por Vivian Vigar
3º Simpósio de Acompanhamento Terapêutico (AT), Saúde Pública e Educação
Organizado pela Instituição Attenda no dia 03 de outubro de 2015
Como parte de minha formação
no CEP (Centro de Estudos Psicanalíticos), optei por ingressar em dois núcleos
de estudos e prática: em agosto de 2014 entrei para o núcleo Psicanálise e Instituições
onde, além de assistir os seminários teóricos ministrados por diversos
profissionais da área de saúde mental e inclusão social, os alunos têm a
oportunidade de atender, como psicanalistas, em um dos projetos vinculados ao
CEP, por meio do NUPAS (Núcleo de Psicanálise e Ação Social). Dentre estes
projetos está o Família em Foco, um abrigo que acolhe famílias em situação de
rua, o qual fui designada como psicanalista do grupo de conviventes da casa
comunitária.
Seis meses depois, ingressei
no núcleo Psicanálise e Psicose onde também, além do seminários teóricos, foi
nos dada a oportunidade de atender pacientes, individualmente ou em grupo, da Casa de
Saúde Nossa Senhora de Fátima. Em ambos os casos, uma das condições para
praticar a clínica é estar sob supervisão com os coordenadores dos núcleos, uma
vez por semana.
Como
a participação nos núcleos foi meu primeiro contato com a prática psicanalítica,
proponho escrever aqui acerca deste momento, acreditando ser profícuo não
apenas como reflexão e registro pessoal, mas também como exemplo a ser
compartilhado com colegas, principalmente os que estão iniciando ao mesmo tempo
que eu. Digo isso pois, no curso de formação percebo a existência de uma certa
angústia por parte de outros colegas, além de mim, quanto a forma de intervenção
terapêutica na clinica psicanalítica, ou seja, um receio quanto a atuação
dentro das fronteiras que dividem a
psicanálise dos diversos tipos de terapia que visam a saúde mental. Assim, acredito
que um dos caminhos para percorrer este enigmático começo de maneira
responsável - tendo o psicanalista compreendido a demanda de seu paciente -
seja prestando atenção especial à relação transferencial entre o analista e o
paciente nas manifestações e nos conteúdos sintomáticos, através do
desenvolvimento da escuta.
As
observações aqui feitas serão entendidas e descritas sob a luz dos seguintes
textos: "Transferência", das Conferências
Introdutória a Psicanálise (Freud, 1916-1917), "Intervenção sobre a
transferência" (Lacan, 1951) dos Escritos,
O seminário: livro III. As psicoses
(Lacan, 1955-56) e o livro Psicose e
Laço Social (Antônio Quinet, 2006). Delimitando ainda mais a proposta deste
trabalho, analisaremos somente as incidências clínicas observadas na Casa de Saúde
Nossa Senhora de Fátima, deixando as experiências ocorridas no projeto Família
em Foco para um próximo relato.
Com
o escopo do texto já situado, acredito, agora, ser necessário descrever, mesmo
que brevemente, onde me encaixo na parceria entre CEP e o hospital. Para
começar, a Casa de Saúde Senhora de Fátima é parte de uma congregação religiosa,
atuante em vários países desde 1881, surgida no contexto da invenção humanista
da psiquiatria como resposta a uma situação de abandono no campo da saúde e
exclusão social dos doentes mentais da época. No Brasil, as Irmãs
Hospitaleiras, como são chamadas as mulheres desta congregação, administram
três desses hospitais. No caso do Nossa Senhora de Fátima, ele é divido em três
alas: uma grande ala com mais de cem leitos para mulheres internadas pelo SUS
(Sistema Único de Saúde); uma ala pequena que recebe cerca de 20 homens através
de convênios e internação particular; e, por último uma pequena ala, desta
vezes feminina, com cerca de 20 mulheres internadas pelo convênio de saúde ou
particular. Nessas duas alas menores a proposta é de internação curta, entre um
e dois meses, porém há, atualmente, duas pacientes que ali residem, e outras
que retornam com muita frequência. A equipe clínica do hospital é formada por
psiquiatras, clínicos gerais, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos,
arte terapeutas e educadores físicos. Visitas diárias às pacientes são
permitidas e todas as tardes as mulheres são acompanhadas por um enfermeiro até
a pequena cantina, no estacionamento do hospital, onde elas podem comprar
doces, salgados, café e refrigerante, por meio de uma conta aberta por seus
parentes. Há também um brechó onde algumas compram roupas e acessórios.
