quinta-feira, 27 de novembro de 2014

FEMINILIDADE: SdB & FREUD


FEMINILIDADE: SdB & FREUD.

Vivian Vigar - Centro de Estudos Psicanalíticos

INTRODUÇÃO          
A discussão em torno do desenvolvimento da sexualidade feminina é, talvez, a mais polêmica de toda a teoria psicanalítica, principalmente, freudiana. Para mim, até aqui, o é. Assim, das feministas que acusam Freud de misógino, passando pelo anti-humanismo de Foucault, depois pelo existencialismo de Simone de Beauvoir, seguido pelo gozo feminino de Lacan e, mais recentemente, o gênero como performance indicado por Judith Butler, traço aqui uma tentativa de posicionar-me perante a discussão.

No livro O Segundo Sexo (1949), Simone de Beauvoir (SdB) parafraseia seu amigo: " A mulher não ultrapassa nunca o pretexto" e, em seguida, afirma que a mulher investiga como nenhum homem: na observação, a mulher brilha; descreve a natureza, a singularidade humana com "adjetivos saborosos" e "imagens carnais"; assim, ela "revela sua experiência e seu sonho". Porém elas "não contestam a condição humana porque mal começam a poder assumi-la integralmente". (p. 912).

Penso que o feminismo possa padecer na mesma imanência feminina, apontada por SdB: o feminisno ainda não transcendeu seu pretexto. Segue, ao menos na generalidade (assim como as mulheres exemplificadas por SdB), observando e adjetivando os seres humanos: machistas, ousadas, sexistas, emancipadas etc. Assim, instigada pela leitura de O Segundo Sexo, é utilizando a feminista como contraponto que tecerei o presente trabalho sobre a feminilidade para Freud.

Também, minha tentativa de posicionar-me através deste ensaio é um pretexto: um estudo pretende um pensamento, um fim, mas não o é. É um estudo. O que o pretexto pode, de fato, é ser um caminho; às vezes sem volta ou sem fim, mas sempre implicado em um objetivo. No caso do feminismo, o caminho pode não ter um retorno (assim espero) ou um fim, porém é certo que, assim como a mulher, ele tem um objetivo, o qual você pode imaginar: a liberdade. Já o objetivo deste trabalho é, como já dito,  posicionar-me, organizando algumas ideias em relação ao feminino.

Um posicionamento exige um repertório. Para se construir um repertório precisamos de tempo. Tempo este que usamos de acordo com nossas "escolhas" subjetivas, nossos desejos e possibilidades. Portanto o recorte que faço aqui é uma arbitrariedade dentro de minha subjetividade. O que quero, dizendo isso, é assegurar-lhes que sei da existência da imensa variedade registrada sobre esse assunto: um esclarecimento em tom confessional que, acima de tudo, pede sua complacência.    

DO TEXTO "FEMINILIDADE", DE FREUD
Começo expondo a teoria freudiana a respeito do desenvolvimento sexual feminino. Tardiamente, em sua vida, Freud escreve "Feminilidade", para as Novas conferências introdutórias à psicanálise  (1933). Nele, antes de dar suas premissas para a investigação do desenvolvimento sexual feminino, são apresentadas algumas dificuldades para desvendar tal "enigma".  Primeiramente ele descreve a ambivalência e inadequação, em termos anatômicos, das qualidades "passivas" e "ativas" para o "feminino" e o "masculino"; depois aponta que "a supressão da agressividade, prescrita condicionalmente e imposta socialmente à mulher, favorece o desenvolvimento de fortes impulsos masoquistas (FREUD, [1933] 2010, p. 268); e, em seguida discute a possibilidade da parcialidade do analista homem no desenvolver de teorias da feminilidade (ibidem, p. 269). Tem, então, o início da investigação colocando duas expectativas a priori. São elas: 1) "a constituição não se ajustará à função sem alguma relutância"; 2) "as mudanças decisivas terão sido encaminhadas ou realizadas antes da puberdade". (ibidem, p. 269). A base de sua teoria é calcada em dois fatores: Diferente do menino, "a menina deve trocar de zona erógena e de objeto" (ibidem, p. 272). Ou seja, sobre a zona erógena,
"com a mudança rumo a feminilidade, o clitóris deve ceder à vagina sua sensibilidade [...] o homem, tendo mais sorte, na maturidade sexual precisa apenas dar continuidade ao que já praticou no período da primeira florescência sexual" (ibidem, p. 271)

Quanto ao objeto, tanto o menino como a menina, na fase pré-edípica, têm a figura da mãe como foco de investimento amoroso. Porém, enquanto o menino assim permanecerá por toda a sua vida, a menina está destinada a reverter este investimento objetal amoroso ao pai.

Segue-se, então, a explicação do complexo de castração, da inveja do pênis, do complexo de édipo masculino e o feminino, e como a mulher é prejudicada, em comparação ao homem, durante a determinação de sua sexualidade. Até, então, pouco temos a nos opor, pois apesar da falha em dar a devida importância a posição cultural da mulher, seu projeto, em termos psíquicos, é coeso, e como diz Simone de Beauvoir, "não é um empreendimento fácil discutir a psicanálise" (BEAUVOIR, [1949] 2009, p. 71). Porém, no penúltimo parágrafo do texto de Freud somos surpreendidos com opiniões que hoje nos soam até absurdas, tornando fácil entender porque tantas feministas repudiam o pai da psicanálise. Assim, nos é revelada sua duvidosa crença ("temos que admitir", ele diz) "que pouco senso de justiça nas mulheres provavelmente se liga à preponderância da inveja na sua vida psíquica", referindo-se à sua tese da inveja do pênis. E, como se não bastasse, ele segue, no mesmo parágrafo, afirmando "que os interesses sociais das mulheres são mais fracos e sua capacidade de sublimação é menor que nos homens." (FREUD, [1933] 2010, p. 292).

