por Vivian Vigar
REVISTA ESPAÇO ÉTICA: EDUCAÇÃO, GESTÃO E CONSUMO
Ano II, Número 04, janeiro/abril de 2015
RESUMO
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ESTE ARTIGO
INVESTIGA, PELO VIÉS MARXISTA, A FUNÇÃO
SOCIAL DO CINEMA E SEU DESENVOLVIMENTO TÉCNICO, PROCURANDO ENTENDER TAMBÉM AS
POSSIBILIDADES DE CONSTRUÇÃO E IDENTIFICAÇÃO DO ESPECTADOR ATRAVÉS DA
PSICANÁLISE. O DESDOBRAMENTO EPISTEMOLÓGICO DESTA PESQUISA PARTE DO CRÍTICO DE
ARTE FRANCÊS DO INÍCIO DO SÉCULO XX, ELIE FAURE; PASSA PELO TRABALHO TEÓRICO DO
CINEASTA SOVIÉTICO, SERGEI EISENSTEIN, NO LIVRO A FORMA DO FILME (1936); EXAMINA ALGUMAS CONSIDERAÇÕES DO
LIVRO/ENTREVISTA HITCHCOCK/TRUFFAUT (2004), E INCIDE NAS LEITURAS LACANIANAS DO
SUJEITO E DA SOCIEDADE EM RELAÇÃO AO CINEMA, TANTO ATRAVÉS DO FILÓSOFO
CONTEMPORÂNEO SLAVOJ ZIZEK COMO DO ARTIGO DO PSICANALISTA JOÃO ANGELO FANTINI,
NO LIVRO SEMIÓTICA PSICANÁLITICA
(2014). AO FINAL, CONCATENA A TEORIA APRESENTADA COM A PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA
RECENTE DE PERNAMBUCO, AFIM DE VALIDAR A HIPÓTESE DE QUE O MODO DE PRODUÇÃO É
CORRELATA AO MOMENTO SOCIOCULTURAL,, OU SEJA, DO VÍNCULO INERENTE ENTRE FORMA E
CONTEÚDO.
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O
cinema está estabelecido em nossos tempos como a arte mais acessível, mais
completa e mais comunicativa. "O cinema, é sem dúvida a mais internacional
das artes" (EISENSTEIN, 2002 p. 11). Suas possibilidades, ainda em
descoberta e processo, continuam nos surpreendendo.
Apesar
(e além) de abranger a poiesis de suas irmãs (a música, a pintura, a
arquitetura, a dança, a literatura e a escultura), o cinema é uma arte em si, e
não simplesmente uma fusão ou variante, pois constitui-se por sua própria
técnica, a cinematografia, ou seja, a montagem sequencial de imagens estáticas,
dando a impressão do movimento. Movimento este, já esboçado por outras
linguagens, como, por exemplo, na obra do pintor Edgar Degas. A dança, por sua
vez, puro movimento, só pôde ser fixada por meio do suporte cinematográfico.
Devido
a indispensabilidade da máquina para a criação do cinema, custamos a aceitá-lo
como uma arte e, assim, um dos primeiros pensadores a se dedicar a entende-lo e
apreciá-lo foi Elie Faure. Autor de um dos mais importantes livros do tema, A História da Arte (1922), Faure preveu,
no artigo "Da Cineplastia" (1922), o futuro do cinema como "sem
dúvida, o ornamento espiritual mais unanimemente procurado - o jogo social mais
útil ao desenvolvimento, entre as multidões, no que toca a necessidade de
confiança , de harmonia e de coesão." (FAURE, 2010, p. 38)
Como
historiador, Faure defende que a função da linguagem artística é exprimir o
"ritmo espiritual" (ibidem, p. 49) das sociedades e, sendo o cinema
contemporâneo das formas de produção em massa e mecanizada, seria ele o instrumento
mais apto a refletir as correntes humanas do século XX. No ensaio "Introdução
à mística do cinema" (1934), Faure situa a expressão como filha da
produção, e apenas a expressão produzida coletivamente, como é o caso do
cinema, seria capaz de erguer os monumentos que expressam sua época. Ao
entender a arte como impulso místico do ser humano, Faure rejeita a pintura como
manifestação de seu tempo devido seu caráter individualista, afirmando que a
"esperança coletiva é uma aspiração impetuosa à unidade de Deus" (ibidem,
p. 51).
