O estilo é o
homem a quem eu me dirijo.
LACAN
1. INTRODUÇÃO
"Sobre a técnica
psicanalítica" é o tema do ciclo V da formação no CEP (Centro de Estudos
Psicanalíticos) e parte do título deste trabalho. Tema - desencadeado da lógica
didática do curso - que parece ensejar os alicerces principais do que
costumamos chamar de setting analítico.
Sobre o que contempla a
lógica didática desse ciclo (se é que existe uma, assim como eu credito), pude ler, principalmente, os seguintes
tópicos:
·
primeiras
entrevistas
·
transferência
·
elaboração
·
interpretação
Estes tópicos viabilizaram
aulas marcadas pelo empenho dos professores e pela participação dos alunos
mostrando que, entre muitas outras coisas, apesar de a técnica não se esgotar
nos textos, o retorno a esses textos - fundamentais - são cruciais para o
analista não se perder, principalmente no início de sua prática, em métodos distantes
por demais da psicanálise, ocorrendo no risco de prejudicar um tratamento.
Dito isso, pretendo elucubrar
acerca do estou entendendo por "etapas da técnica psicanalítica" pois,
a partir da minha prática, percebo que essa "técnica", de fato, deve
percorrer alguns pontos imprescindíveis, porém não parecem, necessariamente, articularem-se
como técnica engessada, no sentido "mecânico" do termo. Para tanto,
utilizarei, como apoio discursivo, três psicanalistas lacanianos contemporâneos,
J.-D. Nasio, Christian Dunker e Antônio
Quinet, por ser esta a orientação que tenho me dedicado mais.
2. DO ELEMENTO SURPRESA NO
PERCURSO: OS CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA PSICANÁLISE
Há pouco mais de dois anos, lembro-me
como ouvi, com espanto, desde Ernesto Dudovitch, na minha primeiro aula no CEP,
que os fundamentos principais da psicanálise eram no máximo seis: Inconsciente,
Transferência, Resistência, Pulsões.... "e talvez mais um ou
dois".... De todos, o único que eu achava que conhecia era o Inconsciente.
Até então, para mim, psicanálise consistia em Ego, Id, Superego e Mal-Estar na
Civilização.
3. DAS ETAPAS DA PSICANÁLISE
Em uma aula para o Instituto
de Psicologia da USP, o professor Christian Dunker (2014) demonstra como
Jacques Lacan tentou formalizar[1]
o que acontece durante um tratamento psicanalítico, utilizando como mapa
topológico a garrafa de Klein. Este modelo visava sintetizar três operações
fundamentais envolvidas no percurso de uma análise, para além do que Dunker
chama de "momentos diacrônicos", ou seja, entrevistas preliminares,
entrada em análise, retificação da posição do sujeito em relação a realidade,
implicação subjetiva, transferência, interpretação, meio do tratamento e final
do tratamento.
Muito resumidamente, essas
operações passam por três movimentos,
incorporando neles, três modelos topológicos:
1º
movimento topológico da garrafa de Klein: a identificação. Parte-se de uma
superfície plana transformada em forma de toro (fig. 2), formalizando, a partir de uma
necessidade inscrita, a relação entre demanda e desejo.
fig. 1 banda de Moebius |
2º
movimento topológico da garrafa de Klein: o sujeito. Assim como no toro,
parte-se de uma superfície plana, porém torcendo-a, de forma assimétrica, para
transforma-la em uma banda de Moebius; simbolizando o sujeito como intervalo
(0;1); lógica do linguista Fregue (o sujeito é algo que está hora como
0, hora como 1).
3º
movimento topológico: a desaparição do sujeito. A partir de um tubo forma-se
uma garrafa de Klein que, pressupondo a plasticidade própria geometria,
possibilitará a operação da "dupla perfuração"; em termos de
tratamento analítico equivale a um atravessamento do outro sem cortá-lo. Seria
já um momento de intervenção, onde o enígma está posto para o sujeito.
fig 2: acima, o toro e abaixo, a garrafa de Klein |
Na
última parte dessa aula, Dunker expõe a ideia de "estrutura do mito",
desenvolvida por Lévi-Strauss, para entender e formular os mitos universais;
como estes nos influenciam até hoje: o seu valor semântico, o seu saber
implícito, seu evento histórico, e o tipo de trabalho coletivo que eles nos
facultam a fazer.
Na fórmula de Lévi-Strauss[2],
após o mito passar pelos três estágios apresentados acima (identificação,
sujeito e desaparecimento de sujeito) e ficar preso na ambiguidade do terceiro
movimento, sem evoluir em sua dialética do desejo, ele finalmente se converte,
faz um novo sentido, uma reparação, uma ressignificação.
Essa
topologia (garrafa de Klein) e formulação (estrutura do mito) nos levam a ideia
de transformação e movimento. A superfície plana dá lugar a um toro, a uma
banda de Moebius; depois temos a plasticidade da garrafa de Klein. São
estruturas relacionadas.
