quinta-feira, 13 de novembro de 2025

REFLEXÕES SOBRE O PROGRESSO E A DECOLONIZAÇÃO: ENTRE CRÍTICA E MEMÓRIA

 

Progresso: Conceito em Constante Redefinição

Ao finalizar a leitura do livro “Contra o progresso” de Zizek (2025), torna-se evidente que a obra reúne uma série de artigos interligados por uma crítica à ideia de progresso. Zizek propõe que o progresso deve ser entendido como um conceito em permanente transformação, onde a redefinição é, na verdade, uma parte essencial do próprio progresso. Essa perspectiva desafia a visão tradicional de progresso linear e inquestionável, trazendo à tona suas complexidades e contradições.

Memória: retrato em palavras por Annie Ernaux

Paralelamente a leitura de Zizek, o livro “Os anos”, de Annie Ernaux (2008), ofereceu um contraponto pessoal a questão do progresso. Ernaux constrói sua narrativa a partir de memórias evocadas por registros seus em foto e filme, situando sua vida nos acontecimentos do século 20. Nascida em 1940, sua infância foi marcada pela Ocupação nazista, seguida pela Libertação e Reconstrução da França. Na adolescência, presenciou o ciclo decolonial pós-guerra, principalmente na África, com destaque para a Guerra da Argélia, depois o surgimento da “sociedade do consumo”, seguido pelos eventos de maio de 68 e culminando na decepção com o movimento estudantil.

Através de seus retratos pessoais, ela abrange as transformações culturais e sociais que testemunhou ao longo da vida, e qualquer elogio que eu faça a esse livro não faria jus à genialidade dessa ganhadora do Nobel da Literatura. Mas confesso que enquanto lia suas contextualizações históricas, ansiava pelos trechos existencialistas dispersos ao longo do livro, como: “Entre as mesas, nas varandas dos cafés, repara apenas nas mulheres que julga terem entre 35 e 40 anos e busca no rosto de cada uma, sinais de felicidade ou infelicidade, ‘como elas fazem?’”

 

Atualidade das Reflexões e o Novo Ciclo Decolonial

A relevância dessas obras se manifesta ao compararmos a crítica ao progresso de Zizek com as memórias de Ernaux, permitindo pensar sobre o novo ciclo de decolonização vivido atualmente. Essa discussão se revela especialmente pertinente no Brasil, diante das questões envolvendo indígenas e descendentes de africanos, que constituem a base da nossa sociedade. O próprio conceito de “nação”, nesse contexto, mostra-se problemático, demandando uma revisão das estruturas coletivas e das formas de organização anti-coloniais.

Assim, as ideias presentes nas duas obras dialogam entre si ao questionarem os caminhos do progresso e ao apontarem para a necessidade de repensar as marcas do colonialismo, tanto em nível pessoal quanto coletivo. Tal reflexão é fundamental para entender os desafios do novo ciclo decolonial.

Em busca de uma descontinuidade que evite a catástrofe

 Da sociedade do consumo, à sociedade do espetáculo, à sociedade da informação e à sociedade do cansaço. Poderíamos chamar esse encadeamento classificatório de progresso? Zizek enfatiza que toda grande mudança provocada pela lógica do capitalismo gera vítimas; e, cada vez que tomamos consciência desse “resto” excluído pelo progresso – a vítima – a própria ideia de progresso é automaticamente colocada em xeque e redefinida. É fácil exemplificar como o avanço tecnológico trouxe consigo efeitos colaterais, como o adoecimento mental e ecológico. Se, há vinte anos, acreditávamos que a ampliação do acesso à informação representaria um avanço em prol da democracia — pois mais pessoas teriam contato rápido com dados e debates —, hoje percebemos que esse fenômeno, ao invés de fortalecer o ambiente democrático, acabou privatizando e polarizando o espaço de discussão, favorecendo o controle social. Alguns psicanalistas chamam esse fenômeno de “a colonização do inconsciente” e debatem freneticamente pela “decolonização do inconsciente”.

 

O progresso do próprio capitalismo – que, segundo Yanis Varoufakis, resultou no chamado tecnofeudalismo – trouxe implicações para a continuidade do processo decolonial, iniciado no século 16 e seguindo, até hoje e indefinidamente, aos trancos e barrancos. Nesse novo cenário colonialista, a abertura da economia global somada a concentração de poder com as big techs, enfraqueceram os Estados deixando quase todas as nações em desenvolvimento – já emancipadas dos impérios europeus com o fim da segunda Guerra Mundial – agora, nas mãos de corporações privadas, sendo o Congo, talvez o exemplo mais horrível dessa nova forma de colonização.

 

Zizek alerta para os riscos do processo decolonial, citando o exemplo de Uganda, onde a convergência entre o movimento decolonial e os interesses de empresas multinacionais resultou no surgimento de um Estado aliado a tradições seculares que condenam a homossexualidade e o feminismo, vistos como ideologias ocidentais e, portanto, inadequadas àquela sociedade decolonizada. Ele relembra a fala da porta-voz do parlamento de Uganda, Anita Among: “Ou você está conosco, ou você está com o mundo ocidental”. Zizek complementa: “A luta feminista, gay e trans é denunciada como instrumento ideológico do colonialismo ocidental usado para minar a identidade africana. Se esse tipo de pensamento continuar a pautar o debate, a possibilidade de ser gay, feminista ou trans em Uganda pode vir a ser redefinida como inexistente”. Para Zizek, esse é um exemplo do avanço do discurso decolonial apropriado pela direita.

Esse tipo de avanço progressista, sustentado por um saber tido como inquestionável — seja a tradição, seja a vida guiada pelo trabalho, produção e consumo —, é evocado por Ernaux ao rememorar o cotidiano da classe média francesa nos anos 1980: “A chegada da novidade deixava as pessoas calmas, e a certeza de um progresso contínuo suprimia o desejo de imaginar o futuro”.