Ora,
não podemos separar a história da humanidade da história das técnicas, e o
cinema, assim como as fábricas de produção em massa, evidencia não apenas a
tendência ao coletivismo, mas também o nosso "automatismo intelectual",
ou seja, "a subordinação da alma humana aos utensílios que cria e
vice-versa. Revela-se entre o tecnicismo e afetividade, uma reversibilidade
constante." (ibidem, p. 57). Em suma, Faure aponta para o equívoco em
separarmos a "alma" e a "matéria". (ibidem, p.68)
Seria
esta então, a suprema expressão das correntes humanas, a função do cinema? Um conteúdo
socialmente relevante seria, portanto, o questionamento das marcas socioculturais,
por meio de uma dialética crítica? Continuemos seguindo o caminho de Faure,
desta vez, em um ensaio intitulado "Vocação do Cinema", onde o autor refere-se
ao "valor estético das imagens" e as "virtudes educativas".
A estes valores, Faure contrapõe o filme "sentimental" e
"romanesco", atribuindo tais vertentes ao abandono dos diretores a um
mecanicismo e uma excessiva preocupação com "a sincronização do som e da
imagem e a guiar a imagem no labirinto do diálogo", esquecendo-se da cinematografia
(ibidem, p. 82), ou seja, a montagem.
Faure
aponta para a dicotomia do cinema autoral/indústria cultural - sem no entanto
utilizar tais conceitos, ainda não difundidos em sua época - transparecida na comparação
de uma produção cujas imagens são cuidadosamente escolhidas e seu valor estético
traz "a demonstração objetiva da continuidade harmônica das formas e dos
movimentos" (ibidem, p. 82) com a, então, nova produção do cinema sonoro
que "lisonjeando a nossa preguiça, nos dispensa arbitrariamente e muitas
vezes até abstratamente, sem exigir de nós o menor esforço" (ibidem, p.
81). É precisamente a diligência com o valor estético do primeiro cinema que
reflete, nas palavras de Faure, as "virtudes educativas desta admirável
máquina." (ibidem, p. 82)
Faure escreve sobre o cinema passionalmente, por vezes usando metáforas religiosas, evidenciando profunda gratidão pela arte, mas devemos levar em conta a temporalidade de sua obra. Falar sobre o cinema do início do século XX, não pode ser a mesma coisa do que falar sobre o cinema de cem anos depois. Além da evolução e modificação das técnicas de produção (câmeras, computadores, softers, financiamento etc), hoje o cinema da indústria cultural pode ser tão pujante e fecundo quanto o "cinema arte". O crítico de cinema, Ismail Xavier, nos lembra do risco da impreterível "associação da indústria com deserto estético" (XAVIER, 2004, p. 18) Esta ideia é desenvolvida no prefácio brasileiro de Hitchcock/Truffaut (2004), livro tido como a bíblia dos cineastas, onde foi registrada as cinquenta horas de entrevista concedida pelo mestre dos filmes de suspense a um dos fundadores da Novelle Vague. Para tanto, Xavier remonta à heterogeneidade da filmografia de Hitchcock, que mesmo entranhada ao modelo holliwoodiano não abre mão da dimensão moral e metafísica do cinema, fossem seus filmes suspenses ou comédias. Assim, como diz o filósofo Slavoj Zizek, "for true Hitchcock aficionados, everything has a meaning", e este mesmo filósofo é um destes aficinados. As analogias significantes encontrada na obra de Hitchcock por Zizek são expostas em 3 níveis de tríades relacionadas em seus momentos históricos. A primeira, proveniente da teoria literária de Frederic Jamenson; a segunda, de três períodos da obra hitchconiana; a terceira, de três momentos da economia capitalista do último século:
Tríades
|
Momento
históricos
|
||
1. estilos de discurso propostos por Frederic Jameson
|
realismo: variações da trajetória edipiana
|
modernismo: subverte os códigos narrativos
|
pós-modernismo:
pela
transferência da subversão dos códigos, os filmes engendram
entre os intérpretes
|
2. três períodos da obra hitchconiana
|
Os filmes ingleses da segunda metade dos anos 1930: história edípica da jornada iniciática do casal:
por à prova o amor do casal e então tornar
possível sua reunião final.