SdB E A PSICANÁLISE
Uma das mais célebres críticas da inveja do pênis é de Simone de Beauvoir. Em seu livro O Segundo Sexo, onde investiga o que é uma mulher, ela apoia-se no existencialismo, demonstrando a insuficiência, não apenas da psicanálise, mas também da biologia e do materialismo para dar sentido ao seu objeto, a mulher: Em que, o fato de ser mulher, afeta a vida da mulher? Que possibilidades foram oferecidas ou recusadas às mulheres? Que destino devem esperar as irmãs mais novas e como orientá-las? (BEAUVOIR, [1949] 2009, p. 29)
A perspectiva que adotamos é a da moral existencialista. Todo sujeito coloca-se concretamente através de projetos como uma transcendência; só alcança a liberdade pela sua constante superação em vista de outras liberdades; não há outra justificação da existência presente senão sua expansão para um futuro indefinidamente aberto. Cada vez que a transcendência cai na imanência, há degradação da existência em "em si", da liberdade em facticidade; essa queda é uma falha moral, se consentida pelo sujeito. Se lhe é infligida, assume o aspecto de frustração ou opressão. Em ambos os casos, é um mal absoluto. Todo indivíduo que se preocupa em justificar sua existência, sente-a como uma necessidade indefinida de se transcender. Ora, o que define de maneira singular a situação da mulher é que, sendo, como todo ser humano, uma liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se num mundo em que os homens lhe impõem a condição do Outro. Pretende-se torná-la objeto, votá-la à imanência, porquanto sua transcendência será perpetuamente transcendida por outra consciência essencial e soberana. O drama da mulher é esse conflito entre a reivindicação fundamental de todo sujeito que se põe sempre como o essencial e as exigências de uma situação que a constitui como inessencial. (ibidem, p. 30-31)

Assim, dada a abrangência filosófica de seu empreendimento, escolhi dois capítulos do livro, escrito em dois volumes, onde a autora dialoga diretamente com a psicanálise. São eles, "O ponto de vista psicanalítico" (Volume 1: Fatos e Mitos) e "A narcisista" (Volume 2: Da experiência vivida).

No primeiro texto supracitado, SdB examina as contribuições da psicanálise ao estudo da mulher, entendendo o "imenso progresso" da ciência de Freud
ao "considerar que nenhum fator intervém na vida psíquica sem ter revestido um sentimento humano". Traduzindo esta afirmação em termos existencialistas, ela continua, "não é o corpo-objeto descrito pelos cientistas que existe concretamente e sim o corpo vivido pelo sujeito" (ibidem, p. 71). Assim, dada esta introdução podemos passar entender a crítica do existencialismo beauvoiriano em relação a teoria da sexualidade freudiana.

A leitura feita por SdB entende que Freud estuda a mulher não em sua origem, "em si mesma", mas a partir do homem, sendo ele absoluto e ela a incompletude de uma fuga inautêntica, resultado da inversão a ela destinada pela "mutilação" e, consequentemente, inveja do pênis. Para ele, a libido feminina é um "desvio complexo da libido humana em geral" (ibidem, p. 73)[1].

Referindo-se ao complexo de Elektra (termo sabidamente rejeitado por Freud), ao complexo de Édipo e ao complexo de castração, SdB assinala uma rigidez descabida. Para ela, enquanto a psicanálise "supõe que a mulher se sente um homem mutilado", (..) "muitas meninas só tardiamente descobrem a constituição masculina", e ainda, quando descobrem - a feminista continua com uma pequena dose de ironia -, "esse frágil caule de carne só pode inspirar indiferença e até repugnância". Ou seja, a inveja do pênis não deve, invariavelmente, originar da "simples confrontação anatômica", mas de "uma valorização prévia da virilidade" (ibidem, p. 74-75). A crítica vale para os meninos também: "a presença de um complexo de Édipo de ordem propriamente genital está longe de ser geral" (ibidem, p. 75)

Assim como Jung (porém, obviamente, em um caminho diferente), SdB entende que nem tudo é sexo. Na ontologia do ser, nos encontramos, nos definimos no confronto com valores dados às significações criadas pelos sujeitos, "pela realidade humana que é mitsein[2] ao mesmo tempo que separação" (ibidem, p. 80). Vemos aqui, uma tendência de SdB para uma psicanálise nos moldes mais lacanianos[3], atribuindo a um Outro a constituição do sujeito, refletindo sobre o paradoxo mitsein/separação:
Essa perspectiva permite-nos, por exemplo, compreender o valor geralmente dado ao pênis. É impossível explicá-lo sem partir de um fato existencial: a tendência do sujeito para a alienação. A angústia de sua liberdade conduz o sujeito a procurar-se nas coisas, o que é uma maneira de fugir de si mesmo; é uma tendência tão fundamental que logo após a desmama, quando se acha separado do Todo, a criança esforça-se por apreender nos espelhos, no olhar dos pais, sua existência alienada. Os primitivos alienam-se no mana, no totem; os civilizados em sua alma individual, em seu eu, em seu nome, em sua propriedade, em sua obra: é a primeira tentação da inautenticidade. (ibidem, p. 80-81)

Lembremos que é no mesmo ano da publicação de O Segundo Sexo que Lacan comunica, pela segunda vez a concepção do estádio do espelho, no XVI Congresso Internacional de Psicanálise. É sabido, também, através da biografia de Lacan[4], que a filósofa recorreu ao psicanalista antes de publicar O Segundo Sexo, porém a parceria não rendeu frutos. Assim, SdB cita, Lacan e seu texto, "Complexos familiares na formação do indivíduo", apenas em uma nota de roda pé sobre a constituição de identidade.

