beau, le plus violent
Le plus pur, plus ???
Il excuse, excuse
Délicieux enfant
Ma viande et mon sang
Oh mon bébé, mon âme
Incest de citron
lemon incest
lemon incest
Je t'aime, l'amour, je t'aime plus que tout
Naïf comme écran de Nierdoi Sseaurou
Tes baisers sont aussi ???
Inceste de citron
lemon incest
Je t'aime, l'amour, je t'aime plus que tout
L'amour que nous ???
C'est le plus beau, le plus violent
Le plus pur, plus ??
Il excuse, excuse
Délicieux enfant
Ma viande et mon sang
Oh mon bébé, mon âme
Inceste de citron
lemon incest
Je t'aime, l'amour, je t'aime plus que tout
Naïf comme écran de Nierdoi Sseaurou
Tes baisers sont aussi ???
Inceste de citron
lemon incest
Je t'aime, l'amour, je t'aime plus que tout
L'amour que nous ???
C'est le plus beau, le plus violent
Le plus pur, plus ???
Il excuse, excuse
Délicieux enfant
Ma viande et mon sang
Oh mon bébé, mon âme
Incest de citron
lemon incest
Incesto de Limão
Incesto
de limão
Incesto de limão
Eu te amo, amo, te amo mais que tudo
Ingênuo como uma tela de Nierdoi Sseaurou
Os teus beijos são tão doces
Incesto de limão
Incesto de limão
Eu te amo, amo, te amo mais que tudo
O amor que nós nunca vivemos juntos
É o mais belo, o mais violento
O mais puro, o mais inebriante
Desculpe, desculpe
Deliciosa criança
Minha carne e o meu sangue
Oh meu bebê, minha alma
Incesto de limão
Eu te amo, amo, te amo mais que tudo
Ingênuo como uma tela de Nierdoi S[...]
Incesto de limão
Eu te amo, amo, te amo mais que tudo
Ingênuo como uma tela de Nierdoi Sseaurou
Os teus beijos são tão doces
Incesto de limão
Incesto de limão
Eu te amo, amo, te amo mais que tudo
O amor que nós nunca vivemos juntos
É o mais belo, o mais violento
O mais puro, o mais inebriante
Desculpe, desculpe
Deliciosa criança
Minha carne e o meu sangue
Oh meu bebê, minha alma
Incesto de limão
Eu te amo, amo, te amo mais que tudo
Ingênuo como uma tela de Nierdoi S[...]
Os
teus beijos são tão doces
Incesto de limão
Incesto de limão
Eu te amo, amo, te amo mais que tudo
O amor que nós nunca vivemos juntos
É o mais belo, o mais violento
O mais puro, o mais inebriante
Desculpe, desculpe
Deliciosa criança
Minha carne e o meu sangue
Oh meu bebê, minha alma
Incesto de limão
Incesto de limão
Incesto de limão
Incesto de limão
Eu te amo, amo, te amo mais que tudo
O amor que nós nunca vivemos juntos
É o mais belo, o mais violento
O mais puro, o mais inebriante
Desculpe, desculpe
Deliciosa criança
Minha carne e o meu sangue
Oh meu bebê, minha alma
Incesto de limão
Incesto de limão
Com uma
personalidade forte e sedutora, esta não foi a primeira vez que Serge
Gainsbourg provocou a opinião pública. Em 1969, junto com Jane Birkin, sua
então amante e futura mãe de Charlotte, ele gravou a canção "Je t'aime...
moi non plus". Apesar de ter sido um grande sucesso, a música foi proibida
em diversos países devido ao seu conteúdo erótico. Originalmente escrita e
gravada, em 1967, em parceria com outra de suas célebres amantes, Brigitte
Bardot, não foi possível, então, lançar a música, pois Bardot era casada com
outro homem, ficando famosa, portanto, após dois anos na voz de Birkin.