Transformação
é uma palavra chave na prática psicanalítica, e Dunker apresenta um grupo de
psicanalistas de Boston, nos Estados Unidos, que pesquisaram como entender a transformação psicodinâmica na clínica,
publicando o resultado no livro Change in
Psychotherapy: A Unifying Paradigm (2010). Para a pesquisa, o grupo isolou
quatro dimensões da transformação operada pela psicanálise. São elas:
1.
Transformações no horizonte semântico: sentido, significações, efeitos
de discurso. "Como leio o mundo, como leio a mim, como leio-nos"
2.
Construção de padrões de construções mútuas: saber implícitos. O que é
uma relação. Sentidos compartilhados. Diz respeito a uma espécie de acumulação
feito durante o tratamento. Um consenso, mesmo que não nomeado.
3.
Now Moments: Momentos em que a relação analítica é experimentada como um
acontecimento, um encontro. Ela é marcada, pontuada por eventos que destroem a
estrutura da transferência e reformulam completamente o suposto saber,
constituindo um momento de indeterminação. Tudo muda.
4.
Reconstrução/Reparação: luto encadeado, que refaz outros lutos. Sejam
eles narcísicos, amorosos, edipianos, relacionais ou não.
Esta é uma
ideia que se relaciona com os processos que são apresentados com a garrafa de
Klein. Os Now Moments são os momentos de ruptura de identificação, de suspenção
da identificação, até o ponto limite em que o now moment é o over moment, ou
seja, em que o analista sai da posição de objeto que articula a demanda com a
transferência. Esse seria um dos temas mais constantes no que diz respeito a
noção de final de análise na tradição lacaniana. "O que a gente quer
fazer?" O que a gente quer fazer é um conjunto de transformações sobre
transformações, de metatransformações (DUNKER, 51:00, 2014)
Outro
psicanalista que fala sobre o etapas da técnica psicanalítica é J.-D. Nasio, em
seu livro Como se trabalha um analista.
Diferente de Christian Dunker, que apresentou uma topologia de Lacan, uma
fórmula de Lévi-Strauss e uma pesquisa do grupo de Boston, Nasio fala em nome
próprio, usando sua clínica como exemplo e fazendo um passo-a-passo de como
receber e analisar um paciente no setting analítico. Ele diz sobre a "técnica":
Ela não é
apenas um fundo estável que se decanta em cada analista, a cada dia,
historicamente há oitenta anos, isto é, desde o nascimento da psicanálise. O
divã, a poltrona, a regra fundamental, todos os elementos característicos do
processo analítico se tornaram, com o tempo, uma espécie de constante
invariável com a qual se identificou o analista (NASIO, p. 10, 1999)
Logo no início do seu livro,
uma transcrição de um seminário do final dos anos 1980, ele faz um resumo intitulado
"As diferentes fases do tratamento: retificação subjetiva, sugestão,
neurose de transferência e interpretação".
A primeira fase, da retificação
subjetiva, ocorre na primeira ou primeiras entrevistas quando o analista
deve observar a relação do paciente (o Eu) com seus sintomas e distinguir a
demanda implícita. Nasio diz que na sua clínica ele tem o hábito de restituir
ao paciente a teoria que ele tem sobre o seu sofrimento.
A segunda fase, quando inicia
o tratamento, da sugestão, é quando Nasio coloca em prática os dois Atos
psicanalíticos. Primeiro, explicitando sua relação ética com a psicanálise e
segundo enunciando a regra fundamental.
A terceira fase, da neurose
de transferência, é caracterizada pela emergência dos recalques e dos
significantes ligados às pulsões. É neste momento fecundo que o analista deve
silenciar para fazer surgir o Grande-Outro.
A quarta fase, da interpretação,
é a última. É nela onde o analista interpreta a transferência.
Nasio diz, no entanto, que
essas fases não são necessariamente separadas, mas podem se sobrepor umas nas
outras e que novos sintomas se formam na medida que outros desaparecem ou não.
O que podemos destacar até
aqui é que apesar de nomeadas e apresentadas de formas distintas pelas diversas
experiências que vimos, me parece mesmo haver um fundo "constante
invariável" nessas etapas da técnica analítica. O que não podemos responder
ainda é o que seria esse "constante invariável", que pode aparecer até
mesmo na repetição do número das etapas dos processos - até então sempre quatro
- presente também no título do próximo e último analista utilizado como
referência para este texto, Antônio Quinet.
Em seu livro As 4+1 condições para psicanálise,
Quinet, interroga as "normas" da psicanálise, tomando como base o
texto de Freud, "O início do tratamento". O autor entende o
tratamento não pode estar submetido a um contrato regulamentado por um Outro (exemplo,
o modus operandi do IPA), já que o
sujeito na análise é levado, justamente, a se confrontar com a falta do Outro.
[...] Lacan introduz o conceito de ato analítico,
retirando a psicanálise do âmbito das regras para situá-la na esfera da ética.