Minha
primeira aproximação deste hospital se deu em uma sexta-feira de manhã, no dia
27 de fevereiro de 2015, quando o grupo do núcleo Psicose e Psicanálise se
reuniu com o coordenador de psicologia do hospital para acertarmos os termos
dos atendimentos. Fomos levamos à ala e apresentados à algumas pacientes como
estagiários de psicanálise, e uma delas, que chamarei aqui de H, se mostrou
bastante interessada, dizendo que apesar de não saber muito sobre Freud e Jung,
e que o seu "negócio" era com Vygotsky e Piaget, gostaria muito de
ser atendida. Ao falar isso, apontou para mim e continuou: "Eu quero ser
atendida por ela!", o que respondi com um sorriso (por dentro muito
orgulhoso), dizendo que nos encontraríamos, então, na próxima semana. Um dos
empecilhos do trabalho psicanalítico neste hospital, ao meu ver, é o fato de as
internações serem curtas, e H, como eu já sabia, era uma das duas pacientes que
ali residem, o que possibilitaria uma chance maior de trabalho terapêutico e,
principalmente, analítico.
Na
próxima semana, após ter pensado um tanto sobre Vygotsky e Piaget, lá estava
eu, novamente, no hospital. Ficou combinado que meu horário seria às segundas-feiras
por duas horas, e que seria razoável atender uma ou duas pacientes. Logo
procurei por H, que estava cochilando deitada no pátio, e a convidei para
conversar. Fomos para um jardim atrás da ala, nos sentamos em uma mesa de
concreto e logo ela disse: "Me mandaram para você por causa do bolo de cocô,
né?" Estranhei essa pergunta, pois H aparentava ser uma senhora, de mais
de 60 anos, discreta e elegante, o que de fato, apesar de seus transtornos, ela
o é. Respondi que não, mas que ela poderia falar sobre isso. Deu-se um breve
silêncio e, logo, ela desatou a falar sem mencionar o cocô. Disse seu nome
completo, sua data de nascimento e que era o "típico caso do triângulo
edipiano" (nesses termos). Tinha um irmão que cometeu suicídio e duas
irmãs: uma separada e outra casada. Sua mãe tem 85 anos e, apesar de ter sido
prestativa e carinhosa, tinha ciúme da filha, pois H é, até hoje, apaixonada
pelo pai. Esta paciente passa por internações desde os 16 anos e, hoje mora, a
contra gosto, na instituição. Após passar uma hora falando quase
ininterruptamente, a conversa terminou com uma lembrança "pouco" importante:
"Ah! Eu não te disse sobre o estupro, né?" O que eu respondi dizendo
que ela poderia falar sobre isso na próxima sessão.
Apesar
de todas as pistas que ela possa ter me dado e que eu possa ter perdido, se H é
mais psicótica ou neurótica, eu não tenho certeza, mas percebi traços fortes de
psicose, como por exemplo sua fala desencadeada e pouco implicada (como o
estupro e o cocô), algumas certezas questionáveis e percepções de
persecutoriedade por parte de alguns homens relatados por ela. Por outro lado
seu relato me parecia mais fantasioso e desejoso do que delirante, o que pode
ser devido ao tratamento medicamentoso com anti-psicótico. Porém não falarei muito mais sobre H, pois
tivemos apenas 3 sessões e o que me marcou deste encontro, e o que eu gostaria
de abordar aqui sobre ele, foi o fenômeno transferencial.
No
começo da segunda sessão, H me presenteou com um colar feito por ela durante
uma sessão de arte terapia. Depois continuou seu relato, porém desta vez
procurei intervir mais, dado que da última vez ela não me parecia implicada em
sua "verborragia". Na terceira sessão H perguntou se era mesmo
obrigada a conversar comigo. Disse a ela que não; que aquele era um espaço, um
tempo, para ela poder reconstruir um sentido em sua vida: talvez diferente,
talvez mais saudável. Ela disse estar muito cansada e que a última sessão havia
sido muito difícil para ela, principalmente no tocante ao sexo e ao estupro. Disse
também nunca ter solicitado a análise. Lembrei a ela do dia que nos conhecemos
e ela respondeu que aquilo (ter apontado para mim) havia sido uma brincadeira,
pois além da falta de vontade, nunca se interessaria em ser analisada por uma "estagiária".
