segunda-feira, 1 de setembro de 2025

ŽIŽEK E O PONTO ZERO DA DESTITUIÇÃO SUBJETIVA: a travessia do fantasma

Como em tantos outros de seus livros, em Mais-Gozar: um guia para os não perplexos (2021), Žižek dá continuidade à sua saga sobre as armadilhas que sustentam o controle social e oferece, como resposta aos impasses do capitalismo neoliberal em sua fase mais cínica e desacreditada, o ponto zero da destituição subjetiva. Para chegar até aí ele percorre um longo caminho expondo a articulação ideológica entranhada em nossa cultura, e nos leva a supor como esse funcionamento alicerça a fetichização hoje, não apenas dos objetos de consumo, mas das nossas próprias palavras e até mesmo ações, diante das injustiças que testemunhamos e somos cúmplices, de modo que não abalamos a vigência das relações de poder.

Ainda que existam casos singulares contradizendo o quadro mais amplo do nosso laço social, percebemos que o ativismo de online, hoje dominante na tônica do engajamento político, deposita em um objeto parcial – a palavra – um valor de gozo absoluto, um saber que se encerra em si mesmo. Essa palavra acaba por esvaziar a causa pela qual a própria palavra luta, na medida em que evita o confronto real devido a possibilidade de revelar sua impotência, ou seja, a castração. A causa se torna assim secundária em relação a satisfação em propagar essa palavra. O ativista investe toda sua paixão em seu discurso, transformando-o em campo de batalha imaginário, e segue, na vida cotidiana, obediente ao sistema. Ele dissimula satisfação com suas palavras e, paradoxalmente, alimenta aquilo contra o qual afirma lutar. 

Seja por aproveitamento consciente ou por adesão ingênua, esse comportamento inscreve-se na lógica perversa tal como compreendida pela psicanálise: “sei que não posso, mas ainda assim...”. O fetiche — termo derivado de “feitiço”, “encantamento” — funciona aqui como sintoma dessa lógica encobridora do desejo: simula a ação, mas, na verdade, protege o sujeito da angústia diante da impotência. A palavra-fetiche encanta, mas não transforma; preserva o sujeito do risco, enquanto encena uma luta que jamais ameaça o status quo da realidade.

Mesmo quando o ativismo se materializa em ONGs, mutirões, manifestações etc., ele também encontra seus limites. O esforço, já previsto pela lógica neoliberal, é neutralizado pela rotina de sobrevivência no capitalismo. Por mais relevantes que sejam para salvar vidas e conter o crescimento do abismo da desigualdade, tais práticas também ocupam o lugar de objeto fetichizado, operando dentro do cinismo estruturado em nossa ideologia: seja o glamour das festas beneficentes, seja a distribuição de sopa nas ruas. O ativista assume uma identidade de luta, mas logo retorna ao expediente que alimenta o mesmo sistema contra o qual resiste em suas horas vagas. Como efeito pontual, merecem reconhecimento; como transformação estrutural, são como “enxugar gelo” — e quanto mais enxugamos, mais o gelo cresce e derrete.

É nesse ponto que Žižek, retomando Lacan, propõe “o ponto zero da destituição subjetiva” como verdadeira revolução: “uma busca pela vida com o espírito de furiosa indiferença” (p. 483). “Indiferença” aqui significa não recuar diante da catástrofe. Citando o escritor G. K. Chesterton, Žižek nos convoca a “desejar a vida como a água, mas beber a morte como o vinho”. 

Após um longo percurso delineando o contexto histórico, social e filosófico, Žižek diferencia essa forma de destituição subjetiva de outras quatro variedades de destituição subjetiva: a budista, a mística, a revolucionária e a niilista. 

  • Na budista, há uma desconexão da realidade externa que permite o distanciamento dos desejos e ensejos, assumindo uma posição impessoal: “meus pensamentos são pensamentos sem pensador” (p. 407).
  • Na mística, ocorre uma fusão direta entre o sujeito e um Absoluto superior: “o Grande Outro vive através de mim” (ibidem).
  • O revolucionário se reduz a instrumento do processo de transformação radical, obliterando sua personalidade e até o medo da morte, para que a revolução possa viver por meio dele (p. 407–408).
  • Já o niilista, exemplificado pelo protagonista de Coringa (2019), encarna uma experiência de autodestruição, lançando-se no desmantelamento violento daquilo que ele mesmo provoca.

Žižek imagina então um quadrado semiótico e posiciona o ponto zero da destituição subjetiva, tal como Lacan a concebe, no centro. Não se trata de desqualificar as especificidades das demais formas, mas de decantar o que há de mais radical nelas para permitir a emergência de uma nova realidade. Žižek faz duas ressalvas: tanto a destituição mística quanto a revolucionária incorrem no risco de um gozo perverso, na medida em que a fusão entre um mestre e o Grande Outro (seja o Divino ou a Causa Revolucionária) pode transformar os seguidores em objetos de uma ambição totalitária — como evidenciam os abusos religiosos ou regimes políticos autoritários.