Voltando-nos a crítica da teoria da sexualidade, SdB  afirma que a fraqueza da psicanálise reside não apenas na recusa da noção de valor - dado do mundo das significações do mitsein -, mas também a noção de escolha, interditada pela contingência psíquica, resultado do que conhecemos como banquete totêmico. Aqui, ao meu ver, SdB desliza na compreensão da teoria psicanalítica, subtraindo a importância da proibição do incesto para nosso arcabouço psicológico. Ela diz:
Tendo desligado impulsos e proibições da escolha existencial, Freud malogra em  explicar-lhes a origem: toma-os por todos. Tenta substituir a noção de valor pela de autoridade; mas, em Moisés e seu Povo, ele convém em que não há meio de explicar essa autoridade. O incesto, por exemplo, é proibido porque o pai o proibiu: mas por que essa proibição? Mistério. O superego interioriza ordens e proibições emanando de uma tirania arbitrária; as tendências instintivas existem não se sabe por quê; as duas realidades são heterogêneas porque se considerou a moral alheia à sexualidade; a unidade humana apresenta-se quebrada, não há passagem do indivíduo à sociedade; Freud é obrigado a inventar estranhos romances para reuni-los (ibidem, p. 78)

Sabemos, no entanto, que Freud, no texto Totem e Tabu, apoia-se no darwinismo, para remontar a proibição do incesto a partir do "assassinato" do pai primitivo por seus filhos, e são estes (os filhos, irmãos) que, ao perceberam a necessidade de estarem juntos para dar continuidade a horda, instituem a proibição do incesto. Ainda assim, Freud aponta para a dificuldade em adotar mitos tão distantes no intuito de dar sentido à sobrevivência infantil. Portanto, aqui julgamos  injusta ou ingênua a leitura de SdB.

Evoluindo do banquete totêmico ao narcisismo (onde a filósofa sai-se melhor), pudemos constatar, um ponto de congruência entre nossos dois pensadores: ela reconhece o maior risco da mulher em não "atingir o termo de sua evolução sexual, a permanecer no estágio infantil e, consequentemente, a desenvolver neuroses" (ibidem, p. 73), devido a necessidade de troca de zona erógena, do clitóris para a vagina. Porém, como já vimos, há muito para ser investigado além da anatomia, e esta tese será demonstrada no segundo texto aqui estudado, "A narcisista", onde SdB faz uma seleção de artistas, focando em traços característicos das mulheres neuróticas, infantilizadas, buscando entender suas "experiências vividas", como sugere o título de seu volume 2.

Narcisismo é um termo, hoje, bastante utilizado no cotidiano e tem ganhado cada vez mais espaço para tentar explicar as patologias sociais do século 21[5]. No uso comum, narcisista é aquele que pensa mais em si e coloca-se sempre a frente de todos; seja em relações de classe, amorosas, trabalho ou até família: os interesses do narcisista são sempre preponderantes. Na sociologia, que entende a sociedade contemporânea hedonisticamente doente e fomentada pelo capitalismo, verifica-se a subjetivação do indivíduo através de um desvio narcisista, este ratificado no comportamento generalizado nas mídias sociais que, por sua vez, como uma ferramenta propagadora, contribui com a ideia. A auto promoção do sujeito nas redes sociais (como, por exemplo, os selfies) apontam para uma formação narcísica que implica o ter e não o ser.

O termo narcisismo ganhou conotação psicanalítica através de Freud, em 1910, para entender os homossexuais ("invertidos"), pois estes tomam a si mesmos como objetos sexuais. Logo em seguida, Freud passa a considerar o narcisismo como uma fase do desenvolvimento sexual "normal", marcada pela passagem do auto-erotismo para o amor de objeto. Porém em um segundo momento, o narcisismo passa a ter também o caráter de regressão, quando há um desequilíbrio na distribuição de libido entre os objetos de amor e a si mesmo ou, na terminologia de Freud, ao Eu ideal.
O narcisismo parece deslocado para esse novo Eu ideal, que como o infantil se acha de posse de toda preciso perfeição. Aqui, como sempre no âmbito da libido, o indivíduo se revelou incapaz de renunciar à satisfação que uma vez foi desfrutada. Ele não quer se privar da perfeição narcísica de sua infância, e se não pôde mantê-la, perturbado por admoestações durante seu desenvolvimento e tendo seu juízo despertado, procura readquiri-la na forma nova do ideal do Eu. O que ele projeta diante de si como seu ideal é o substituto para o narcisismo perdido da infância, na qual ele era seu próprio ideal (FREUD, [1914] 2010,p. 40)