Disse também ter encontrado, no hospital, um psicólogo jungiano, com quem se
identificou mais. Ficamos por ali. Sugeri a ela falar com outros terapeutas,
seja do núcleo de psicanalistas ou não, e se, no futuro, desejasse continuar
comigo eu estaria lá todas as segundas-feiras.
Apesar
do tratamento com H ter sido encurtado, pude observar nele indícios prováveis
dos motivos pelo qual a transferência não se sustentou. Imagino que a princípio
H pensou que pela análise ela poderia trocar ideias intelectualmente
estimulantes (Freud / Jung / Piaget / Vygotsky) e fazer amizade (me presenteou)
fora do círculo de companheiras de internação. Porém quando abordamos sua
ferida real, saindo da racionalização (ex.: "triângulo edipiano"),
para entrar em contato com suas emoções, H recuou. Pareceu-me se esconder em
uma fantasia puramente racional, a qual eu não tive a sensibilidade de
participar, solicitando muito abruptamente seus sentimentos. No texto
"Transferência" Freud questiona as dificuldades transferenciais,
quando o paciente se depara com a angústia, surgidas durante o tratamento:
Ele [o
paciente] se comporta como se não estivesse em tratamento, como se não tivesse
feito um trato com o médico; claramente ele foi tomado por algo que deseja
guardar para si. Essa é uma situação perigosa para o tratamento. Estamos, sem
dúvida, diante de uma poderosa resistência. O que aconteceu? (FREUD, 1916b, p.
583)
Quando escreveu esse texto para as Conferências Introdutórias, Freud havia se debruçado pouco sobre a
causa dos psicóticos e afirmava que os doentes de neuroses narcísicas não
possuem capacidade de transferência. "Rejeitam o médico, mas não de
maneira hostil , e sim indiferente" (Ibidem, p. 592). De fato, na nossa
última sessão, senti a indiferença de H. No entanto, como nos diz Lacan, a resistência
é sempre do analista: a resistência deve ter sido minha ao não participar da
fantasia de H.
Hoje sabemos que a transferência com pacientes psicóticos
acontece por meio do delíro. O filme Don Juan de Marco (Jeremy Leven, 1995) nos aponta a maestria de um
"superpsiquiatra", Dr. Jack Mickler
(Marlon Brando), ao se passar por Don Octavio del Floires, tio de Don Francisco
da Silva, o melhor esgrimista do México com quem o suicida, que pensa ser Don
Juan (Jonnhy Depp), quer lutar até a morte. O psiquiatra sabe que somente
entrando na fantasia de seu paciente poderia construir um laço forte o bastante
para convencê-lo a não morrer. Porém, Dr. Jack Mickler - com todas as suas
décadas de prática, há poucos dias para se aposentar - não esperava sentir
profundamente, em sua própria defesa neurótica, a defesa alucinatória de seu
paciente, transcorrendo em uma contratransferência que veio a ser essencial
para o tratamento do jovem.
Se na neurose é somente pela transferência que temos a
possibilidade de resgatar a experiência vivida do paciente e "tornar
consciente o inconsciente, anular as repressões, preencher as lacunas da
amnésia - todos dizem a mesma coisa" (Ibidem, p. 575) E, assim, "eliminamos
as condições para a formação de sintomas e transformamos o conflito patogênico
em um conflito normal" (Ibidem). Ou
nas palavras de Lacan, o analista usa a transferência para fazer "o
retorno às origens [...] das relações dialéticas que constituíram o momento do
fracasso" (Lacan, 1951, p. 217) do paciente. Na psicose escutamos o
discurso do psicótico, mesmo que desorganizado e delirante, na busca de
significantes importantes para a construção de um suporte que ajude o psicótico
a sustentar o seu lugar na realidade. Esta função é conhecida como
"secretário do alienado", defendida por Lacan:
Vamos aparentemente nos contentar em passar por
secretários do alienado. Empregam habitualmente essa expressão para censurar a
impotência dos seus alienistas. Pois bem, não só nos passaremos por seus
secretários, mas tomaremos ao pé da letra o que ele nos conta – o que até aqui
foi considerado como coisa a ser evitada. Não é por ter estado longe o bastante
na sua escuta do alienado que os grandes observadores que fizeram as primeiras
classificações tornaram sem vigor o material que lhes era oferecido? (LACAN
1955-56, p. 236).