|
O ‘período Selznick’: a história é, em geral, narrada do ponto de vista de uma
mulher dividida entre dois homens: a figura mais velha de um vilão (seu pai
ou seu marido mais velho, incorporando uma das típicas figuras
hitchcockianas, o qual é consciente do mal em si mesmo e se esforça depois de
sua destruição) e o mais jovem e um tanto insípido ‘bom moço’, a quem ela
escolhe no final.
|
Os grandes filmes dos anos 1950 e início dos anos 1960: referências a ‘voyeurismo’ de Janela Indiscreta a
Psicose, etc.), tematicamente centrada na perspectiva do herói masculino para
quem o superego materno bloqueia o acesso à relação sexual ‘normal’
|
3. três momentos da economia capitalista do último século
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capitalismo liberal: FirmEmente edificado sobre a
ideologia clássica do sujeito autônomo reforçado através da provação
|
capitalismo estatal imperialista: declínio deste sujeito autônomo a quem se opõe o
vitorioso, o insípido heterônomo.
|
capitalismo tardio pós-industrial: Características do 'narcisismo
patológico', a forma subjetiva que caracteriza a chamada 'sociedade de
consumo'.[1]
|
Esta
analogia nos serve como exemplo para desenvolvermos nossa percepção de que não
apenas a técnica está ligada a estética, como também, a ideologia de uma época
e, portanto, a ética; esta inerente a estética, ou como poderíamos colocar, a
ética e a estética são os dois lados da mesma moeda: conteúdo e forma ocupam o
mesmo espaço. Lembremos da colocação do cineasta soviético, Sergei Eisenstein: "A
base genuína da estética e o material mais valioso de uma nova técnica é e
sempre será a profundidade ideológica do tema e do conteúdo." (EISENSTEIN,
2002, p. 13)
Sabemos
que Eisenstein, defensor das revoluções populares, era praticante de um cinema engajado.
Sua militância político-cultural, em uma União Soviética stalinista, estava
ligada ao desejo da produção cinematográfica independente do governo
(financeiramente e ideologicamente) e da libertação do cinema de formato
convencional (tela horizontal e salas fechadas) para ser exibido publicamente e
ao ar livre, "numa
tela vertical, para um público em pé e que pudesse reagir com indignação, fazer
gestos políticos e entoar palavras de ordem durante a projeção" (MACHADO, 2012).
Para Eisenstein, este seria o modelo de conteúdo e formato para um cinema
socialmente relevante e apresentado objetivamente.
No entanto, levaremos em conta a
dificuldade de praticarmos, hoje em dia, qualquer tipo de objetividade,
lembrando como é a "forma subjetiva que caracteriza a chamada 'sociedade
de consumo'", que vivemos atualmente. (ZIZEK, 1992): se no auge de sua
produção, Eisenstein percebia o cinema sendo "chamado a incorporar a filosofia
e ideologia do proletário
vitorioso" (EISENSTEIN,
2002, p. 25) e para isso
acontecer foi necessário transpor na tela, de forma sintética (inclusive
sobrepondo imagens), a 'coletividade', "eliminando a concepção
individualista do herói burguês, insistindo em uma compreensão da massa como
herói" (ibidem, p. 24), atualmente nos deparamos com um cenário tramado na
multiplicidade de interpretações, distinto da pureza de sentido vislumbrada
pelo cineasta soviético do início do século XX.
É no cenário contemporâneo, chamado
por muitos de pós-moderno, que emerge não somente uma disputa entre a "fidelidade
das imagens e a subjetividade do olho " (FANTINI, 2013, p. 132), como
também a necessidade de casar, em uma produção, o espírito sintético (como
demonstrado pela eficiente cinematografia da obra de Eisenstein. principalmente
em A Greve, de 1924, e o Encouraçado Potemkin, de 1925) com o espírito analítico. De acordo
com Truffaut, no prefácio da publicação suas entrevistas com Hitchcock, sem a
síntese o filme perde a qualidade rítmica, e por outro lado, se lhe faltar
análise, perde-se em clareza, portanto o controle do filme; questões técnicas da
alçada dos realizadores, colocadas em detalhe no livro.