Segundo Žižek, essas quatro formas são tentativas de pacificar o antagonismo que emerge na busca pelo Vazio absoluto da destituição subjetiva. No entanto, para ele, a “verdadeira” destituição subjetiva não deve apaziguar esse Vazio, mas sim perturbá-lo, tensionando o antagonismo inerente da existência material. É aí que entra a quinta forma: a proposta pela psicanálise lacaniana, conhecida como a travessia da fantasma, alcançada através da operação de destituição subjetiva.

O fantasma é uma formulação de Lacan para nomear o suporte estrutural sobre o qual podemos alicerçar a história que contamos sobre nossas experiências e intenções no mundo, o seja, a nossa fantasia. Em uma analogia com o teatro, o fantasma está para o cenário, como fantasia está para a narrativa.

“Para Lacan, a fantasia não se opõe a realidade, mas fornece as coordenadas do que experimentamos como realidade, mais as coordenas que desejamos” (p. 408). Assim precisamos nos lançar em uma incessante reorganização e reabastecimento da cadeia simbólica a fim de viabilizar a reescrita da narrativa fantasiosa e fazer a travessia do cenário fantasmático referido a uma realidade sempre em transformação.

Fantasma e fantasia, ficção e realidade, Eros e Thanos, proletário e proprietário, e tantas outras dualidades do âmbito psíquico ou social... Assumir a conservação do antagonismo entre as diferentes forças que regem a nossa existência, sem apazigua-lo, torna-se central para Žižek, pois é justamente essa oposição que move a sociedade e produz o mais-gozar — conceito lacaniano que dá título ao livro em questão. O mais-gozar é a substância residual não contemplada na operação entre enunciação e enunciado, ou seja, entre o ato (enunciado) e a sua causa – o desejo (enunciação). O mais-gozar é a perda entre o que causou o desejo e o gozo extraído desse desejo. Na psicanálise, parte-se do pressuposto de que – a não ser na lógica da fantasia perversa como posto anteriormente – o desejo é inalcançável pelo gozo em sua totalidade, e como a verdade, só pode ser representado metaforicamente. 

O gozo é essa forma de semi-dizer o desejo ou a verdade — aquilo que conseguimos saber sobre eles — e, por meio da linguagem, construir laço com o outro. O fracasso em colocar em ato tudo o que nos causa – que em última instância é sempre desejo de ser desejado pelo outro – é o que engaja o movimento dialético para constituir o laço que chamamos de social. Por isso, o gozo perverso não faz laço: ele não leva em consideração o desejo de ser desejado.

Importa reforçar: algo do desejo e da verdade sempre escapa — permanece não dito. Esse resto, em sua busca incessante por representação da realidade através dos recursos da linguagem, é o mais-gozar: produto do antagonismo; a fratura entre a enunciação (a causa, o desejo, a verdade íntima e inacessível) e o enunciado (o saber, o gozo, os dispositivos simbólicos).

Por isso, na psicanálise, não há equivalência entre realidade e ficção — isto é, entre o mundo e aquilo que dizemos sobre ele. A realidade é narrada em constante reescrita, sempre atravessada pelo contexto histórico que a molda. Aproximar-se dela exige reconhecer sua natureza mutável e sua dependência da do universo simbólico.

É nesse ponto que Žižek, em seu artigo "Progresso e suas vicissitudes" (2025), faz uma crítica ao movimento decolonial a partir da problematização do conceito de progresso. Sem nos aprofundarmos em seu debate a respeito das decolonizações, o que nos interessa aqui é o pressuposto que orienta sua reflexão: o progresso não como um desdobramento histórico em linha reta, mas uma noção que deve ser entendida a partir da atualização retroativa de sua própria definição — uma reinterpretação constante do que se entende por avanço. 

Um exemplo ilustrativo pode ser observado nos avanços tecnológicos na comunicação. Antes da aceleração vertiginosa dessas inovações, era comum associar o progresso nesse campo à velocidade e ao volume do fluxo informacional. Hoje, no entanto, começamos a reconhecer que essa oferta de dados e estímulos pode gerar efeitos subjetivos adversos, como prejuízos ao desenvolvimento cognitivo ou como a propagação de desinformação. Assim, torna-se cada vez mais evidente que o que hoje compreendemos como progresso tecnológico difere da concepção predominante há poucas décadas.

Enfim, para seguirmos nessa corda bamba fantasmática chamada vida, é preciso cultivar o desapego e a abertura a indagação por palavras que possam redesenhar a realidade em sua propriedade metamórfica. Cada passo supõe um início e um fim sempre recontado, a partir do ponto de vista que temos do patrimônio simbólico disponível — e do horizonte que conseguimos enxergar enquanto tentamos nos equilibrar.

A decisão do próximo passo, portanto, não se dá por segurança, mas por um gesto radical: com o “espírito de furiosa indiferença”.