Pois bem. Em minha transferência com H, faltou-me, talvez,
está escuta desafetada da minha neurose. Mas seguindo em frente, continuando
com o filme Don Juan de Marco, abordando outro importante tópico na prática
clínica da psicanálise: a escuta do sentido do sintoma. Introduzirei aqui,
também, outra paciente atendida por mim no Nossa Senhora de Fátima, que
chamaremos de M.
Vamos, primeiramente, ao filme. Após a tentativa de suicídio,
Don Juan é levado para internação psiquiátrica, onde desenvolve o vínculo com o
Dr. Jack Mickler. Vínculo, este,
fortalecido, como dizíamos anteriormente, muito, as custas da neurose do
próprio psiquiatra. Constituindo-se a transferência mútua - que podemos chamar
de contratransferência - o psiquiatra iniciou a investigação da origem do
sintoma de seu paciente, supostamente, esquizofrênico. Mesmo pressionado pela
equipe do hospital a medicar Don Juan, Dr. Mickler se recusa, e pede dez dias
de intervenção terapêutica não medicamentosa para encontrar, em meio ao
delírio, um significante que dê sentido
à história vivida por Don Juan. Assim, na esquizofrenia, o analista se torna o
secretário do alienado.
Considerar
que os fenômenos têm um sentido foi o passo que Bleuler deu com Freud para
introduzir a esquizofrenia numa clínica do sujeito. O outro passo que devemos
dar é considerar todos os fenômenos dos pacientes como tentativas de
estabelecimento de algum vínculo com o outro. (Quinet, 2006, p. 54)
O filme leva a questão da não medicalização às últimas
consequências mas, para viabilizar a alta do paciente, Dr. Mickler não encontra
outra saída senão sucumbir ao anti-psicótico. O autor citado acima, Antônio
Quinet, também explicita sua opinião a este respeito:
A direção
do tratamento na esquizofrenia vai no sentido daquilo que não se efetuou para
ele e que ele mesmo se esforça em realizar. Daí o clínico não dever a qualquer
custo eliminar os sintomas do sujeito, o que não quer dizer que não deva
indicar a medicação para atenuá-los. A medicação deve ser um auxiliar na
análise dos esquizofrênicos. (ibidem)
No caso da segunda paciente que lhes trago, M, percebo novamente
a necessidade de aprimorar minha escuta para conseguir definir, teoricamente,
sua estrutura psíquica e o sentido de seus sintomas. Com 30 anos de idade, M
passou por mais de dez internações desde os 16 anos (assim como H), quando
relatou para sua mãe ouvir vozes e acreditar ter sido sorrateiramente atacada
por hackers que implantaram nela um chip amplificador do som das ondas
cerebrais, para seus pensamentos serem lidos por outras pessoas. Através deste
chip, supostamente, roteiristas de um programa de humor da internet utilizam
seus pensamentos e suas experiências cotidianas para criar sketches assistidos vastamente pelos brasileiros. Este sintoma não
tem aparecido em nossas sessões, talvez devido a medicação controlada, senão em
nossas conversas sobre o passado. Desde então já foi internada por diversos outros
motivos, principalmente, o abuso de drogas e agressão contra familiares. Apesar
dos delírios persecutórios, outros sintomas manifestos se mostram tão
importantes quanto, principalmente, revelando fortes características histéricas.
Uma das principais queixas de M é bastante típica da clínica contemporânea:
fibriomialgia e síndrome miofascial, uns dos mais frequentes substitutos das
clássicas contraturas e paralisias observadas pelos médicos do século 19. A
paciente é acometida, também, pela forte dependência de sua família; sofre e
deseja, simultaneamente e antecipadamente, a morte dos pais, pois imagina que
quando eles morrerem sua irmã mais nova irá interditá-la e mantê-la para sempre
no hospital. O tema da herança é repetido nas sessões, pois pensa que o pai -
acamado com demência alcoólica - irá morrer logo e ela não terá acesso ao
dinheiro, dada a rivalidade mantida contra a mãe e a irmã, por quem, ao mesmo
tempo, nutri a raiva e a angústia da perda do amor.