É o analista com o seu ato que dá existência ao inconsciente, promovendo a
psicanálise no particular de cada caso (QUINET, p.8, 2009)
Apesar de percorrer o
desenrolar da análise, Quinet discute o 4+1 não como etapas, mas sim como
condições para haver tratamento, a partir de um conjunto de dispositivos entendidos
pelos freudianos como pressupostos de um setting. São elas, as quatro
condições: tratamento de ensaio, uso do divã, a questão do tempo e a questão do
dinheiro. Quanto ao +1, seria o elemento que mantém as quatro condições unidas
como uma, em um sentido único. Nas palavras de Quinet,
O +1 é o elemento que pertence ao conjunto, tendo a
função de constituí-lo e de fazê-lo funcionar. Pode-se também ecvocar aqui a fórmulaborromeana do cartel: x
+ 1, em que ao se retirar o +1 do nó borromeano se obtém a individualização
completa dos elementos. (QUINET, p. 11, 2009)
Para ele, outro ponto
importante a ser considerado no ato analítico é que as condições não devem ser
eregidas artificialmente em regras, pois a única regra da psicanálise está do
lado do paciente: a associação livre.
Assim, Quinet parece imanente
ao caráter irredutível e singular do Ato analítico, sendo até mesmo, talvez,
impossibilitado de colocar em tópicos, etapas quase herméticas de uma técnica
dita psicanalítica, como o fez Christian Dunker para explicar a garrafa de
Kein, o Grupo de Boston e J.-D. Nasio.
4. DO QUE RETORNA PARA MINHA
CLÍNICA
Mais uma vez constatamos a
diversidade no discurso teórico/clínico analítico advindo de lugares
razoavelmente próximos. Se algumas falas se cruzam, outras pesam em lugares
opostos. Por exemplo, quando leio Nasio fico com a impressão que a direção do
tratamento pesa mais para o analista, ao contrário da impressão que fico de
Quinet.
Ao olhar para minha clínica, que
tem passando por experiências no consultório particular, no hospital, em ONGs,
e nos atendimentos pela rede do CEP, posso perceber as singularidades dos casos
e por isso escolhi como epígrafe deste texto: "O estilo é o homem
a quem me dirijo".
O retorno da fala do paciente será o lugar do meu inconsciente como analista. A "escolha" do estilo, a partir da qual
a linguagem sempre aparece, na medida em que permito minha escuta flutuar. Desde este ato avanço pela ética: não converso com sintomas, o que retorna para mim, levo para supervisão, para análise, construo a demanda
com o paciente sem ter medo de transparecer um não saber, confio em um suposto
saber, estudo.
E assim, as etapas da técnica da
psicanalítica trazem as surpresas não apenas para o analisando, mas também para o
analista, e talvez esta seja a nossa única certeza. Construir etapas é nossa
tarefa. A desconstrução é nossa sorte.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Mauro William
Barbosa de. "A fórmula canônica do mito". (Versao
corrigida do texto publicado originalmente
em Queiroz, Ruben C. de & Nobre, Renarde F. (eds.). Lévi-Strauss.
Leituras Brasileiras. Belo Horizonte, Editora da Universidade Federal de Minas
Gerais, 2008, pp. 147-182. Esta versão corresponde ao texto em italiano, no
prelo e corrige erros da edição brasileira.). Disponível em: < https://mwba.files.wordpress.com/2010/03/almeida-2009-a-formula-canonica-do-mito-_corrigida.pdf>.
Acesso: 18/05/2016.
DUNKER, Christian Ingo Lenz. Seminário sobre a Obra de Lacan: A Garrafa de Klein e a dialética entre demanda e desejo na análise. Transmitido ao vivo em 10 de abrIL de 2014 pelo Instituto de Psicologia da USP. Disponível em: < TclqvdEC8xg>. Acesso: 18/05/2016.
NASIO, J. -D. Como Trabalha um Psicanalista? tradução:
Lucy Magalhães; revisão técnica Marco Antônio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
QUINET, Antonio. As 4+1 condições da análise. 12. ed. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
The Boston Change Progress
Study Group. Change in PSYCHOTHERAPY: A
unifying paradigm. W.W. Norton & Company Publisher, 2010.
[1] na aula 11 (março de 1965) do Seminário 12, "Problemas Cruciais da
Psicanálise". (não publicado no Brasil)
[2] Podemos
usar como exemplo uma das variantes algébricas
similares de Levi-Strauss, apresentadas por Dunker, "O
mito de Édipo com a fórmula canônica", onde, Fx(a) ≈ Fy(a) :: Fy(b)
≈Fb-1(x)
A
fórmula pode ser lida assim:
a
superestimação de relações (de parentesco) Fx(a) está para a subestimação de
relações de parentesco Fy(a) assim como a negação de relações com monstros
autóctones Fy(b) está para o caráter-autóctone-invertido (caráter
anti-autóctone) da função exagero Fb-1(x).
(ALMEIDA,
2008)
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