COMO GLAUBER ROCHA SE APROPRIOU DA POESIA E DO CINEMA PARA MOSTRAR AO MUNDO O SEU PONTO DE VISTA SÓCIO-POLÍTICO DURANTE OS ANOS DE CHUMBO DO BRASIL
UMA IDEIA NA CABEÇA E UMA EQUIPE DE AMIGOS
"Uma ideia na cabeça e uma câmera na mão" foi a frase que eternizou Glauber Rocha como o ícone brasileiro do Cinema Novo; porém esta sua frase não condizia com toda a realidade do diretor. Por mais simples que fossem as produções de seus primeiros filmes, Barravento e Deus e o Diabo na Terra do Sol, sem sua equipe de produção, fotografia, montagem, etc, Glauber nunca finalizaria o produto como idealizara. Por mais impactante que seja o efeito da famosa frase de Glauber, e que de certo modo é verdade no momento inicial da criação, ela é um pouco injusta com as outras pessoas que trabalharam para fazer os filmes.
Nos documentários que acompanham as edições lançadas em DVD de Deus e o Diabo e Terra em Transe, a equipe que trabalhou com Glauber relata como foi o processo de produção dos filmes, tornando possíveis que as ideias do roteiro fossem vividas por atores para o mundo. De acordo com os depoimentos, eles se viravam e desdobravam (as vezes infrutificamente) para comprar películas, criar uma cena, passar uma emoção, e vislumbrar os olhos de apaixonados por cinema.
São vários os relatos que circulam os bastidores das filmagens deste cineasta, e tão ilustrativos no que diz respeito ao tempo e lugar de onde foram feitas, que para a geração que procedeu, é uma verdadeira lição de História do Brasil. As informações da primeira parte deste texto provêm desses depoimentos dados pelos técnicos, atores, assistentes e até a mãe de Glauber Rocha.
GLAUBER: O CINESTA, O ARTISTA
Glauber Rocha nasceu em 1939 numa família de classe média de Vitória da Conquista (BA), e recebeu educação religiosa em uma escola de Salvador, onde foi morar com a família em 1947. Com cerca de 12 anos, Glauber pediu ao pai que o levasse em algumas viagens de trabalho pelo nordeste, e assim, precocemente, começou a pesquisar os hábitos do povo nordestino. Em 1954 ele começa a frequentar o Clube de Cinema do crítico Walter da Silveira em Salvador. Ele, também, chegou a ingressar na faculdade de Direito da Bahia, mas logo desistiu para trabalhar como jornalista.
O momento em que Glauber estava começando a produzir seus roteiros e afiando suas ideais cinematográficas, era um de efervescência cultural no país. O cinema cresceu e evoluiu na Bahia diante do desenvolvimentismo econômico surgido no governo de Jucelino Kubitschek. Este desenvolvimento refletiu não só no cinema, como em outras áreas da cultura e em outras regiões, permitindo um grande intercâmbio entre os artistas de todo o país. Havia um forte movimento na literatura, na poesia, na música, na artes plásticas e no teatro.
Outro fato que marcou o momento foi a falência dos grandes estúdios de cinema como, no Brasil, a Companhia Vera Cruz. Jovens, então, buscavam no neo-realismo italiano, uma nova forma de fazer e pensar em cinema, adaptando a gramática cinematográfica dentro de um novo paradigma mais realista, mais preocupado com o conteúdo social e menos custoso. Era a linguagem do Cinema Novo e o cinema independente que eclodia em vários países do mundo.
O Tropicalismo acontecia na cena cultural brasileira na voz de Caetano Veloso, nas mãos de Hélio Oiticica, nos gestos de Zé Celso, mas só se completaria nos olhos de Glauber. O Cinema brasileiro inventava uma linguagem própria que vislumbrava o Cinema Novo europeu, com as características tupiniquins. Porém de "índio" (no sentido pejorativo) nada tinham esses brilhantes cineastas.
Diferente do que muitos venham a pensar, o Cinema Novo brasileiro era muito preocupado com a técnica: a montagem, o som, a luz. Apreciavam a naturalidade de cada componente, porém as pensavam de forma complexa para que o resultado dessa orquestra fosse harmoniosa no sentido de fazer ressonar as metralhadoras e flores caindo no chão, sistematicamente, na medida que os acontecimentos políticos-sociais se faziam presentes, as vezes de forma sutil, as vezes chutado no âmago do brasileiro.