Este episódio da
vida do cantor francês é contado no filme-biografia Gainsbourg - O Homem que amava as mulheres (Joann Sfar, 2011), e,
tendo em vista a dificuldade em acessar o real, o verídico da vida do cantor, e
o objetivo deste artigo (uma aplicação da teoria psicanalítica e não o
desvelamento de uma personalidade histórica), é a partir deste filme que verificaremos
as possibilidades de fazer uma análise, não factual, mas da representação, do Gainsbourg
personagem do cinema.
O filme, baseado
em fatos reais, mistura-se com a experiência do diretor que, por sua vez, antes
de estrear no cinema, era (e continua sendo) autor histórias de ficção em
quadrinhos. Bastante autoral, desta forma, ele não propõe uma biografia
fidedigna, mas uma homenagem ao cantor, o que é justificado por Joann Sfar em
um depoimento escrito ao término do filme, antes dos créditos rolarem:
"Amo demais Gainsbourg para trazê-lo à realidade. Não são as verdades dele
que me interessam, são suas mentiras".
Podemos, então,
listar algumas perspectivas para análise do personagem Gainsbourg no filme: a) O
surgimento de um "amigo imaginário" na infância para lidar com o trauma da guerra, atribuído a
um menino judeu habitando a Paris invadida pelos nazistas; b) Como este
"amigo imaginário" ganhou proporções de um superego (ou alterego?
fica a dúvida) que, paradoxalmente,
através de uma intensa pulsão de vida, catexizava um comportamento autodestrutivo;
c) Como sua constituição edipiana favoreceu o seu fortalecimento artístico e
comprovou que este "amigo imaginário" não é sintoma de uma patologia
psicótica, mas sim, uma compensação diante de frustrações e traumas.
O amigo imaginário de
Gainsbourg na infância e na maturidade
Sabemos da
possibilidade de outras perspectivas interessantes para análise, mas no
momento, ficaremos com essas. E para este texto, por uma razão de limites
(conhecimento, espaço e tempo) focaremos apenas na última, c), defendendo uma
formação de sintomas neuróticos perante traumas sociais e frustrações
familiares.
Filho de um
pianista e uma dona de casa, Gainsbourg (nascido Lucien Ginsburg) era
artisticamente dotado e aos 11 anos estava matriculado na Academia de Pintura
de Montmatre. Ainda nesta idade, rebelou-se contra o seu pai quando viu-se
obrigado a tocar piano. Em uma virada edipiana bem sucedida aproveitou o "amigo
imaginário" que havia criado para lidar com o nazismo (caricatura dos
judeus, com a cabeça imensamente maior que o corpo, quatro braços e quatro
pernas), transformando-o em outro monstruoso, porém elegante, amigo que, na sua
imaginação tocava piano nos bares parisienses, assim com seu pai. E foi através
deste "amigo" que Gainsbourg encontrou o caminho para identificar-se
com a figura paterna. Após esta disputa, vencida de forma terna pelo filho, os dois
alcançaram uma relação saudável de admiração, onde o papel da mãe foi o de
proteger o filho dos eventuais ímpetos, considerados por ela, agressivos do
pai, sem no entanto sair de seu lugar de esposa.
Dentro deste
cenário, Gainsbourg consegue delinear uma neurose obsessiva, recalcando o ódio
pelo seu pai através da formação substitutiva de seus representantes instintuais - a identificação - que não se
sustentará na medida em que a vida avança, levando-o a deslocar este afeto
negativo e colocando "em jogo uma mecanismo de fuga por meio de proibição
e escapatórias" (FREUD, [1915] 2010, p. 136). No caso de nosso personagem, a
"escapatória" levaram-no a uma intensa dedicação à arte e à compulsão por cigarro e álcool, tornando-o não
apenas um maravilhoso artista mas, também, um alcólatra; um obsessivo
compulsivo. Porém não podemos deixar de levar em conta, como motivo da
sublimação e compulsão, a intensa pulsão de vida, provocada pelo trauma da
guerra. Ora, paradoxalmente, até mesmo a autodestruição é sintomática do
excesso da pulsão de vida, pois quando brinca-se com a morte, depara-se com a
vida. Mas não é apenas através deste paradoxo que enxergamos a predominância de
Eros nesta narrativa errante: Eros, a pulsão de vida, está presente também no
óbvio, no lado erótico que marcou a figura do cantor, um mito da cultura pop
francesa e do romance.