Esta linha de raciocínio a respeito
do cenário pós-moderno, nos leva a outras dimensões, sendo uma delas a
"reflexividade programada (o cinema que, enquanto se faz, discute o
próprio cinema)" (XAVIER, p. 18). Este
tipo de consideração nos permite perceber, além da função meta do cinema, a falsa neutralidade da imagem técnica, tendo em
mente que quando uma máquina produz uma imagem, ela o faz a partir de um ponto
de vista escolhido pelo operador.
Conjecturando o cinema por esta
perspectiva, suspeitamos não ser factível uma forma objetiva de mostrar um
conteúdo socialmente relevante, visto que mesmo o que pressupomos "socialmente
relevante" dependerá da identificação do espectador, seja para um
indivíduo ou um grupo, disposto a levantar uma bandeira em praça pública.
A arte em geral, e o cinema com mais
alcance, está sempre tentando por em pauta um assunto "importante".
Seja tratando da miséria, do racismo, da corrupção, da eutanásia, da guerra, da
obesidade etc. Com mais ou menos eficiência, com mais ou menos profundidade, os
filmes abordam e trazem a baia assuntos que "precisam" ser discutidos
pela sociedade. Podemos citar filmes que
repercutiram, mais ou menos, no âmbito nacional e internacional. Por exemplo, o
filme Brokeback Mointain (Ang Lee,
2005), uma produção holliwoodiana, que evidenciou e buscou tratar, pelo novo
paradigma politicamente correto de sua época, a questão da homossexualidade; o
filme Bicho de Sete Cabeças (Laís Bodansky,
2000), através da retrospectiva, tentou tratar das instituições de saúde mental;
Tropa de Elite (José Padilha, 2007), lançou
olhar pretenciosamente ambiguo no sistema policial carioca; Jogo das Decaptações (Sérgio Bianchi,
2013), através de um discurso pessimista e supostamente apartidário, falou
sobre o desenrolar do movimento esquerdista brasileiro; etc. Podemos
acrescentar aqui toda uma produção brasileira dos anos 1960 e 1970 que foi
sumariamente censurada, não apenas no cinema como em outras arte, com destaque
para o teatro e a música. Realçamos que toda criação parte de um ponto de vista
subjetivo e a partir do momento em que
um filme reputa-se socialmente relevante
e objetivo, ele corre o risco de transformar-se em propaganda ideológica, como
o Encouraçado Potemkin veio a ser
considerado.
Em qualquer caso, seja nos filmes em
torno da "reflexividade programada", nos filmes de temas em evidência
ou "importantes", nos filmes propagandistas e até mesmo nos
"romanestos", o diretor utiliza técnicas de identificação quando
precisa atrair o espectador. Na maioria dos casos a intenção de atrair o
espectador é de ordem financeira: gerar
bilheteria e lucro. Porém em alguns casos, o filme visa denunciar e, de alguma
forma, convencer sua plateia, seu espectador, dando som e formas à ideologia.
Em um artigo, sobre a invenção do
espectador e as novas subjetividades, para o livro Semiótica Psicanalítica (2010), o psicanalista João Angelo Fantini,
infere, através do lacanismo, na constituição do espectador, no processo de
identificação e nas técnicas do cinema para o "assujeitamento". Para
ele, o espectador do cinema é correlato ao sujeito da psicanálise que
"está regulado por processos enunciativos nos quais o que ele considera
realidade é sempre um recorte que lhe é dado a ver, num processo de identificação que se inicia
desde seus primeiros momentos de vida" (FANTINI, 2013, p. 134). Ao fator
do recorte da realidade, Fantini acrescenta a disposição física do cinema: uma
sala escura equipada com uma gigantesca tela que toma para si toda a atenção do
sujeito que senta-se imóvel em uma confortável cadeira.