Esse é apenas um recorte do caso de M; algumas pistas,
generosamente, fornecidas por ela para podermos submergir do seu atual cenário
para um nível mais primitivo e, assim, tentar entender, como nos diz Lacan, as
"relações dialéticas que constituíram o momento do fracasso".
Nossa relação transferencial me parece estável. Por vezes M
demonstra curiosidade em relação a minha vida pessoal; algo que eu procuro
tratar com naturalidade, mesmo porque ela se satisfaz facilmente com minhas
respostas, voltando logo para o seu próprio conflito. Isto foi algo valioso que
aprendi durante nossas sessões: a importância em não simular algo que não sou, submetendo-me
ao velho estereotipo do psicanalista.
Enfim, tendo a oportunidade de fortalecer nossa
transferência semanalmente, procuro auxiliá-la a entrar em contato com sua
história, desconstruindo, pouco a pouco, algumas defesas disfuncionais,
principalmente o uso de drogas, e procurando significantes funcionais advindos
dos momentos quando ela desfrutou de mais independência prática e emocional. Porém,
não tarde e sua resistência logo aparece, repetindo suas deficiências agravadas
tanto pela adicção quanto pela rejeição da família. Este movimento de
resistência, como diz Freud, é bastante perigoso, principalmente porque M, me
parece muito próxima de um estilhaçamento absoluto. Portanto devemos prosseguir
lentamente afim de não romper nosso laço antes que ela perceba a existência de
saídas do curto-circuito onde habita.
Narrarei um momento frutífero da análise em direção ao
sentido de seus sintomas: certa vez, quando contava sobre sua infância, M dizia
que quando seu pai estava alcoolizado ficava muito grudento. Ela lembrava, com
asco, em seu corpo incomodado, do cheiro "viscoso" de álcool nos
beijos e abraços de seu pai. Carinho, este, nunca demonstrado nos momentos de
sobriedade. Perguntei a ela se a lembrança não a remetia a algo, o que ela
pensou e concordou comigo. Muito provavelmente ela estava repetindo um exemplo
familiar. Nos termos psicanalíticos, estava identificada, fixada na imagem de
seu pai. Explico: dias antes ela havia relatado a nítida impressão das pessoas
não a "aguentarem", pois ela é "muito amorosa" e "chiclete".
O caso de M se confunde na escuta. Se por um lado ela
demonstra comportamentos histéricos, não apenas pela provável conversão
psicogênica na fibriomialgia e na síndrome miofascial, mas também pelo frequente - e incômodo - apelo
por ajuda e favores a qualquer profissional do hospital, tendo crises de
automutilação quando frustrada em sua demanda; por outro lado não podemos
esquecer as memórias delirantes de hackers, e, principalmente, as memórias
persecutórias em relação a sua família, além de seu histórico de abuso de
drogas.
Sobre este último sintoma, devo acrescentar um sentimento
ambíguo da paciente: ao mesmo tempo em que ela é consciente dos danos dos anos
de abuso de substâncias psicoativas (lícitas e ilícitas), ela age sem alarde em
relação ao vício e não apresenta crise de abstinência (ou apresenta pouca) quando
em fase de desintoxicação. Não é difícil de constatar que esta ambiguidade de
M, em alguns aspectos da sua vida podem ser remetidos a uma clivagem psíquica.
Assim, independente de sua estrutura (neurótica, psicótica, borderline?), opto por acompanhá-la em sua frustração - não possuir o objeto perdido e impossível de reaver - percebendo a necessidade de percorrer, junto a ela, pontos de sua história que sustentam algumas vitórias de sua singularidade, para conseguir construir (ou reconstruir?) um sentido em sua vida que não seja relacionado a autodestruição.
BIBLIOGRAFIA
FREUD, S. "Transferência"
in: Obras Completas - volume 13: Conferências Introdutórias à Psicanálise
[1916-1917]. Tradução Paulo César de
Souza. São Paulo; Companhia das Letras, 2010.
LACAN,
J. (1951). "Intervenção
sobre a transferência". In Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Jorge Zahar
Editor. Rio de Janeiro. 1998.
LACAN,
J. (1955-56) O seminário: livro III. As psicoses. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar, 1988.
QUINET,
A. Psicose e laço social: esquizofrenia,
paranóia e melancolia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
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