Em um artigo mais
extenso e dedicado, seria interessante analisar com mais afinco, toda a
formação psíquica do cantor ou de sua representação, seja no cinema ou na
literatura. Vale lembrar, para finalizar, que Serge Gainsbourg interessava-se
por psicanálise[2]
e, provavelmente, estava consciente de sua relação provocadora frente a
sociedade, mesmo porque o entendemos aqui, hipoteticamente, como um neurótico (que
entende as "regras") e não um psicótico (que não consegue estabelecer
um vínculo com a realidade).
BIBLIOGRAFIA (ORDEM CRONOLÓGICA ORIGINAL)
FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. [1900]. Trad.
Walderedo Ismael de Oliveira. Rio de janeiro: Imago Ed., 2001.
__________ "Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen"
[1907]. In: Freud, Sigmund. Obras
Completas volume IX (1906-1908): "Gradiva" de Jensen e outros
trabalhos. Trad. James Strachey (inglês).
Disponível em: < http://www.ebah.com.br/content/ABAAABnW0AA/vol-9-gradiva-jensen-outros-trabalhos>.
Acesso: 22 de agosto, 2014.
__________ "Uma recordação de infância de Leonardo Da
Vinci" [1910]. In: Freud, Sigmund. Obras
Completas volume 9: Observações sobre um caso de neurose absessiva [o homem dos
ratos], Uma recordação de infância de Leonardo Da Vinci e outros textos
(1909-1910). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2010.
__________ "Contribuição à historia do movimento
psicanalítico" [1914]. In: Freud, Sigmund. Obras Completas volume 11: Totem e tabu, Contribuição a Historia do
movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). Trad. Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
__________ "A Repressão" [1915]. In: Freud,
Sigmund. Obras Completas volume 12:
Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos
(1914-1916). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2010.
__________ "Alguns tipos de caráter encontrados na
prática psicanalítica" [1916]. In: Freud, Sigmund. Obras Completas volume 12: Introdução ao narcisismo, ensaios de
metapsicologia e outros textos (1914-1916). Trad. Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2010.
__________ "Psicologia das Massas e Análise do Eu"
[1921]. In: Freud, Sigmund. Obras
Completas volume 15: Psicologia das Massas e Análise do Eu e outros textos (1920-1923).
Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
__________ "Autobiografia" [1925]. In: Freud, Sigmund. Obras Completas volume 16: O eu e o id, Autobiografia e outros textos
(1923-1925). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2010.
__________ "O mal-estar na civilização" [1930a]. In:
Freud, Sigmund. Obras Completas volume
18: O mal-estar na civilização, Novas conferências introdutórias à psicanálise
e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.
__________ "Prêmio Goethe" [1930b]. In: Freud,
Sigmund. Obras Completas volume 18: O
mal-estar na civilização, Novas conferências introdutórias à psicanálise e
outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2010.
__________ "A conquista do fogo" [1932]. In: Freud, Sigmund. Obras Completas volume 18: O mal-estar na civilização, Novas
conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad.
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
__________ "Novas conferências introdutórias"
[1933]. In: Freud, Sigmund. Obras
Completas volume 18: O mal-estar na civilização, Novas conferências
introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César
de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
[1] O
cartão de Londres, também chamado de "cartão da casa de
Burlington", é um desenho de Leonardo da Vinci, encontrado em uma das
folhas dos seus diários. Está no acervo do London National Gallery.
[2] De acordo com a biografia Serge Gainsbourg - Um
Punhado de Gitanes (Sylvie Simmons, 2004, editora Barracuda), o cantor era
fortemente influenciado pelo amigo Dali, que, por sua vez, era obcecado por
psicanálise.
Porque sexo!
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