Já SdB apropria-se do termo para introduzir o texto "A narcisista", um capítulo um pouco mais amigável com a teoria psicanalítica. Ela diz:
Na realidade, o narcisismo é um processo de alienação bem definido: o eu é posto como uma fim absoluto e o sujeito nele foge em si. [...] A verdade é que as circunstâncias convidam a mulher , mais do que o homem, a voltar-se para si mesma e a dedicar-se a seu amor. (BEAUVOIR, [1949] 2009, p. 817)

É fato que 60 anos se passaram desde a publicação do "tratado feminista", de SdB, e hoje, estamos, homens e mulheres, caminhando em direção a igualdade sexual. Porém me parece que ao mesmo tempo que a mulher dá alguns passos, no ritmo dois para frente e um para trás, o homem reposiciona-se lentamente, porém, na direção oposta. Arrisco tal afirmação levando em conta o diagnóstico popular do narcisismo ser uma patologia do nosso século, e de minha interpretação de que os tipos narcísicos -apresentados por SdB, defendendo a dificuldade da mulher transcender como ser humano - mostram-se também nos homens de hoje.
A mulher é levada ao narcisismo por dois caminhos convergentes. Como sujeito, ela se sente frustrada; em menina viu- se privada desse alter ego que o pênis é para o menino; mais tarde sua sexualidade agressiva permaneceu insatisfeita. E, o que é muito mais importante, as atividades viris lhe são proibidas. Ela se ocupa, mas não faz nada; através de suas funções de mãe, esposa, dona de casa, não é reconhecida em sua singularidade. A verdade do homem está nas casas que constrói, nas florestas que arroteia, nas doenças que cura: não podendo realizar- se através de projetos e objetivos, a mulher se esforçará por se apreender na imanência de sua pessoa. (ibidem, p. 817)

Antes de continuar, insisto, novamente, que 60 anos se passaram desde que essas palavras foram registradas, e acredito que alcançamos certa "evolução", porém também insisto na existência de um longo caminho até inteirarmos um novo paradigma, repensado até mesmo dentro do universo masculino.

Continuando... SdB parte então para definir alguns tipos narcisistas encontrados em suas "irmãs" a partir de uma seleção de artistas que deixaram suas impressões sobre a experiência vivida da mulher. Dentre elas destacamos Marie Bashkirtseff, Anna de Noailles, Dorothy Parker, Isadora Duncan, Mabel Dodge e Anne Louise Germaine de Staël. A vida e obra dessas mulheres ilustram, para SdB, por vezes a imanência do gênero feminino no âmbito social, econômico e psicológico e, outras vezes, contradizendo a grande falácia de Freud citada no início deste trabalho, a possibilidade da transcendência feminina através da sublimação. Citemos algumas condições femininas que, como já dito, acreditamos abranger também nossos parceiros machos contemporâneos para, enfim, fecharmos, pelo momento, nossa exposição. Por uma questão didática, organizaremos em tópicos algumas "práticas" narcisistas identificadas nas mulheres por SdB:
·      No para si "em si": a mulher que se vê autosuficiente. Deseja-se. "Vou me amar", "Vou me possuir", "Vou me fecundar".
·      Na boneca: Como o para si "em si" pode ser somente sonhado, a menina materializa suas mais fantasias de si mesma em suas bonecas. Identifica-se com ela nas brincadeiras e cuida delas como se fossem personificações de suas fantasias.
·      No espelho: "É principalmente no caso da mulher que o reflexo se deixa assimilar ao eu. A beleza masculina é indicação da transcendência, a da mulher tem a passividade da imanência: só a segunda é feita para deter o olhar e pode portanto ser pegada na armadilha imóvel do espelho; o homem que se sente e se quer atividade, subjetividade, não se reconhece em sua imagem parada." (ibidem, p. 819).
·      No interior, imaginário: Seria uma espécie de entidade interior, imaginária, a qual a mulher recorre, em pensamento, para dialogar sobre suas fantasias.
·      Na infância: a nostalgia da infância, típica na mulher. Nostalgia de "um futuro livre que se abria", em contrapartida de seu presente decadente, "fadada à imanência e a repetição" (ibidem, p. 822)
·      Na excentricidade: "Buscam convencer-se de que seus gestos, suas ideias, seus sentimentos conservam um insólito frescor" (ibidem, p. 822). Característica que nos parece simetricamente inversa ao que Freud entende por carácter de "exceção". Enquanto a exceção seria uma "desvantagem congênita"[6], a excentricidade seria uma característica única e original que a torna especial.
·      Na personagem: Uma personagem que faz a mulher sentir-se parte de um romance. Identificam-se, frequentemente, com heroínas trágicas ou cômicas das artes, e murmuram: "Minha vida é uma novela" (ibidem, p. 823).
·      No mistério: Como não lhes é conferido ou reconhecido um destino concreto e objetivo, sua verdade é impalpável, impossível de exprimir-se na ação cotidiana, ela se acredita, incompreendida e habitada por um mistério. (ibidem, p. 825)
·      No cenário: Enquanto um jovem, ao deixar a casa de seus pais para cumprir seu destino de homem, aluga qualquer "cafofo", a jovem procura "um cantinho seu", que reflita sua personalidade através da decoração.
·      No exibicionismo: Performa suas histórias de vida, quando não ao público (no caso da artista), à uma amiga, médico, psicanalista ou vidente. "Não é porque acredite nisso", dizia uma starlet a respeito de suas consultas com um místico, "mas gosto que falem de mim, para mim" (ibidem, p.826)
·      Na musa:  "Muitas mulheres, imbuídas de sentimento de superioridade, não são entretanto, capazes de manifestá-la aos olhos do mundo; sua ambição será então utilizar, como instrumento, um homem a quem convencerão dos seus méritos; [...] na esperança de se identificar com eles, fazendo-se musas, inspiradoras, egérias" (ibidem, p. 829)