A impotência motora do espectador lembra o processo de
constituição imaginária do eu, antecipando sua unidade corporal e consolidando
precocimente sua organização visual. Lacan (1998), em sua formulação sobre o
'Estádio do Espelho'. expõe a ideia de um primeiro movimento dos processos
identificatórios, que funcionam como um primeiro esboço do eu: é o olhar (mãe)
que reflete o olhar do olhado (criança), antecipando a constituição imaginária
de um corpo, biologicamente prematuro, ainda em processo de mielinização de
seus neurônios, que não domina seus movimentos e depende de outro para
alimentá-la etc." (ibidem , p. 134-135)
No mesmo processo da construção do eu, constrói-se também o outro, com quem o eu irá disputar objetos de uma realidade
permeada por percepções e estímulos externos.
A tela como moldura que isola um objeto exclui o sujeito: a
imagem que vejo é aquilo em que não estou e onde me insiro pelo outro
(personagem,olhar). Como na constituição do eu (a dialética eu/outro,
perceber/ser percebido), o "eu" permanece objeto separado, como
quando falamos com nós mesmos: o sujeito da enunciação é sempre um não-dito que
só pode se presentificar ausentando-se no enunciado. No processo de enunciação
do filme, este enunciador - mesmo que identificado a uma voz ou personagem, por
exemplo - apresenta-se como ausência, isto é, como um lugar vago onde o sujeito
se coloca como centro do processo de
significação , numa troca de sentidos pré-construídos por cada um (Machado,
1996): nos sentidos que os realizadores
do filme tentam representar, nos sentidos que o sujeito traz ao entrar
na sala de cinema. (ibdem, p. 135)
Esta construção do espectador
através de um processo psíquico pressupõe que quando entra-se no cinema a
realidade é suspensa, viabilizando a identificação com a narrativa. Descontextualizados
de nossas vidas que acontecem do lado de fora do cinema, somos, dentro da sala,
novamente "assujeitados" na trama dada e, persuadidos pelas imagens,
participamos emocionalmente da história; associamos, intercalamos e
incorporamos nossas fantasias e desejos; finalmente, enunciamos nosso próprio
sentido à aquele dado pelo diretor.
Truffaut, ainda em seu prefácio,
elogia a maestria de Hitchcock ao construir cenas onde "a evidência e a
força persuasiva da imagem são tamanhas que o público não pensará"
(TRUFFAUT, 2004, p. 25). Podemos nos orientar nesta colocação, mais uma vez,
pela psicanálise: pensemos no abismo existente entre um bebê e a vida autônoma,
fazendo com que as pequenas tarefas exercidas pelos pais, principalmente, a
mãe, pareçam de uma complexidade gigantesca e inquestionável aos olhos do bebê,
que receberá incondicionalmente qualquer afeto ou atributo vindo de seus pais,
sem lhes perguntar o que "tudo isso" lhe custará no futuro ou
interpretar as metáforas dos cuidados mais básicos, como os da higiene e
amamentação.
Porém, diferente de nossos bebês que
poderão questionar os pais apenas após 3 anos (se tiverem sorte), supomos,
neste texto, espectadores minimamente maduros, criaturas que há muito superaram
a prematuridade imposta pelos primeiros meses de vida, e agora requerem manobras
criativas para engolir uma ideia - neste caso uma narrativa - que poderia ser
bastante indigesta se não elaboradas eloquentemente. Assim, no cinema, com
cálculo, planejamento e premeditação (funções estas dispensadas por nossos inexperientes
bebês em troca da pura e simples devoção
materna), aplica-se uma carga dramática sutilmente misturada a montagem de, por
exemplo, uma cena de um homem apressado para pegar um trem. A dramatização do
material - podem utilizar cortes rápidos de cena, closes no relógio, suor
escorrendo etc - permite que mesmo sem o homem dizer "Meu Deus! Que
horror! Vou perder o trem!", a plateia saberá que ele está atrasado.
