Progresso: conceito em constante redefinição
Ao finalizar a leitura do livro “Contra o progresso” de Zizek (2025), torna-se evidente que a obra reúne uma série de artigos interligados por uma crítica à ideia de progresso. Zizek propõe que o progresso deve ser entendido como um conceito em permanente transformação, onde a redefinição é, na verdade, uma parte essencial do próprio progresso. Essa perspectiva desafia a visão tradicional de progresso linear e inquestionável, trazendo à tona suas complexidades e contradições.
Memória: retrato em palavras por Annie Ernaux
Paralelamente a leitura de Zizek, o livro “Os anos”, de Annie Ernaux (2008), ofereceu um contraponto pessoal a questão do progresso. Ernaux constrói sua narrativa a partir de memórias evocadas por registros seus em foto e filme, situando sua vida nos acontecimentos do século 20. Nascida em 1940, sua infância foi marcada pela Ocupação nazista, seguida pela Libertação e Reconstrução da França. Na adolescência, presenciou o ciclo decolonial pós-guerra, principalmente na África, com destaque para a Guerra da Argélia, depois o surgimento da “sociedade do consumo”, seguido pelos eventos de maio de 68 e culminando na decepção com o movimento estudantil.
Através de seus retratos pessoais, ela abrange as transformações culturais e sociais que testemunhou ao longo da vida, e qualquer elogio que eu faça a esse livro não faria jus à genialidade dessa ganhadora do Nobel da Literatura. Mas confesso que enquanto lia suas contextualizações históricas, ansiava pelos trechos existencialistas dispersos ao longo do livro, como: “Entre as mesas, nas varandas dos cafés, repara apenas nas mulheres que julga terem entre 35 e 40 anos e busca no rosto de cada uma, sinais de felicidade ou infelicidade, ‘como elas fazem?’”
Atualidade das reflexões e o novo ciclo decolonial
A relevância dessas obras se manifesta ao compararmos a crítica ao progresso de Zizek com as memórias de Ernaux, permitindo pensar sobre o novo ciclo de decolonização vivido atualmente. Essa discussão se revela especialmente pertinente no Brasil, diante das questões envolvendo indígenas e descendentes de africanos, que constituem a base da nossa sociedade. O próprio conceito de “nação”, nesse contexto, mostra-se problemático, demandando uma revisão das estruturas coletivas e das formas de organização anti-coloniais.
Assim, as ideias presentes nas duas obras dialogam entre si ao questionarem os caminhos do progresso e ao apontarem para a necessidade de repensar as marcas do colonialismo, tanto em nível pessoal quanto coletivo. Tal reflexão é fundamental para entender os desafios do novo ciclo decolonial.
Em busca de uma descontinuidade que evite a catástrofeDa sociedade do consumo, à sociedade do espetáculo, à sociedade da informação e à sociedade do cansaço. Poderíamos chamar esse encadeamento classificatório de progresso? Zizek enfatiza que toda grande mudança provocada pela lógica do capitalismo gera vítimas; e, cada vez que tomamos consciência desse “resto” excluído – a vítima – pelo progresso, a própria ideia de progresso é automaticamente colocada em xeque e redefinida. É fácil exemplificar como o avanço tecnológico trouxe consigo efeitos colaterais, como o adoecimento mental e ecológico. Se, há vinte anos, acreditávamos que a ampliação do acesso à informação representaria um avanço em prol da democracia — pois mais pessoas teriam contato rápido com dados e debates —, hoje percebemos que esse fenômeno, ao invés de fortalecer o ambiente democrático, acabou privatizando e polarizando o espaço de discussão, favorecendo o controle social. Alguns psicanalistas chamam esse fenômeno de “a colonização do inconsciente” e debatem freneticamente pela “decolonização do inconsciente”.
O progresso do próprio capitalismo – que, segundo Yanis Varoufakis, resultou no chamado tecnofeudalismo – trouxe implicações para a continuidade do processo decolonial, iniciado no século 16 e seguindo, até hoje e indefinidamente, aos trancos e barrancos. Nesse novo cenário colonialista, a abertura da economia global somada a concentração de poder com as big techs, enfraqueceram os Estados deixando quase todas as nações em desenvolvimento – já emancipadas dos impérios europeus, após a segunda Guerra Mundial – agora, nas mãos de corporações privadas, sendo a República do Congo, talvez o exemplo mais horrível dessa nova forma de colonização.
Esse novo modelo de administração pública neoliberal tornou os conflitos, guerras e relações internacionais ainda mais obscuros. Disfarçados por discursos religiosos e culturais, na verdade, esses conflitos são pautados, quase inteiramente, pelas chamadas "mãos invisíveis" do mercado. Como relembra Ernaux ao abordar o final do século 20: “As guerras continuavam acontecendo mundo afora. O interesse despertado por elas era inversamente proporcional à sua duração, e nosso distanciamento dependia principalmente da presença de ocidentais entre os protagonistas. [...] E ninguém sabia os motivos. [...] Confundíamos as facções que lutavam no Líbano, xiitas e sunitas, além dos cristãos. Era incompreensível como os povos podiam se massacrar em nome da religião, evidência de que eles não eram desenvolvidos o bastante.”
Hoje sabemos que essa incompreensão generalizada era efeito da desconexão entre o fundo causal dos conflitos e a narrativa tecida pelo ocidente para esconder os interesses financeiros beneficiados pela barbárie; efeito da complexidade dos interesses econômicos e geopolíticos, aliados ao distanciamento cultural e midiático, ressaltando narrativas simplificadas e fundamentadas em justificativas religiosas ou culturais, servindo para encobrir dinâmicas mais profundas de poder e dominação global. Ou, nas palavras de Zizek: “Na política não se trata de fazer história. Trata-se de fazer algo horrível e inventar uma história para encobrir o ocorrido”. Trata-se de uma estratégia que foi aperfeiçoada ao longo do tempo, tornando-se cada vez mais sofisticada com o avanço tecnológico, permitindo não só a disseminação de fake news, mas também a criação de verdadeiros espetáculos que mascaram a exploração sob o pretexto de boa-fé — como se observa, por exemplo, na COP de Belém. É impossível buscar a cura quando se permanece mergulhado no próprio veneno.
Por isso – falando deste nosso cenário atual – talvez, a única solução para o problema esteja não apenas na demarcação das terras indígenas, mas também na devolução de áreas já ocupadas pelo agronegócio aos povos originários. Porém, para que essa medida seja efetiva, seria fundamental implementar mecanismos de fiscalização internacional que assegurem o uso sustentável dessas terras, promovendo o respeito aos direitos humanos, conforme estabelecido pelos princípios da ideologia ocidental. Reconheço que essa aproximação pode gerar tensões e até certa distorção cultural, mas, ao mesmo tempo, representa uma tentativa de conciliar as melhores características de ambos os mundos. Trata-se de uma proposta controversa, cuja concretização demandaria décadas de diálogo, empenho e adaptações. Contudo, com genuína boa vontade política e social, é possível avançar nessa direção, ainda que os mais céticos tenham razões legítimas para questionar essa quase utopia.
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