Para SdB, a mulher - generalizando a mulher dos anos 1940 - fica no pretexto. Não consegue passar à ação, pois está sempre explicando-se, entendendo-se, aprovando-se como ser humano, bloqueando, assim, a passagem ao ato de ser. Interdita-se na onipotência do narcisismo, e sente-se ameaçada pela aprovação alheia, já que ela é o Outro, o segundo sexo, em um mundo masculino. Porém, olhando para estes exemplos, identifico muitos homens do século 21 que se encaixam nos padrões acima.

Poderíamos aplicar os tópicos acima a realidade humana (sim, machos e fêmeas), porém precisamos fechar este texto e para tanto, citaremos o caminho feminista que não vale-se apenas da capenga teoria psicanalítica da sexualidade; um caminho que entende a mulher não como um ser que hesita entre "virilóide" e "feminina", mas "entre o papel de objeto, de Outro, que lhe é proposto, e a sua reivindicação de liberdade" (ibidem, p. 85)
Libertar a mulher é recusar encerrá-la nas relações que mantém com o homem, mas não as negar; ainda que ela se ponha para si, não deixará de existir também para ele: reconhecendo-se mutualmente como sujeito, cada um permanecerá entretanto um outro para o outro; a reciprocidade de suas relações não suprimirá os milagres que engedra a divisão dos seres humanos em duas categorias separadas: o desejo, a posse, o amor, o sonho, a aventura; e as palavras que nos comovem: dar, conquistar, unir-se conservarão seus sentidos. Ao contrário, é quando for abolida a escravidão de uma metade da humanidade e todo o sistema de hipocrisia que implica, que a “seção” da humanidade revelará sua significação autêntica e que o casal humano encontrará sua forma verdadeira. (ibidem, p. 935)

Esta citação implica situações práticas, encontradas em nossa sociedade, representadas pelo conservadorismo, resultado deste medo de perder o sentido.


BIBLIOGRAFIA

FREUD, Sigmund. "Introdução ao narcisismo" [1914]. Obras Completas - volume 12. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo; Companhia das Letras, 2010.

__________. "Feminilidade" [1933]. Obras Completas - volume 18. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo; Companhia das Letras, 2010.

BEAUVOIR, de Simone. O Segundo Sexo. [1949]. Tradução Sérgio Milliet. 2 ed. 2 v. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.








[1] No entanto, devemos lembrar o reconhecimento de Freud ao citar a possibilidade de parcialidade do analista homem, quase admitindo a fragilidade de seu ponto de vista.
[2] Termo cunhado por Heidegger para capturar a característica humana do "ser com outro". São significados e situações compartilhadas no mundo das referências.

[4] Elisabeth Roudinesco, Jacques Lacan, trans. Barbara Bray, Columbia University Press, New York, pp. 168-9.

[5] cf. "Narcisismo – Uma Patologia do Nosso Tempo",  Ernesto Dudovich.


[6] cf. FREUD, "Alguns tipos de caráter encontrados na prática psicanalítica" (1916).

sábado, 6 de setembro de 2014

Da Psicanálise ao Direito: conceitos interdisciplinares para uma análise da percepção da realidade no filme A Febre do Rato.


Vivian Vigar

Publicado no livro Fazeres Interdisciplinares [Regina Giora (org.), 2014]


INTRODUÇÃO

Este artigo propõe relatar o caminho interdisciplinar traçado para analisar como o filme A Febre do Rato (Claudio Assis, 2011) reflete as percepções de seu diretor a respeito das relações de poder na sociedade contemporânea. Essa análise, na qual este artigo se baseia, está na dissertação Poética e violência em A Febre do Rato: contexto e conceitos  (VIGAR, 2014) e foi apresentada como requisito à obtenção do título de Mestre, orientada pela professora Drª. Regina Giora, no programa interdisciplinar de Educação, Arte e História da Cultura, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Partindo de uma personalidade de nossos tempos, um crítico cultural bastante evidente na mídia, Slavoj Žižek - cuja obra teórica, fundamentalmente marxista, hegeliana e lacaniana, permite travar contato com outros autores, principalmente, provenientes da Filosofia do Direito e da Psicanálise, ensejando um olhar multilateral da sociedade e suas estéticas -, a dissertação supõe, então, Claudio Assis como um cineasta empenhado em refletir de forma responsável - por um bem comum a todos, mesmo que enlaçado por sua subjetividade -, e toma seu último filme como objeto para, dentro de um recorte deste "olhar e perceber a sociedade contemporânea", abordar a ética e a estética da violência e, enfim, relacionar com uma possível estética dos protestos sociais na contemporaneidade. Assim, faremos uma apresentação de Poética e violência em A Febre do Rato: contexto e conceitos, identificando seu conteúdo principal, para, em seguida, esclarecer como, principalmente, através da Psicanálise e do Direito, ela se desenvolvimento interdisciplinarmente.