A princípio esta ideia nos parece
contrária daquela dita anteriormente sobre o espectador enunciar seu próprio
sentido, porém, o espectador, que por mais sujeito, suspenso, vulnerável e
entregue àquele momento, absorvido pela projeção na tela, ao assistir a cena,
associará inconscientemente com uma experiência própria e, através do sistema
de transferência, mergulhará no filme, inferindo subjetivamente na narrativa
preconcebida. Ou seja, o cineasta montador atua como o pai ou mãe, envolvendo o
bebê numa nova experiência subjetiva, e quanto mais bagagem vivida o espectador
tiver, mais complexa será a interpretação do conteúdo pela forma.
O sistema de transferência causará
no espectador uma inquietação moral, que poderá ser expressa somente no término
da sessão, devido as convenções da sala de cinema - muito diferente daquelas
que Eisenstein almejou (cinema em praça pública com o povo gritando palavras de
ordem). Essa inquietação moral, quando identificada como socialmente relevante,
poderá procurar espaço para debate e precisará ter força suficiente para atrair
uma pequena multidão.
Hoje é muito difícil imaginar que um
filme, nacional ou internacional, venha a antecipar um evento público tão
intensamente que faça mobilizar a discussão popular de forma efetiva, até
porque, como sabemos, o espaço físico está perdendo sua significância. Se ontem
os encontros para trocar informações e ideias aconteciam em bares, cafés, teatros, grêmios
ou cinema, hoje são nas redes sociais. O preço a ser pago por isso é a
efemeridade, quando não a superficialidade, das pautas. Também devemos lembrar
que este novo palco virtual de discussão, além de bastante heteregôneo, sobrecarregado de signos e, por isso, sujeito
a interpretações diversificadas, com a incrível tendência de evidenciar,
maquiar ou encobrir dados, manipulando a agenda ideológica com facilidade.
É possível que a força motriz de uma
discussão venha de um filme, mas, mesmo que isso aconteça, ela logo tomará a
forma de rede, assim como os filmes ocuparão outros suportes para prolongar seu
tempo de atividade no circuito comercial. Até que os temas esvaziem-se de significantes
(o que pode demorar milênios), as associações serão feitas, os estandartes
serão eleitos, os grupos serão montados e, muitas vezes, logo dissolvidos,
esquecidos na eternidade.
O cinema como instituição - isto é,
o filme, as críticas, os festivais etc - pode (se é que não deve) denunciar,
educar, mostrar, refletir e ampliar nossa realidade, e talvez por isso, o
cinema pernambucano tenha se revelado como referência de produção brasileira.
Com um histórico que ganhou mais força
nos anos 1990, a produção pernambucana acompanhou as possibilidades técnicas de
seu tempo, utilizando-se do valor da coletividade quando abriram-se algumas
portas para a produção cinematográfica nacional. Com experiência adquirida pelo
contato com cineastas dos anos 1970 e 1980, com a possibilidade da formação
universitária e técnica, um grupo de apaixonados por cinema em Recife, organizavam
mostras regionais, escreviam críticas e pressionavam o poder público para galgar
mais espaço e financiamento. O resultado desta empreitada vivida por cineastas
como Lírio Ferreira, Paulo Caldas, Claudio Assis, Adelina Pontual, Marcelo
Gomes entre outros, é um cinema de representação mundial. Estes cineastas
conseguiram, juntos, mostrar os dois lados da moeda - a ética e a estética - de
uma região fora do principal eixo brasileiro (Rio - São Paulo), muito devido ao
clima de cooperação que eles captaram.
Essa geração de cineastas
pernambucanos dos anos 1990, divide espaço com uma nova geração, despontando na
segunda década do século XXI, que continua produzindo em grande escala. Hoje,
devido as evolução tecnológica, a coletividade não se vê mais tão necessária,
sendo possível até produzir um filme de orçamento baixíssimo, utilizando apenas
uma câmera digital e um computador, como no caso de A misteriosa morte de
Pérola (Guto Parente,
2014), curta-metragem exibido no Festival Janela de Cinema de Recife.
Esta
nova forma de fazer cinema, pode ser entendida como análoga a pintura burguesa
do século XIX, rejeitada por Elie Faure. O século XXI trouxe consigo novas
técnicas de produção voltadas para customização de bens e abandono da
massificação. E é para este lado também que observamos o desdobramento do comportamento
e das relações humanas, cada vez mais individualista. Porém, o clima de
colaboração ainda ressoa no cinema de Pernambuco, mesmo porque nesses casos
extremos de produção individual, o cineasta ainda depende de um impulso
coletivo, como festivais e mostras, para divulgar o seu trabalho.