TERRA EM TRANSE
No caso do filme Terra em Transe, Glauber produziu uma obra de cunho sócio-político. É o momento do Golpe Militar no Brasil contado através de um artista brasileiro inserido no apogeu do Tropicalismo e Cinema Novo. O público, e principalmente, a crítica especializada, aplaudiu a maneira que as metáforas e alegorias foram usadas para contar a História, então recente, do país.
Com uma narrativa não-linear e o uso de poesia, Glauber fez um "filme sobre política, e não um filme político", como ele mesmo afirma em uma gravação que aparece no documentário que acompanha Terra em Transe. Devemos lembrar também que, apesar da história se encaixar tão bem com o janguismo e os acontecimentos da primeira metade dos anos 1960, Glauber deixou explícito em uma entrevista dada em 1967 para a Revista Arte, que o filme é sobre o "transe [político] latino, e não do brasileiro, em particular."
Apesar de ter sido censurado em abril de 1967, o filme foi, após uma carta enviada pelo advogado da produtora do filme explicando as intenções do diretor, liberado para maiores de 18 anos. De acordo com o advogado, Glauber não passa nenhuma mensagem subliminar partidária, mas faz uma crítica geral a um país fictício. Todos os documentos trocados entre a produtora e o departamento de censura do DFSP (Departamento Federal de Segurança Pública), ficam disponíveis para pesquisa no site Memória Cine Br.
POESIA
Antônio Calmon, assistente de direção em Terra em Transe, conta que Glauber começou a usar a poesia em Deus e o Diabo para mascarar a falta de recursos, e em Terra em Transe encorporou a poesia no texto como um estilo[1]. Diz também que no texto, produzido durante o exílio de Glauber em Roma, as palavras foram meticulosamente escolhidas para dar o tom certo aos personagens sem a intervenção do "baianês" que era natural do diretor. Glauber parece que não cansava de inovar, recriar e significar a linguagem cinematográfica para que, mesmo através das metáforas, conseguisse mostrar a realidade do jeito que acreditava.
Poesia e política se misturam e brigam durante o filme. Este conflito é vivenciado pelo protagonista Paulo Martins, um jornalista e poeta que oscila sua opinião política entre o amigo direitista Porfírio Diaz, e o candidato populista, Felipe Vieira, a quem está apoiando na eleição.
Durante o filme, em alguns trechos, ouvimos a voz de Paulo refletindo em forma de poesia sobre seus dilemas políticos. A força dos versos que declara reflete a vontade quase insana de mudança e justiça social no seu país, o fictício Eldorado, e também, o lado romântico dos revolucionários.
A primeira vez que ouvimos sua poesia é no começo do filme (que na sua narrativa não-linear, é o final da história), quando Paulo é baleado após ignorar a ordem dada pela polícia militar de parar o carro. Ele, então, profere seu descontentamento com o partido de direita, inclusive, mencionando Cristo, pois este partido usa a moral cristã como propaganda política (apesar de que no filme, o padre apoia os populistas).
Não é mais possível esta festa de medalhas,
este feliz aparato de glórias,
esta esperança dourada nos planaltos.
Não é mais possível esta marcha de bandeiras
com guerra e Cristo na mesma posição!
assim não é possível a ingenuidade da fé,
a impotência da fé...
No final do filme, quando a narrativa volta ao começo para, realmente terminar a história, ouvimos novamente estes versos, mas desta vez complementados com as palavras que demonstram sua frustração também com o partido populista por não entrar numa luta armada pelo poder do povo. Ele se vê morrendo junto com a esperança que tinha de vencer sua guerra pela justiça social, acusando o povo de covardia e indolência.
Não é mais possível esta festa de medalhas,
este feliz aparato de glórias,
esta esperança dourada nos planaltos.
não é mais possível esta marcha de bandeiras
com guerra e Cristo na mesma posição!
assim não é possível a ingenuidade da fé,
a impotência da fé...
Não é mais possível.
Somos infinita, eternamente filhos das trevas,
da inquisição e da conversão!
E somos infinita e eternamente filhos do medo,
da sangria no corpo do nosso irmão!
E não assumimos a nossa violência,
não assumimos as nossas ideias,
como o ódio dos bárbaros adormecidos que somos.
Não assumimos o nosso passado,
tolo, raquítico passado, de preguiças e preces
uma paisagem, um som sobre almas indolentes...
Essas indolentes raças da servidão a Deus e aos senhores.