A dissertação, faz uma análise apontando algumas formas de violência na sociedade contemporânea ocidental, moldada  pelos valores da tradicional cultura judaico-cristã, tendo o cinema pernambucano, principalmente, o filme de Claudio Assis, A Febre do Rato (2011) como objeto, e propondo interpelações estéticas e éticas sobre algumas formas de violência que podem ser observadas nos filmes. Assim, fazendo-se valer do princípio do Programa de Educação Arte e História da Cultura, a interdisciplinaridade, a dissertação buscou tecer uma rede de conhecimento - entrelaçando fato (história e teoria) e ficção (o cinema) - refletindo a cerca de aspectos (focando na violência) de uma sociedade atravessada, ao mesmo tempo, pelas culturas da globalização e do regionalismo. É importante ressaltar que este trabalho foi escrito sub influência direta da Psicanálise, em vista que, paralelamente, a autora estudava a obra de Sigmund Freud, cientista este que sempre defendeu a interdisciplinaridade, entendendo inclusive as limitações dessa possiblidade. Lembremos de uma passagem do texto "Totem e Tabu": "um defeito inevitável dos trabalhos que procuram aplicar a psicanálise a temas das ciências humanas é oferecer muito pouco aos leitores de ambas as disciplinas" (FREUD, 2012 [1912], p. 121). Assim, guardada as devidas proporções, a dissertação, ao se propor interdisciplinar, assumiu o mesmo risco da psicanálise.
 
Após uma breve contextualização do cinema pernambucano - onde coloca-se o diretor do objeto de pesquisa, o filme A Febre do rato - a dissertação dispõe conceitos fundamentais selecionados para falar de algumas formas de violência que nos deparamos em nossa sociedade: a violência contra a mulher, a miséria, a violência gratuita [como uma pulsão incontrolada - sádica, ou psicótica - inerente em algumas pessoas], a violência do opressor e do oprimido etc. Dentre estes conceitos pesquisados, levando em conta a interdisciplinaridade, destacam-se:

·      "Vida nua" - pesquisado em "Sobre a crítica do poder como violência" (BENJAMIN, 1921) e Homo Sacer I (AGAMBEN, 1995). Nas palavras de Benjamin, "No âmbito da vida nua cessa a dominação do Direito sobre os vivos." (BENJAMIN, 2012, p. 79). Ou seja um ser humano que não pode ser culpado ou absolvido, vivendo na anomia (sem lei). Agamben relaciona a vida nua aos presos de Guantânamo e ao homo sacer, uma figura jurídica do antigo Direito romano.
·      "Violência divina" e "violência mítica" - também proveniente de "Sobre a crítica do poder como violência" (BENJAMIN, 1921); Benjamin distingue a violência divina e a violência mítica, sendo a primeira "representada pelo poder revolucionário, expressão pela qual se deve ser designada a suprema manifestação do poder puro exercido pelo homem" (BENJAMIN, 2012, p. 82), colocando em jogo o poder puro e imediato, disponível para lutar e destruir os limites impostos pelo poder mítico, que por sua vez, representa o poder constituinte do Direito, servido pelo poder administrado do Estado.
·      "Significante-mestre" -  da teoria psicanalítica de Jacques Lacan, pesquisada para a dissertação, principalmente, na obra de Slavoj Žižek que, por sua vez, explica o conceito como "o conjunto de regras fundadas para si mesmas ('é assim porque é, porque é o nosso costume)" (ŽIŽEK, 2011, p. 41), "um gesto decisivo, que não pode ser baseado na razão, é o Mestre" (ŽIŽEK, 2008, p. 35).
·      "Homo Sacer" - como dito anteriormente, uma figura jurídica do antigo Direito romano, retomado no livro inicial, Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua I (AGAMBEN, 1995), de "uma série de investigações genealógicas dos paradigmas (teológicos, jurídicos e biopolíticos) que têm exercido uma influência determinante sobre o desenvolvimento e a ordem política global das sociedades ocidentais" (AGAMBEN apud COSTA, 2006, p. 131).
·      "Estado de exceção" - título do livro de Giorgio Agambem (2004), continuando a série iniciada com Homo Sacer I; Agamben propõe que estado de exceção seja "um paradigma de governo dominante", apresentado como um "patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo" (AGAMBEN, 2004, p. 13) e situado no limite entre a política e o direito. (ibidem, p. 11). Por ser um decreto que suspende a lei a fim de superar uma crise política, aponta para o possível equívoco, explicando que, "o estado de exceção não se define, segundo o modelo ditatorial, como uma plenitude de poderes, um estado pleromático de direito, mas sim, como um estado kenomático, um vazio e uma interrupção de direito." (ibidem, p. 75).
·      e "espaço anômico" - este, um espaço vazio de direito, onde a regra é aplicada por uma força de lei sem lei, possibilitado pelo estado de exceção e onde os conceitos anteriores convergem. 

Porém, a dissertação em questão toma forma da autora apenas nas últimas páginas, quando é introduzida uma reflexão a respeito de uma possível estética do protesto, pensada a partir de um momento político do Brasil, ainda em desdobramento, com bastante evidência na mídia e na sociedade em geral, principalmente nas grandes capitais.

A estética do protesto foi relacionada ao título do trabalho, "A poética da violência  em A Febre do Rato", justamente porque Claudio Assis, o diretor do filme, nos apresenta um personagem, um ativista político, que encaixa-se em vários dos conceitos estudados e, ainda que esta escolha "peque" pelo positivismo,  encontramos nele um gancho conveniente para retratar o momento histórico do País.