O criador do Festival Janela é
Kleber Mendonça Filho, diretor de O Som ao redor (2013), filme que, além
de marcar sua estreia em longa metragem, conseguiu agradar tanto o público,
quanto a crítica e os curadores de festivais. Tendo iniciado sua carreira como jornalista
especializado em cinema (assim como Truffault) passou a realizar seus próprios
filmes e, há quase dez anos, organiza o festival. Referência no cinema
brasileiro, por efeito de sua experiência profissional, Kléber Mendonça Filho domina
as três principais instâncias da instituição (produção/crítica/festivais) e o segredo
de seu êxito em O Som ao redor pode
estar também em sua capacidade de formatação, fazendo um recorte da classe
média recifense, a partir de seu próprio contexto de vida, e ao mesmo tempo que
monta planos de tela clássicos, também cria cenários de "realismo social"
(pia suja, atores sem maquiagem etc). Pensamos que seja este um exemplo da
junção do espírito sintético e analítico, presente na obra de Hitchcock.
Porém dificilmente Kleber Mendonça
Filho poderia empreender tal missão se a arqueologia não se prestasse para sua
função. Esta construção, da qual O som ao
redor faz parte, é erguida há décadas por um cinema regional que almeja
sempre mais: uma linguagem que pesquisa a universalidade, a coesão e a
acessibilidade. Talvez seja esta a função social do cinema hoje: se não a
fagulha para a discussão e mobilização pública, com certeza, uma ferramenta
útil para expressar e registrar, através da subjetividade e criatividade (que
só podem ser humanas), o nosso momento histórico e desejos que escapam da
rotina.
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REFERÊNCIAS
EISENSTEIN,
Sergei. A Forma do Filme. Trad.
Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002
FANTINI, João Angelo. A invenção
do espectador e as novas subjetividades: da Renascença ao cinema 3D, dos games
ao ciberespaço". In: SANTAELLA, Lucia e HISGAIL, Fani. (org.). Semiótica Psicanalítica. São Paulo:
Iluminuras, 2013
FAURE, Elie. "Da
cineplastia". In: Função do cinema e
outras artes. Trad. Maria de Conceição Nobre. Lisboa: Edições Texto &
Grafia Ltda, 2010.
__________ "Introdução à mística do
cinema". In: Função do cinema e outras artes. Trad. Maria de Conceição Nobre.
Lisboa: Edições Texto & Grafia Ltda, 2010.
__________ "Vocação do cinema". In: Função
do cinema e outras artes. Trad. Maria de Conceição Nobre. Lisboa: Edições
Texto & Grafia Ltda, 2010.
MACHADO, Arlindo
. Cinema e Arte Contemporânea. Revista Z Cultural
(UFRJ), v. 8, p. 1-10, 2012. Disponível em: <http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/cinema-e-arte-contemporanea-de-arlindo-machado/>.
Acesso: 03 mar, 2015.
MENDONÇA FILHO, Kleber. "Mostra Novíssimo Cinema Brasileiro 2013". [debate com Kléber Mendonça Filho, realizado em 18 de março, 2013]. Publicado em 18/03/2014. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=iIawTiAxlzU>. Acesso: 03 mar, 2015.
TRUFFAUT,
François. Hitchcock/Truffaut:
entrevistas, edição definitiva. Trad. Rosa Freire d'Aguiar. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.
XAVIER, Ismail.
"Prefácio a edição brasileira". In:TRUFFAUT, François. Hitchcock/Truffaut: entrevistas, edição
definitiva. Trad. Rosa Freire d'Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras,
2004.
ZIZEK, Slavoj. "Alfred Hitchcock, or, The Form and its
Historical Mediation". In: Everything
you wanted to know about Lacan (but were afraid to ask Hitchcock). London
& New York, Verso, 1992.
[1] Esta tabela é formatada a partir do
texto introdutório de Slavoj Zizek para livro Everything you wanted to know about Lacan (but were afraid to ask
Hitchcock) (Verso, 1992)
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