Uma passiva fraqueza típica dos indolentes.
Ah! Não é possível acreditar que tudo isso seja verdade!
Até quando suportaremos?
Até quando, além da fé e da esperança suportaremos?
Até quando, além da paciência, do amor suportaremos?
Até quando, além da inconsciência do medo,
além da nossa infância e da nossa adolescência, suportaremos...
Quando Paulo está morrendo, se dá conta que o seu esforço político não vingará e tampouco, será compreendido escutamos sua voz:
Estou morrendo agora, nesta hora,
estou morrendo neste tempo.
Estão correndo meu sangue e minhas lágrimas.
Ah, Sara! Todos vão dizer que sempre fui um louco, um romântico, um anarquista que sempre...
ah, não sei, Sara...
Glauber Rocha, fez um bom trabalho em manter-se imparcial quanto a sua posição política, através do impasse partidário do protagonista Paulo. Porém, ao mesmo tempo retratou poeticamente a miséria e o descaso dos governantes com o povo, os interesses que fazem a roda da política girar, e a influência que a economia estrangeira apresenta nas decisões governamentais.
A natureza da revolta com as injustiças cometidas pelos governantes é o seu amor pelo povo e pela terra. Paulo é um poeta extremamente passional e, talvez, por isso encontre no sangue a única saída para a paz e justiça. Apesar de ser poeta, ele acredita que palavras não têm forças para transformar uma sociedade oprimida e, por isso, vive o dilema da luta armada e da vitória através do debate, defendido pela mulher que ama, e simpatizante da esquerda, Sara.
Mar bravio que me envolve neste doce continente.
A este esquecimento posso doar minha triste voz latina,
mais triste que a revolta,
muito mais...
Vomito na calle o ácido dólar,
avançando nas praças entre "niños, sucios, con sus ojos de pajaros ciegos."
Vejo que de sangue se desenha o Atlântico,
sob uma constante ameaça de metais a jato.
Guerras e guerras nos países exteriores.
Posso acrescentar que na lua, um astronauta se deu por achado.
Todas as piadas são possíveis nas tragédias de cada dia.
Eu, por exemplo, me dou a vão exercício da poesia.
A poesia em Terra em Transe é uma faceta importante do filme, e retrata muito bem o lado romântico da força que movia os "rebeldes" brasileiros dos anos 1960: jovens em busca de uma verdadeira democracia, e de liberdade. É a poesia que também complementa o tom e o ritmo experimental do filme.
Mas acredito que não é só das palavras que se constroe os versos harmoniosos. A fotografia, a atuação, a montagem e a sonoplastia também apresentam uma linguagem cinematográfica ritmada.
Glauber Rocha, de sua forma, encontra na poesia uma porta que permite as ciências sociais serem interpretadas artisticamente. Em outras palavras, ele aceita e se faz servidor de um Cinema Novo; de um cinema autoral, cuja função deixa de ser puramente artística, e passa a exercer, também, o papel ciências sociais.
REFERÊNCIAS
DEUS e o Diabo na Terra do Sol. Direção Glauber Rocha. Produção: Luis Augusto Mendes. Intérpretes: Geraldo Del Rey; Yoná Magalhães; Maurício do Vale; Othon Bastos e outros. Roteiro: Glauber Rocha e Walter Lima Jr. Música: Sérgio Ricardo. Rio de Janeiro: Rio Filmes. c. 1964. 1 DVDs (125 min) Full screen. P & B. Produzido por Rio Filmes. 2 DVD documentário. Versão Rewtaurada e Remasterizada por Versátil Home Vídeo.
MEMÓRIA da Censura no Cinema Brasileiro - 1964 -1988. Iniciativa: Recosdar Produções e Petrobrás. Patrocínio: Petrobrás. Apoio: Ministério da Cultura do Governo do Brasil. Disponível em: <http://www.memoriacinebr.com.br/ >. Acesso em: 02 dez. 2010.
TERRA em Transe. Direção: Galuber Rocha. Produção: Zelito Viana. Intérpretes: Jardel Filho; Paulo Autran; José Lewgoy; Glauce Rocha; Hugo Carvana e outros. Roteiro: Glauber Rocha. Música: Sérgio Ricardo. Rio de Janeiro: Rio Filmes. c. 1967. 1 DVDs (115 min) Full screen. P & B. Produzido por Rio Filmes. 2 DVD documentário. c. 2006 por Paloma Cinematográfica.
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