Além da polivalência do personagem, uma pessoa aparentemente destituída de certos tabus e morais, Zizo, nome do personagem é um artista, e utiliza a poesia performática como canal para ser ouvido.  Questiona-se, então, se não é este, a performance, exatamente, o meio que os ativistas encontram para serem ouvidos. E no subcapítulo, "Poesia como subterfúgio da vida nua e a estética do protesto", preconiza-se sobre esta possível estética do protesto, utilizando algumas manifestações recentes como exemplos históricos.

DELIMITANDO E ENCADEANDO CONOTAÇÕES

Tendo identificado o cenário utilizado para o presente artigo, tentaremos esclarecer o encadeamento proposto no resumo: "poder na sociedade contemporânea", "ética e estética da violência" e "protestos sociais". Isto, sem antes delinear brevemente, tais conotações chaves.

Primeiramente, por "protestos sociais" entendemos as manifestações públicas que levam em conta propostas políticas. Para mantermos o artigo na contemporaneidade, podemos citar movimentos ecoados por todo o mundo, como o Black Black e o Femen, ambos idealizados no exterior, mas reverberados no Brasil e outros movimentos pontuados por questões locais como os protestos na praça Taksin, na Turquia ou o rolezinho, do Brasil.

Segundo, em relação a "ética e estética da violência" compreende-se o estudo das representações, ligadas à condição do artista ou do observador em relação ao mundo histórico-social ao qual pertence. Para tanto podemos sugerir, por exemplo o manifesto de Glauber Rocha, Eztetyka da Fome (1965), que através do cinema, procurava representar eticamente a questão da violência, principalmente no viés da miséria, no Brasil. O mesmo podemos dizer de Claudio Assis, ao enfatizar que a produção cinematográfica do Brasil deve refletir a realidade econômica e social: "Tem de ter um teto de R$ 3 milhões para filmes feitos com dinheiro público", o diretor afirmou em entrevista (s/d)[1], devido as restrições orçamentárias de um País que convive com a pobreza.

E por último, "poder na sociedade contemporânea" refere-se às relações de dominância enraizadas na cultura, de forma a propiciar o surgimento de uma "ética e estética da violência", que por sua vez, caracterizará as possíveis "estéticas do protesto"; conjunto, este, estudado aqui através da Psicanálise e do Direito, respaldados pela dialética hegeliana do senhor e do escravo. Do "poder na sociedade contemporâneas", entendemos sujeitos que habitam um universo predominantemente destituído da proteção de um direito justo, marcados pela precariedade das estruturas sociais dominadas por um grupo menor, escrevem a História e as Leis. Mas, por outro lado, quando estudado pela Psicanálise, identificamos estes sujeitos (dominantes e dominados) como possíveis apenas através do desejo do Outro, um existir (ou "ex-sistir"), dependente da linguagem e da estrutura cultural, moldadas pela história da psicologia profunda.

Delimitada as conotações, podemos demonstrar seus encadeamentos de forma a usufruir da possibilidade interdisciplinar, principalmente do Direito e da Psicanálise. Tomando pelo pressuposto benjaminiano do poder mantido através da violência mítica e o termo biopoder cunhado por Michael Foucault, podemos entender, passo a passo, como a estética do protesto absorve a ética e estética da violência, esta reflexo direto das relações de poder da sociedade, e como o Direito recai sobre a Psicanálise neste processo.

Se a violência mítica é, como dito anteriormente, "o poder constituinte do Direito, servido pelo poder administrado do Estado", e o biopoder, para Foucault, é - conforme postulado ao Collége de France, em 1978 - "o mecanismo de estratégias políticas que levam em conta as características biológicas básicas da espécie humana"[2] , podemos pensar que a violência mítica é, hoje, aplicada através do biopoder, que por sua vez é conduzido não apenas por instituições públicas, mas também privadas, sejam elas culturais, religiosas, educacionais, médicas, jurídicas, alcançando sobre o corpo, suporte da vida, as relações de poder.
[...] elas [instituições] o investem, o marcam o dirigem , o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível quando ele está preso num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. (FOUCAULT, 2011, p. 28-29)

E dentro das instituição citadas a cima, destacamos a indústria cultural que, por razões óbvias (a necessidade de vender bens de consumo por meio de um estilo de vida) exerce poder quase direto sobre o corpo, através do entretenimento e da propaganda, lançando mão do desejo, do desejo de ter, de consumo insaciável, construído em nossas sociedades para substituindo o ser e, assim, compreendido pelo psicanalista Christian Dunker, como "esforço de ajustamento e o legítimo desejo de ser reconhecido como “alguém”. (DUNKER, 2010).

E se vivemos em uma sociedade projetada pela indústria cultural, que por sua vez age esteticamente sobre os corpos a partir de uma "característica biológica básica do ser humano" - o desejo -, fundando através dele um meio de poder que constitui o Direito  (afinal, o poder político é lobista, atrelado ao mercado de consumo), não poderíamos deixar de compreender que a violência mítica é ética e estética.

Podemos arriscar, também, dentre as características básicas do ser humano, a necessidade de organizar-se em sociedade e, assim, nossa realidade histórica atual mostra-se como um ambiente oportuno para dominar os sujeitos através de uma violência que se permite não usar a força física, mantendo-nos em estado insaciável, contemplando-nos com a ideia de que vivemos em uma democracia. Neste campo onde instala-se um regime de Direito e economia "neoliberal", coloca-se em oposição as ditaduras e ao comunismo. Porém a dita democracia e o neoliberalismo, têm suas significações completamente deturpadas. Primeiramente, como é fácil detectar, o neoliberalismo nada tem de novo ou liberal e, segundo, a "democracia", supostamente, "poder do povo", todos envolvidos em autogoverno coletivo, não passa de uma ficção: no máximo uma instituição onde é permitido votar em um número limitado de candidatos, tendo o capitalismo "neoliberal" como um imperador virtual e os megaempresários, não como burgueses mas, como verdadeiros aristocratas que usufruem da força de trabalho, movida por essa vontade insaciável de consumo da população ocidental.  Nesta lógica, coloca-se a Psicanálise a serviço do Direito, fazendo necessário um estudo interdisciplinar para entendermos o processo.

Assim, tenta-se demonstrar a hipótese de como a ética e estética da violência está relacionada as relações de poder: se o status quo (senhor/escravo) permanece através do biopoder, e um de seus instrumentos é a indústria cultural - como uma violência implicada na sugestão do desejo insaciável através da propaganda - que por sua vez é simbólica, subliminar e deturpada, a resposta, seguindo o conceito do significante-mestre, - "o que Hegel chamou de 'Espírito objetivo' (a substância social dos costumes)" (ŽIŽEK, 2011, p. 53), onde, Mestre é aquele que "estruturou o inconsciente (político-ideológico) do sujeito" (s/d). "O Mestre é o ingrediente constitutivo da própria ordem simbólica, por isso as tentativas de superar a dominação só geram novas figuras do Mestre" (ŽIŽEK, 2013, p. 28) - seria quebrar os paradigmas das relações de poder - na linguagem lacaniana, o significante-mestre -  mas devido a impossibilidade de fuga desse mestre, está tarefa têm sido difícil de aplicar em termos pragmáticos.

Este cenário mostra-se claramente quando vemos, por exemplo, grupos que se dizem contraculturais, como os Black Blocs, utilizarem símbolos provenientes do poder oficial, como as roupas militares, lembrando-nos, também, do meio utilizado pelos russo no início do século 20, para criar uma sociedade independente do Estado, o comunismo. Este meio era uma ditadura: a ditadura do proletariado. Como explica o filósofo, Michael Hardt, a verdadeira democracia seria possível, apenas, por um desenvolvimento positivo: praticando. Isso seria a verdadeira revolução, uma utopia praticada todos os dias. Diferente da revolução proposta por Lenin, iniciada por uma negação, "purgatório/paraíso", onde primeiramente muda-se a "natureza humana"[3], através da ditadura do proletariado, para depois as pessoas estarem prontas para a democracia e, então, o Estado não ser mais  necessário. (HARDT, 2008)

E dessa forma tentamos fazer uma crítica dos protestos atuais, legitimando-os, mas atentando para uma questão que deve ser olhada a fim de tornar as ações mais efetivas e construirmos uma cultura onde as relações de poder reflitam as relações de poder melhores distribuídas entre toda a população. Arriscamos a dizer que o que vemos nas manifestações sociais são reflexo e continuação da própria situação a qual tenta-se reverter. As manifestações se dão de forma estética, utilizando-se da indústria cultural para sua disseminação, que por sua vez é controlada por aqueles que dominam as relações de poderes. Não há aqui uma resposta, apenas um pensamento interdisciplinar relacionando causa e efeito.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.

­­__________. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

BENJAMIN, Walter. "Sobre a crítica do poder como violência" (1921). In: BARRENTO, João (org. e trad.) O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica Editora: 2012.

COSTA, Flávia. Entrevista com Giorgio Agamben. Revista do Departamento de Psicologia, UFF. , vol.18, n.1, p. 131-136. Niterói: 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-80232006000100011> Acesso: 05 de ago, 2014.

DUNKER, Christian. "A querela psicanalítica do consumo". Revista Cult. ed. 153. São Paulo: Editora Bregantini, 2010.

FREUD, Sigmund. "Totem e Tabu" [1913]. In: Obras completas, volume 11 (1912-1914). Tradução Paulo César de Souza. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

FOUCAULT, Michael. Security, Territory, Population: Lectures at the Collège de France, 197778 Edited by Michel Senellart. Translated by Graham Burchell. London: Palgrave Macmillan, 2007.

HARDT, Michael. "On revolution and democracy" In: TAYLOR, Astra. Examined Life: Philosophy is in the streets. [Filme-vídeo]. Produção de Silva Basmajian, Bill Imperial, Ron Mann, Lea Mann e Alexander Taylor. Nova York, Sphinx Production, 2008. Color, 88 min. son. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=poy8Cas_cew. Acesso: 08 de ago, 2014.

ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. Trad. Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Biotempo, 2008.

__________.Primeiro como tragédia, depois como farsa. Trad. Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Biotempo, 2011.

__________. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. Trad. Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2013.



[1] Entrevista concedida a Cléber Eduardo para o site Contratempo. "Entrevista com Cláudio Assis". Sem data especificada, mas aparentemente por volta de 2002. Disponível em:< http://www.contracampo.com.br/52/entrevistaCláudioassis.htm>. Acesso: 16 de maio, 2014
[2] Tradução nossa.
[3] Por "natureza humana", Michael Hardt denota - seguindo o pensamento de Foucault - uma construção histórica e cultural. "A história dos hábitos e práticas, resultado de lutas e vitória".